domingo, outubro 08, 2006

Os cortejos dos Reis em Coimbra, ontem e hoje...
Por Manuel Dias
[Presidente da Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego]

O Ciclo Natalício, versus celebração do solstício do inverno, representa hoje em dia uma festividade que, com maiores ou menores variantes regionais ou até locais, atinge um significado sócio-religioso de cariz muito peculiar. É por tradição a Festa da Família!
Sem pretendermos fazer uma explanação sobre o que é a Festa do Natal no nosso País, não podemos, no entanto, deixar de referir que a ela está ligada, entre outras tradições, a queima do cepo ou Fogueira do Natal, os Autos do Natal, as Mesas da Consoada, a Ceia da Noite de Natal com os seus manjares característicos, a Missa do Galo e a visita aos Presépios das igrejas onde por vezes eram representados os mistérios da natividade, dos conventos, das instituições ou mesmo de casas particulares, visitas essas quase sempre acompanhadas de cânticos alusivos a esta quadra festiva.
Coimbra não fugiu à regra ... Daí que, era costume ainda nos princípios do século XX, grupos de futricas e de tricanas dirigirem-se aos presépios das igrejas da cidade e mesmo de alguns conventos, onde entoavam cânticos em louvor do Deus Menino!...
Se a alma do povo está intimamente ligada aos calendários solar, lunar e agrário, não há dúvida que a celebração do solstício do inverno tem um valor muito especial para o povo português, especialmente para o das zonas rurais.
Durante milénios e desde a antiguidade, os povos das mais diversas origens e etnias celebravam inúmeras festividades que, sendo consideradas pagãs pela Igreja Católica, foram umas vezes enquadradas, outras adaptadas ao calendário das festividades religiosas. É por isso que, em certas situações, se torna difícil separar o profano do religioso.
Nesses tempos, Coimbra tinha um espaço geográfico muito mais restrito -- Celas, Santo António dos Olivais, Santa Clara, Coselhas, Arco Pintado, etc., diziam-se fora de portas.
Por isso, nos arrabaldes da cidade, de características rurais, a tradição era o cantar porta a porta as Janeiras e os Reis.
Mas esses agregados populacionais de Coimbra, entre muitas outras mais valias, davam também à cidade um pouco das suas tradições populares. Exemplo disso, era a realização do Cortejo dos Reis (no período natalício). a Procissão dos Nús (em honra dos Santos Mártires de Marrocos), extinta em 1798 pelo Bispo de Coimbra D. Francisco de Lemos Pereira por ter perdido o seu desígnio inicial, falta de dignidade e ser motivo de mofa, o Cortejo do Círio da Nossa Senhora da Nazaré (em Agosto), etc.
Ainda nos fins do século XIX e princípios do XX os Cortejos dos Reis em Coimbra eram muito afamados e tinham a participação incondicional da população.
Umas vezes das Lages, outras de Santa Clara, ou dos lados de Vale de Canas lá vinham os Reis em cortejo para a cidade. Eram manifestações populares em que o profano e o religioso se miscigenizavam em perfeita harmonia singela. Daí que a Espera dos Reis se transformou numa tradição do povo da cidade do Mondego.
Estas manifestações populares natalícias eram talvez as únicas que davam à Coimbra de an-tanho uma peculiar vivência e calor comunitário, pois que, vinham famílias inteiras para a Espera dos Reis, na véspera do Dia da Epifania.
Infelizmente, como muitas outras tradições do povo, a Espera dos Reis foi-se diluindo com o avançar dos tempos, até que acabou moribunda nos princípios da década de 40 do século passado.
Segundo registos da época, dois Cortejos dos Reis marcaram as populações coimbrãs. Um situou-se em 1929, foi organizado pelas populações do Dianteiro, Picoto, Tovins, S. Sebastião, Olivais e Celas iniciando-se no Picoto dos Barbados e terminando no Presépio de Santo António dos Olivais. Outro, organizado por Pedro Olaio, em 1939, marcou pela sua magnificência e perfeita organização, tendo saído da Santa Clara, atravessado a Baixa e terminado igualmente no Presépio de Santo António dos Olivais.
As figuras representadas trajavam a rigor, o som dos gaiteiros, o estralejar dos foguetes e a alegria esfuziante da população, que aderia em massa, foram factos inesquecíveis para quem viveu esses momentos de são convívio comunitário.
