Coimbra dos Doutores
"Coimbra dos Doutores", Coimbra, Coimbra Editora, 1957, é um livro inteligente, escrito por um homem culto e perspicaz que, tendo frequentado a UC nos anos difíceis da 2ª Guerra Mundial, não se intimidou com as euforias tributadas ao regime de Oliveira Salazar nem com os tiques corporativos vividos e assumidos no meio universitário.
João José Falcato, aluno de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da UC entre 1942-1947, membro do TEUC e do Orfeon de Raposo Marques, residente na República Lactário dos Paradoxos, nasceu em Borba no ano de 1915.
Em 1941-1942 frequentou Filosofia na Universidade de Lisboa e enquanto estudante viveu numa viagem de férias o incêndio do cargueiro Mello junto às costas da América do Sul. Dessa terrífica experiência resultou o romance-reportagem neo-realista "Fogo no Mar". Com o final da 2ª Guerra, João Falcato festejou a vitória das democracias e juntou-se aos estudantes que reclamavam o fim das nomeações governamentais de comissões administrativas para a direcção da AAC.
Terminado o curso com um "Estudo Sobre a Arte Manuelina", João Falcato fixou-se no Alentejo, região onde trabalhou como professor e jornalista. Entre 1952 e 1957 publicou crónicas dos tempos de Coimbra em periódicos como o "Linhas de Elvas", posteriormente reunidas nos volumes "Coimbra Doutora" (1957) e "Palácios Confusos" (1965).
Pelo meio ficaram também os trabalhos "Fogo no Mar" (1945), profundamente saudado na comunicação social da época como promessa neo-realista, "Elucidário Alentejano" (gastronomia, cerâmica de Estremoz, fauna), e "Angola do meu coração", obra que em 1961 já ia na 3ª edição.
O livro "Coimbra dos Doutores", embora situado na longa esteira dos memorialistas de fastos estudantis, está longe se configurar uma obra saudosista, anedoteira, com larachas triviais e de louvaminhança à Academia e à UC.
Como seria de esperar, o livro originou uma onda de protestos especialmente nos sectores mais emblemáticos da direita conservadora e católica. Gerou-se em Coimbra um ambiente de acusações, de tira-satisfações, de honras ofendidas, próprio de uma cidadezinha de província. Representando as vozes que se diziam mais "ofendidas" com as crónicas de João Falcato, o Cónego Urbano Duarte, ligado ao CADC, atacou violentamente o autor no "Correio de Coimbra". A estratégia consistiu em desmentir e desautorizar a escrita de Falcato, depreciativamente alcunhado de "João Falsato". Era uma espécide de trocadilho hábil, inspirado no jogo Fernando Mendes Pinto/Mendes Minto. Radicado em Elvas, Falcato respondeu como pôde com o folheto "Coimbra dos Doutores... e o ataque calunioso do Padre Urbano Duarte, Director do Correio de Coimbra" (1958).
Afinal, que razões fizeram levantar meia Coimbra contra João Falcato?
Não eram imprecisões de datas, nem de nomes, nem lacunas de monta nas situações evocadas. O autor mostra-se hábil, optando por não fixar datas nem nomes concretos. A resposta está nas páginas da obra "Coimbra dos Doutores". Falcato gostava de Coimbra e da sua Universidade, mas não as via com embevecimento místico e lágrima acrítica. Qualquer hipótese de confusão quanto ao pensamento de Falcato fica logo descodificada quando o próprio, ao evocar Teixeira de Pascoais se demarca inequivocamente de arrufos de "panteísmo místico".
Falcato era um homem vivido, viajado, muito lido, de horizontes largos, amante do neo-realismo e da democracia. Pouco depois de chegar a Coimbra, João Falcato foi tocado por dois acontecimentos que o marcaram negativamente. O Director da Faculdade de Letras (então na "Peneira", onde é a BGUC) chamou-o ao gabinete e perguntou-lhe directamente se era adepto do amor livre e do nudismo. A atitude do director pode ter radicado numa denúncia anónima e revela bem os níveis de vigilância e de controlo que então se viviam no meio estudantil em termos das ideias e dos comportamentos. Falcato vingou-se, abrindo o seu livro com um capítulo da mais fria e requintada crueldade onde, sem nunca nomear o lente, trata de "A apresentação do Senhor Director". O segundo acontecimento foi o julgamento de Falcato numa República segundo as velhas praxes ("O Mito de Coimbra"), também relatado (denunciado) sem subterfúgios.
