"Se hace camino al andar" (Antonio Machado).
Era de esperar que a Canção de Coimbra chegasse aqui, mais cedo ou mais tarde, de forma natural.Pode-se pensar que com algum atraso em relação ao Fado de Lisboa, se se atentar, sobretudo, nos fados compostos por Alain Oulman para Amália, de uma complexidade melódica e harmónica tal que os músicos da cantora se queixavam de que não eram fados, mas "ópera"!…). Mas a verdade é que não faltam antecedentes para este género de composições também em Coimbra: a título de exemplo, refira-se a canção No Calvário, de Fausto José e D. José Paes de Almeida e Silva, interpretada por Luiz Goes, em que não se pode deixar de reconhecer a influência poética e musical do lied narrativo, ou lied-balada, romântico. Note-se ainda que muitos dos maiores cantores coimbrãos, como António Menano e Edmundo de Bettencourt, reconheceram explicitamente que no universo das suas preferências musicais o canto lírico ocupava um papel central.
Neste aspecto, o que temos aqui de novo é a criação consciente e esclarecida de um novo ramo, ou subgénero, da Canção de Coimbra, a que poderíamos chamar canção-lied de Coimbra, e que representa uma real aproximação à música vocal de câmara.
A tradição musical académica desta cidade já não é hoje o que era, e, na verdade, nunca o foi, desde o mitológico fundador Augusto Hilário, que cometeu o "pecado original" de estudar música... E o que uma leitura atenta da sua história surpreende, contra o discurso dominante, é, não uma tradição estática e cristalizada, mas o contributo vital, genuíno e inovador de sucessivas gerações de autores e intérpretes (António Menano, Edmundo de Bettencourt, Artur Paredes, Carlos Paredes, José Afonso, Jorge Tuna, João Bagão, Luiz Goes, Octávio Sérgio, para não citar outros mais recentes…
Esta "tradição", no seu sentido mais dinâmico, perpassa também por este disco de Canção de Coimbra. Nem fado-canção, nem balada, mas um pouco destes géneros, mais uma clara influência, aos níveis da composição e da execução, da música vocal de câmara (lied, chanson). Influência que se revela, designadamente, no recurso composicional à forma livre, ou de composição contínua, sempre que o texto não impõe uma forma estrófica; e ainda no estilo sóbrio, intimista, da parte vocal. A forma livre encontramo-la em Fogo Antigo ou Post-Scriptum; já para poemas como O meu lugar ou 5 de Outubro foi adoptada a forma musical estrófica, mais adequada à sua estrutura.
A formação e percursos pessoais destes músicos já permitiam antever uma busca de caminhos novos. Uma busca coerente, que se traduz numa grande homogeneidade de estilo composicional, fruto de uma longa convivência e cumplicidade musicais no quadro do grupo "Tertúlia do Fado de Coimbra". Por momentos, e sem prejuízo da originalidade, é possível apercebermo-nos de conscientes ou subconscientes referentes musicais, como a balada e a canção de Coimbra dos anos sessenta, ou a música instrumental para guitarra de Coimbra na esteira de Artur e Carlos Paredes.
E o que há a destacar, musicalmente, nestas canções?
Em primeiro lugar, a perfeita adequação expressiva e formal da música aos poemas de António Arnaut, que na gravação encontra correspondência numa interpretação correcta e fluente por parte do cantor e dos instrumentistas.
Em segundo, o verdadeiro papel concertante, solista, da guitarra portuguesa em relação ao canto; é na escrita idiomática para este instrumento —designadamente na utilização dos bordões— que é possível descortinar-se uma maior vinculação aos cânones estilísticos da música de Coimbra das últimas décadas. A escrita para guitarra explora aqui essencialmente as qualidades melódicas do instrumento, sem contudo deixar de tirar proveito dos recursos harmónicos que a sua afinação normal possibilita.
Em terceiro lugar, o recurso ao baixo acústico, libertando a viola de acompanhamento (ou guitarra clássica) para o papel de instrumento tenor, e enriquecendo assim o espectro sonoro geral.
Outros aspectos, mais técnicos, haveria a referir, designadamente, em termos harmónicos, a utilização de acordes pouco habituais na Canção de Coimbra, designadamente nonas.