Os Cortejos dessa época iniciavam-se com um girândola de foguetes e eram sempre precedidos de um Gaiteiro. Neles incorporavam-se rapazes empunhando archotes acesos, corcéis orientais conduzidos à arreata por palafrenis, que transportavam os presentes para o Deus Menino. A seguir vinham os Reis Magos imponentes, cheios de garbo, seguidos pelo seu séquito constituído por pagens e escudeiros e outros nobres. Encerrava este cortejo outro gaiteiro, como manda a tradição das festanças de Coimbra!...
Quando chegavam ao Largo dos Olivais, hoje Largo Padre Estrela, e naquele tempo apenas conhecido por Terreiro dos Olivais, porque era apenas de terra batida, os Reis apeavam-se dos seus cavalos e seguiam com a sua comitiva, entre alas compactas de população, até ao presépio para adorar o Deus Menino.
Em seguida desciam o escadório da Igreja de Santo António dos Olivais e uma vez no Terreiro dos Olivais subiam a um palanque que tinha sido previamente preparado para o efeito.
Recebiam então as aclamações entusiásticas do povo, enquanto se ouvia o estralejar de muitos foguetes. Entretanto, os arautos tocavam a marcha da continência , os lanceiros apontavam armas em sentido e os Reis muito garbosos e deslumbrantes saudavam a frenética populaça!...
Finalmente uma comissão de recepção aproximava-se do palanque pedindo licença para ser lançado fogo preso, o que era imediatamente concedido, para gáudio e alegria dos presentes. Os gaiteiros executavam, noutro palanque engalanado com verduras, várias peças do seu reportório e, por fim, um dos Reis discursava com palavras de muito agradecimento para toda a multidão.
Assim terminava, naquele tempo, o Cortejo da Espera dos Reis na nossa Lusa Atenas.
Graças ao trabalho de uns tantos carolas, como acontecia antigamente, e de maneira muito particular aos agrupamentos de Folclore de hoje, estas tradições populares vão ressurgindo aqui e ali, melhor ou pior recriadas, dando-nos neste princípio de século uma visão, às vezes muito pálida, do que era a vivência dos nossos avoengos.
A Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego (AFERM) tem procurado estimular os ranchos/grupos de folclore seus filiados no sentido de procurarem recriar tão fielmente quanto possível as tradições populares das suas zonas de implantação. Mas, por outro lado, também tem procurado dar o exemplo, vindo a reviver a Feira da Rainha Santa há alguns anos a esta parte, e desde o ano 2000 a recriar o Cortejo dos Reis, realizando-o, como era tradição, na noite de 5 para 6 de Janeiro.
O percurso escolhido tem sido feito a partir Santa Clara até Santo António dos Olivais, tal como se fazia antigamente. Tem tido a intervenção dos Ranchos/Grupos de Folclore seus filiados e de alguns outros convidados, que dentro de um espírito de cooperação e de grande carolice, tentam representar a multidão que outrora acompanhava os Reis.
Não se pretende reconstituir em plenitude o que foram os antigos cortejos mas, tão só, recriar com simplicidade, com muita dignidade, uma faceta da tradição popular de Coimbra e arrabaldes que se perdeu ao longo dos anos.
Embora que modestamente e com muita humildade, deseja-se homenagear o trabalho, a carolice e a persistência de todos aqueles que, quantas vezes com muitas dificuldades financeiras, conseguiram com a sua criatividade organizar estas manifestações populares, que para a época deveriam ter marcado o imaginário dos que ainda estão entre nós.
O Cortejo dos Reis que se realizou este ano teve a participação de vinte e dois agrupamentos de folclore, a colaboração do Grupo de Teatro do Sobral de Ceira, de um grupo de jovens da Ribeira de Frades que encenou um Presépio ao vivo e do Coro da Paróquia de Santo António dos Olivais.
O início do cortejo teve lugar no Rossio de Santa Clara onde a chegada dos Reis foi saudada pelo Rancho Folclórico As Paliteiras de Chelo, Grupo Regional de Danças e Cantares do Mondego, Rancho Típico de Anaguéis e Grupo Folclórico de Torre de Bera, que entoaram cânticos de boas-vindas.