No capítulo "Tudo Muda", João Falcato critica de modo frontal o plano governamental da nova Cidade Universitária, a demolição do Observatório Astronómico, a deflorestação do Pátio do Paço das Escolas, a grosseira nova estátua de D. João III (a quem chama o "fogueiro", na esteira de Alexandre Herculano), a demolição da Rua Larga, os novos edifícios de gosto muito duvidoso e as "mamudas" implantadas na frontaria da Biblioteca Geral.
Falando do seu TEUC, Falcato não poupa críticas ao feitio violentíssimo do Doutor Paulo Quintela, com quem teve altercações (Quintela, além dos ralhetes mortíferos, dava carolos na cabeça dos alunos rebeldes aos ensaios). Mais à frente, recupera um assunto escaldante de finais da década de 1930, o boicote à Exposição de Arte Italiana com inauguração marcada para 19 de Maio de 1939 (Num artigo sobre os irmãos Carvalhal, já escrevemos neste Blog que o boicote foi liderado pelo cultor da CC e membro da TAUC Luís Carvalhal).
Como se tudo isto não bastasse, o autor dedica largas páginas ao "Doutor Assis da Minha Geração". Considerando a caricatura, as pistas ténues, e os lentes que nomeia e elogia, parece que João Falcato se refere a Mário Brandão (Mário Mendes dos Remédios de Sousa Brandão"). Os elogiados eram Joaquim de Carvalho, Damião Peres, Manuel Lopes de Almeida, Sílvio Lima e Virgílio Correia. Aliás, Brandão, que sozinho açambarcava quase metade das cadeiras do curso de Histórico-Filosóficas, também aparece caricaturado com enorme verrina por José Afonso (Cf. João Afonso dos Santos, "José Afonso. Um olhar fraterno", 2ª edição, Lisboa, Caminho, 2002).
Mais para o fim do livro, Falcato reincidia no discurso, para consternação e desagrado dos seus leitores mais conservadores. Um dos capítulos finais mais provocadores intitulava-se "Coimbra é verdadeiramente um centro intelectual?" O próprio autor responde, afirmando que a UC tinha alguns bons mestres e cientistas, sendo que esse punhado de investigadores não ocultava as misérias da instituição. Lembra também que, enquanto estudante literato, pertencera a um grupo intelectual avesso às tascas, à embriaguez e aos prostíbulos, grupo esse que era olhado de lado e desprezado pelos noctívagos praxistas.
Na recta final, Falcato introduz dois capítulos de bom quilate. Um deles reflecte sobre a evolução estética da CC. Exaltando o legado de Edmundo Bettencourt (que conhecera em 1945) esforça-se por distinguir entre o universo do Fado e a Galáxia Sonora Coimbrã. O texto derradeiro configura uma pioneira, lúcida e brilhante reflexão sobre o significado simbólico e sociológico da Queima das Fitas.
Em 1957 a UC ainda era vista como um bastião dos valores do regime. A Censura mantinha todo o seu vigor, sendo de estranhar que tenha deixado publicar uma obra com páginas potencialmente tão polémicas. Ao rememorar o boicote à Exposição Fascista de 1939, Falcato elogia a atitude do Reitor João Duarte de Oliveira como "um antifascista" que apoiou os estudantes incriminados por suspeita. Tamanha clareza de linguagem afigurava-se demasiado embaraçosa para o Reitorado de Maximino Correia (1943-1960), por excelência o Reitor do regime que garantiu a edificação da Cidade Universitária. Os sectores docentes e estudantis mais conservantistas e corporativistas da UC e da Academia de Coimbra não estavam dispostos a aceitar uma escrita tão fria e acentuadamente crítica vinda de um suspeito de reviralhismo. E como essas forças tinham do seu lado os mecanismos de controlo e repressão, sentiram que aparentemente triunfaram com o anátema "Falsato".
É tempo de reler e de reabilitar a memória de João Falcato e de desfazer os nós da anatematização com que foi fustigado. Para determinadas franjas de estudantes e de antigos estudantes da UC, a obra de referência da década de 1940 com que se identificam é e continuará inequivamente a ser o anedotário ligeiro e onírico de Nicolau da Costa, "Boémia Coimbrã dos Anos Quarenta" (1975). Basta ler um e outro e comparar.
A galeria dos títulos que enformam a literatura memorialística produzida por antigos estudantes de Coimbra é vasta. Quase sempre povoada por obras menores e escritas fastidiosas, nela se destacam no entardecer da Monarquia Constitucional o "In Illo Tempore", de Trindade Coelho, e "O Livro do Doutor Assis", de Pad'Zé. No contexto da memorialística situada na oposição estudantil ao Estado Novo, o livro editado por João Falcato em 1957 é uma obra de referência que aguarda os seus leitores.
AMNunes
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