quarta-feira, outubro 25, 2006

O NATAL DOS RAPAZES
Por Victor Carvalho
É no Solstício de Inverno que as gentes de Ouzilhão, em Trás-os-Montes, perpetuam um ritual milenar que invoca os deuses em favor de boas e abundantes colheitas. Se não o fizerem, as próximas culturas definharão. Está dado o mote para uma festança rija que se repete todos os anos, a 25 e 26 de Dezembro, e que ficou conhecida como a "Festa dos Rapazes" ou a "Festa de Santo Estêvão" - uma mistura exótica de religiosidade e paganismo.A aldeia aninha-se num vale que se adivinha encharcado pela água das últimas chuvas. O Inverno já desceu há muito das serranias, frio e húmido, devorador de paisagem, com o apetite de uma alcateia que deixasse as árvores reduzidas a um esqueleto de rancos. Ouzilhão parece não ter sinais de vida, apesar das pegadas de humanos e de animais moldadas na lama da rua principal. Caminho a medo, silencioso, com receio de perturbar a imobilidade do tempo .O encontro, inesperado, dá-se na esquina de uma casa de pedra, provavelmente centenária: sou saudado por três "máscaras", vestidos com os coloridos e bizarros trajes tecidos em lã grosseira e com aquela espontânea hospitalidade transmontana. Para quem vem assistir à chamada "Festa dos Rapazes", não parece normal ver três raparigas; mas os tabus foram rompidos e, agora, ninguém pode passar sem a presença feminina. Aliás, são as primeiras a chegar ao pequeno largo da Junta de Freguesia, onde se dará início à festança, criticando severamente o atraso sonolento dos companheiros. "Já aqui estamos à meia hora, carai! E cheias de frio. Pagam vocês os cafés." E lá seguimos para o salão de festas, mesmo ao lado da Junta, onde se aquecem almas e estômagos com uma bebida a escaldar, e mata-bicho local de fazer explodir as entranhas.Entretanto, os mascarados vão chegando. Cumprimentam-se com euforia, dando gritos e saltos, fazendo tinir os chocalhos e sinetas que prenderam à cinta. Antigamente, não falavam, ou disfarçavam a voz para que ninguém os conhecesse; eram tempos de brincadeira mais devassa, quando se batia nos outros, sujava de lama as moças que saíam da missa, metia medo às crianças e se criticava, em público, os autores de casos burlescos e sórdidos. Por fim, chegam os quatro "moços", com o vestuário do quotidiano, ao qual juntaram chapéus com longas fitas coloridas, que caem sobre lenços bordados de cores berrantes, atados sobre os ombros. Ouve-se o afinar das gaitas-de-foles, da tarola e do bombo. Ensaiam a música que vão repetir, vezes sem conta, ao longo do dia - a chamada "moda do Natal". Tinha chegado a hora da festa.O cortejo é liderado pelos "moços" e pelos músicos; os "máscaras" seguem mais afastados, demonstrando já a irreverência necessária para o sucesso do evento. Actuam de improviso, sem regras - eis a razão do número limitado de pretendentes a "moço", papel que requer muita responsabilidade. O trajecto que vão efectuar foi deliberado com antecedência, contando que todos os lares devem ser visitados. O ritual começa com uma cantiga dançada à volta da mesa familiar, enfeitada com comeres e beberes: "Estas casas são caiadas / mais por dentro que por fora / Muitos anos vivam nelas / os senhores que nela moram." Uma vénia é feita com reverência, acolhida com muita alegria pelos anfitriões, que se revezam nos convites para comer e beber. O facto é incontornável por parte dos "moços", os dignitários da tradição, os portadores das melhores venturas. O forasteiro, que aqui é tido como hóspede de honra, deve seguir-lhes o exemplo para não ferir susceptibilidades. A uma ordem dos "moços", recomeça a música para uma quadra de despedida: "Estas casas são caiadas / e o soalho é de vidro / Muitos anos vivam nelas / a mulher com seu marido." Os "máscaras", mantidos em respeito durante a cerimónia, não tarda que provoquem desacatos, ora agarrando e fazendo saltar homens e mulheres, sobretudo os mais velhos, numa sinfonia estridente de gritos e chocalhada, ora surripiando uma garrafa de vinho fino, uísque ou licor, que a jornada vai ser longa e fria.Os caminhos da aldeia estão enlameados, as nuvens ameaçam romper-se por cima de nós e o ar frio penetra-nos quase até aos ossos. No entanto, nada impede a determinação destes jovens que não menosprezam o testemunho de antepassados tão longínquos, "que nós nem sabemos quando isto nasceu", como diria o padre durante a missa do dia seguinte. As visitas sucedem-se, a mistura de bebidas começa a fazer efeito e, pelas ruas e vielas, todos dançam enfeitiçados pelos acordes repetidos da música. Uma das paragens obrigatórias é no café, para o estímulo da cafeína e mais uns álcoois, que acaba numa pequena batalha campal, no exterior, com dois ou três repolhos arrancados do terreno contíguo. Diga-se, em abono da verdade, que as raparigas são as mais aguerridas, e não há jovem ou ancião que não se veja atacado por estes diabretes. "No meu tempo era muito pior, éramos mesmo maus", comenta, sorridente, um bisavô apoiado numa bengala de pastor.Depois de jantar há bailarico, abrilhantado pelos mesmos músicos, que vão debitando temas populares e êxitos dos tops portugueses. A festa acabará lá para as tantas, que esta gente não é de quebrar nem de torcer. Entretanto, tenho o privilégio de ir a casa do presidente da Junta ver a confecção e adorno das coroas de cartolina, com ouro proveniente de pagamento de promessas, que serão usadas pelo Rei e seus dois Vassalos. As despedidas são comemoradas com uns copinhos de ginjinha na adega, um lugar antigo e mágico, cheio de memórias de outras gerações.