Não se pode deixar de louvar a edição da partitura integral em simultâneo com a saída do disco. É que tem havido uma aversão irracional a associar a Canção e a música para guitarra de Coimbra a qualquer espécie de formação musical, e de registo escrito. Como se não fosse uma música construída sobre as bases de toda a música tonal ocidental, popular ou erudita… E como se a sua difusão no país, ou fora dele, nos inícios do século XX não se tivesse devido, em grande medida, às edições em partitura dos fados e canções de maior sucesso. A crescente popularização do disco e do rádio ao longo desse século, proporcionando uma escuta musical passiva e individual, tornou obsoletas as edições impressas destinadas à execução doméstica ou comunitária como música de salão.
A novidade é, neste aspecto, a edição em partitura integral —e não, como então, em redução pianística—, com um explícito convite à análise e execução musical informadas das dez canções. E um incentivo à edição impressa de nova música, bem como do repertório acumulado pelas sucessivas gerações de cultores da canção e da guitarra coimbrãs. Porque, nos tempos de hoje, já não chega "ter unhas" para tocar guitarra! Responder-se-á assim também à crescente procura, por parte de nacionais e estrangeiros, de música de Coimbra escrita, para fins de execução ou de simples análise ou investigação. Na verdade, muitos de nós temo-nos deparado com a estranheza com que muitos músicos ou investigadores, sobretudo estrangeiros, se dão conta de que este repertório, ao contrário do que se passa com outros géneros de música urbana, como a canção napolitana, ou o tango, ou ainda o rock e o pop, só parcialmente tem sido reduzido a escrito. Não esquecendo a sua dimensão essencialmente sonora, há que admitir que a edição impressa de Canção de Coimbra e de música instrumental para guitarra de Coimbra contribuirá para a sua maior visibilidade, reconhecimento e afirmação, no vasto quadro das músicas ocidentais de raiz urbana. Coimbra e a sua música só terão a ganhar com esta desejável, se não necessária, evolução.
Flávio PinhoEra de esperar que a Canção de Coimbra chegasse aqui, mais cedo ou mais tarde, de forma natural.Pode-se pensar que com algum atraso em relação ao Fado de Lisboa, se se atentar, sobretudo, nos fados compostos por Alain Oulman para Amália, de uma complexidade melódica e harmónica tal que os músicos da cantora se queixavam de que não eram fados, mas "ópera"!…). Mas a verdade é que não faltam antecedentes para este género de composições também em Coimbra: a título de exemplo, refira-se a canção No Calvário, de Fausto José e D. José Paes de Almeida e Silva, interpretada por Luiz Goes, em que não se pode deixar de reconhecer a influência poética e musical do lied narrativo, ou lied-balada, romântico. Note-se ainda que muitos dos maiores cantores coimbrãos, como António Menano e Edmundo de Bettencourt, reconheceram explicitamente que no universo das suas preferências musicais o canto lírico ocupava um papel central.
Neste aspecto, o que temos aqui de novo é a criação consciente e esclarecida de um novo ramo, ou subgénero, da Canção de Coimbra, a que poderíamos chamar canção-lied de Coimbra, e que representa uma real aproximação à música vocal de câmara.
A tradição musical académica desta cidade já não é hoje o que era, e, na verdade, nunca o foi, desde o mitológico fundador Augusto Hilário, que cometeu o "pecado original" de estudar música... E o que uma leitura atenta da sua história surpreende, contra o discurso dominante, é, não uma tradição estática e cristalizada, mas o contributo vital, genuíno e inovador de sucessivas gerações de autores e intérpretes (António Menano, Edmundo de Bettencourt, Artur Paredes, Carlos Paredes, José Afonso, Jorge Tuna, João Bagão, Luiz Goes, Octávio Sérgio, para não citar outros mais recentes…
Esta "tradição", no seu sentido mais dinâmico, perpassa também por este disco de Canção de Coimbra. Nem fado-canção, nem balada, mas um pouco destes géneros, mais uma clara influência, aos níveis da composição e da execução, da música vocal de câmara (lied, chanson). Influência que se revela, designadamente, no recurso composicional à forma livre, ou de composição contínua, sempre que o texto não impõe uma forma estrófica; e ainda no estilo sóbrio, intimista, da parte vocal. A forma livre encontramo-la em Fogo Antigo ou Post-Scriptum; já para poemas como O meu lugar ou 5 de Outubro foi adoptada a forma musical estrófica, mais adequada à sua estrutura.