De seguida, precedidos de um gaiteiro, os Reis garbosamente montados em corcéis e ladeados pela sua comitiva rumaram até à Praça 8 de Maio, onde eram aguardados pelo Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra, Rancho Folclórico Regional de S. Paio de Gramaços, Grupo Folclórico de Taveiro, Grupo Folclórico e Etnográfico do Bairro do Brinca, Rancho Folclórico de Penacova e Grupo Folclórico Camponeses do Mondego. Aqui foram ouvidos novos cânticos entoados pelos diversos grupos participantes, na presença de uma pequena multidão de pessoas que quiseram ouvir e ver tudo o que se passava em frente da Igreja de Santa Cruz.
Novamente em marcha lenta, porque o percurso era longo, o cortejo seguiu para a Praça de República onde já era aguardado pelo Grupo Etnográfico de Lorvão, Grupo Etnográfico da Casa do Povo de Souselas, Grupo Folclórico da Casa do Povo de Ceira, Grupo Folclórico e Etnográfico As Tecedeiras de Almalaguês, Rancho Típico da Palheira e Rancho Folclórico do Cercal. Todos entoaram cantigas de homenagem dos Reis Magos, numa cerimónia simples mas de grande significado popular.
Estávamos agora a caminho da Cruz de Celas para mais uma cerimónia de boas-vindas aos Reis Magos com os cantares dos grupos presentes -- Grupo Folclórico de Coimbra, Grupo Folclórico e Etnográfico de Arzila, Grupo Folclórico e Etnográfico da Vimieira, Rancho Folclórico e Etnográfico de Zagalho e Vale do Conde, Grupo Folclórico e Etnográfico de Alfarelos e Rancho Folclórico Camponesas do Alva.
Seguindo-se para o Largo Padre Estrela, sempre entoando cânticos populares, eis que ficámos perante o imponente escadório da Igreja de Santos António dos Olivais.
Os grupos folclóricos subiram até ao topo do escadório formando duas alas laterais. Os Reis desceram das suas montadas, subiram entre o povo até à entrada da Igreja, ladeados e acompanhados pela sua comitiva (elementos do Grupo de Teatro do Sobral de Ceira com os seus archotes) indo entregar ao Menino Deus ouro , incenso e mirra, como manda a tradição. O Grupo Coral da Paróquia de S. António dos Olivais entoava maravilhosos cânticos em honra do Menino Deus e dos Reis.
Frei Eliseu proferiu uma brilhante alocução de boas-vindas que, pela sua oportunidade, eloquência e singeleza, tocou bem fundo no coração de todos os presentes.
Em seguida foi organizado um pequeno cortejo de oferendas dos grupos de folclore intervenientes, entregando-as junto do Menino Jesus que, talvez pelo frio que se sentia e pela demora da chegada, já deitava uma lagriminha de impaciência! O Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra e o Rancho Folclórico de Penacova iam, entretanto, cantando alegres cantigas de louvor, próprias da cerimónia que se estava a viver, enquanto os foguetes ribombavam nos céus de Santo António dos Olivais como que a anunciar a toda a cidade de Coimbra que esta tradição popular da Espera dos Reis não morreu, nem morrerá jamais!
Finda a cerimónia que foi marcada por um grande sentido de dádiva e de fraternidade entre todos os participantes e a população que aderiu, seguiu-se um convívio entre os grupos/ranchos no Pavilhão do Olivais Futebol Clube, recordando a tradição de 1922 em que era servida uma ceia de Reis na então sede do Olivais, em S. Sebastião!...
Foi assim o Cortejo dos Reis no ano 2002 da era de Cristo, na cidade de Coimbra!...
Mas a Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego (AFERM) não conseguia só por si levar por diante esta iniciativa que mobilizou mais de um milhar de pessoas. Somente com a participação de alguns dos grupos/ranchos nela filiados e outras entidades, foi possível concretizar esta grande manifestação popular.Daí ser justo registar que, para além da capacidade mobilizadora da AFERM, este evento não teria sido possível sem o apoio da Câmara Municipal de Coimbra, da Junta de Freguesia e Paróquia de Santo António dos Olivais, da Junta de Freguesia de Santa Clara, da Delegação de Coimbra do INATEL, do Olivais Futebol Clube, da Polícia de Segurança Pública, da Guarda Nacional Republicana, bem como do Grupo de Teatro do Sobral de Ceira, do Grupo Coral da Paróquia de Santo António dos Olivais e do Grupo de Jovens da Ribeira de Frades.
[texto publicado por Manuel Dias no periódico "O Mensageiro de Santo António", de Março de 2002, extraído de «http://www.mensageirosanto.antonio.com/]

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