Dia 26. Notam-se os efeitos dos excessos do dia anterior; a rapaziada está sonolenta, com olheiras e, aparentemente, pouco dada a mais festança. Só o tempo escapou à ressaca. O céu está limpo, brilhante, e o sol aquece a aldeia, de cujos telhados se desprende o fumo inconstante da humidade evaporada. Depois do café e mata-bicho recomeça a volta, de novo com os "moços" e os músicos à frente. Este é um dia menos virado para o paganismo, já que se destina a recolher esmolas em nome de Santo Estêvão, considerado patrono dos rapazes. Mas os "máscaras" continuam a fazer parte da festa e, ao contrário do que seria de prever, estão em plena forma para romper as regras de bom comportamento. Recomeçam as danças em volta das mesas, mas a quadra é diferente: "Alevantem-se ó senhores / desses seus escanos doirados / Dai a esmola ao Santo Estêvão / que ele vos dará o pago." Come-se e bebe-se com apetite, reanima-se a festa, voltam as loucuras dos mascarados. Partem-se alguns copos, desaparecem garrafas entre a confusão de saltos, rodopios e gritaria, rouba-se uma ou outra chouriça do fumeiro com o consentimento dos da casa.O Rei e os dois Vassalos só aparecem antes da missa, com fatos domingueiros, coroas e cajados de cana enfeitados com fitas brancas e uma laranja espetada na ponta. A igreja enche-se de povo e está absolutamente interdita aos "máscaras", símbolos pagãos. O padre explica que eles são anteriores ao Cristianismo, que simbolizam o Mal e representam o Demónio; por isso lhes é vedada a entrada. O Rei, os Vassalos e os "moços" apareceram durante a realeza e representam a autoridade. Fala, também, de Santo Estêvão: "Foi apedrejado até à morte e, pouco antes de morrer, entregou o seu espírito ao Senhor, pedindo-Lhe que não levasse em conta o pecado dos seus carrascos. Devemos fazer como ele: amar os nossos inimigos."O andor com a imagem do santo dá a volta à igreja, carregado pelos "moços". Depois é benzido o pão, que aqui tem um simbolismo muito forte e universal: quando este é distribuído por todos, é como se Ouzilhão o servisse ao mundo, matando a fome a todos os que dela padecem. Não será o caso de quantos esperam por uma fatia, cá fora, onde uma grande mesa está posta com doces de Natal. Mas este é pão bento, como afirmam, porque pode ser guardado mais de um ano sem ganhar ponta de bolor! E, ao comê-lo, "fica-se de bem com os deuses".Um dos "moços" começa a leiloar produtos caseiros, que depressa esgotam. O padre serve o Rei e os Vassalos, os "moços" cortam fa-tias de pão e enchem copos de vinho. Há um brinde a todos os presentes, em nome do povo de Ouzilhão. Chegou o momento em que o Rei deve cessar funções e passar o testemunho. A festa parece terminada quando, de repente, surgem os endiabrados "máscaras" empurrando um velho carro de bois, saltando nas poças de lama, aos berros, e abanando sinetas e chocalhos. Afinal, estão novamente prontos para mais uma noitada de baile.Os deuses foram invocados em Ouzilhão, em nome de boas e abundantes colheitas. Assim o espero. Mas a "Festa dos Rapazes" também representa a determinação desta comunidade em manter bem vivas as suas tradições, mesmo desconhecendo a sua origem e quando começou.
[texto extraído do endereço «http://www.rotas.xl.pt/». Quem deu a conhecer a transmontana Festa de Santo Estevão (dos Rapazes) de Ousilhão na UC foi o Dr. Augusto Monteiro, no "Colóquio A Festa", uma iniciativa da Revista "Vértice" que teve lugar no Auditório da Reitoria da UC nos dias 4 e 5 de Maio de 1990. As comunicações do referido encontro estão publicadas na "Vértice", II Série, Jullho de 1990, pp. 7-66.]
AMNunes

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