A formação e percursos pessoais destes músicos já permitiam antever uma busca de caminhos novos. Uma busca coerente, que se traduz numa grande homogeneidade de estilo composicional, fruto de uma longa convivência e cumplicidade musicais no quadro do grupo "Tertúlia do Fado de Coimbra". Por momentos, e sem prejuízo da originalidade, é possível apercebermo-nos de conscientes ou subconscientes referentes musicais, como a balada e a canção de Coimbra dos anos sessenta, ou a música instrumental para guitarra de Coimbra na esteira de Artur e Carlos Paredes.
E o que há a destacar, musicalmente, nestas canções?
Em primeiro lugar, a perfeita adequação expressiva e formal da música aos poemas de António Arnaut, que na gravação encontra correspondência numa interpretação correcta e fluente por parte do cantor e dos instrumentistas.
Em segundo, o verdadeiro papel concertante, solista, da guitarra portuguesa em relação ao canto; é na escrita idiomática para este instrumento —designadamente na utilização dos bordões— que é possível descortinar-se uma maior vinculação aos cânones estilísticos da música de Coimbra das últimas décadas. A escrita para guitarra explora aqui essencialmente as qualidades melódicas do instrumento, sem contudo deixar de tirar proveito dos recursos harmónicos que a sua afinação normal possibilita.
Em terceiro lugar, o recurso ao baixo acústico, libertando a viola de acompanhamento (ou guitarra clássica) para o papel de instrumento tenor, e enriquecendo assim o espectro sonoro geral.
Outros aspectos, mais técnicos, haveria a referir, designadamente, em termos harmónicos, a utilização de acordes pouco habituais na Canção de Coimbra, designadamente nonas.
Não se pode deixar de louvar a edição da partitura integral em simultâneo com a saída do disco. É que tem havido uma aversão irracional a associar a Canção e a música para guitarra de Coimbra a qualquer espécie de formação musical, e de registo escrito. Como se não fosse uma música construída sobre as bases de toda a música tonal ocidental, popular ou erudita… E como se a sua difusão no país, ou fora dele, nos inícios do século XX não se tivesse devido, em grande medida, às edições em partitura dos fados e canções de maior sucesso. A crescente popularização do disco e do rádio ao longo desse século, proporcionando uma escuta musical passiva e individual, tornou obsoletas as edições impressas destinadas à execução doméstica ou comunitária como música de salão.
A novidade é, neste aspecto, a edição em partitura integral —e não, como então, em redução pianística—, com um explícito convite à análise e execução musical informadas das dez canções. E um incentivo à edição impressa de nova música, bem como do repertório acumulado pelas sucessivas gerações de cultores da canção e da guitarra coimbrãs. Porque, nos tempos de hoje, já não chega "ter unhas" para tocar guitarra! Responder-se-á assim também à crescente procura, por parte de nacionais e estrangeiros, de música de Coimbra escrita, para fins de execução ou de simples análise ou investigação. Na verdade, muitos de nós temo-nos deparado com a estranheza com que muitos músicos ou investigadores, sobretudo estrangeiros, se dão conta de que este repertório, ao contrário do que se passa com outros géneros de música urbana, como a canção napolitana, ou o tango, ou ainda o rock e o pop, só parcialmente tem sido reduzido a escrito. Não esquecendo a sua dimensão essencialmente sonora, há que admitir que a edição impressa de Canção de Coimbra e de música instrumental para guitarra de Coimbra contribuirá para a sua maior visibilidade, reconhecimento e afirmação, no vasto quadro das músicas ocidentais de raiz urbana. Coimbra e a sua música só terão a ganhar com esta desejável, se não necessária, evolução.
[texto lido por Flávio Pinho na apresentação do projecto discográfico "Quatro Elementos", anunciado neste Blog em 20/11/2006. Salvo pequenas supressões, este mesmo texto consta do livreto de acompanhamento do cd. O nosso agradecimento ao autor, por ter prontamente acudido à sugestão formulada pelo Prof. José dos Santos Paulo. AMNunes]
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