quarta-feira, dezembro 27, 2006





Museu Digital, Museu Virtual
Olhares sobre a Alta XII
Pormenor da maquete da Cidade Universitária de Coimbra, com a Escadaria Monumental, Praça D. Dinis, Departamento de Matemática, Hospitais da UC e Arco do Triunfo que faria a ligação aos pavilhões da Rua Larga. Parcialmente abandonado na década de 1960, o projecto salienta as diferenças entre o que foi efectivamente construído e o que se pretendia edificar. Fonte: Nuno Rosmaninho Rolo, "O Poder da Arte", Coimbra, 2006, p. 241, imagem 171.



Espalhados por Londres havia apenas outros três edifícios com o aspecto e dimensões semelhantes. Esmagavam tão completamente a arquitectura circundante que do telhado das Mansões Vitória era possível ver os quatro todos ao mesmo tempo. Tratava-se das sedes dos quatro Ministérios entre os quais se repartia todo o aparelho governativo. (…) De todos eles, realmente medonho era o Ministério do Amor (George Orwell, “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, Lisboa, Edições Antígona, 1991, p. 10)

Após a demolição de parte substancial da Velha Alta de Coimbra para edificação da Cidade Universitária, será finalmente possível (re)visitar os espaços desaparecidos com auxílio das novas tecnologias audiovisuais? Esta pergunta, se não é inocente, também não pretende rever-se nos discursos saudosistas/ou bairristas que não cessam de remitificar a Alta. Como tal, este texto deve posicionar-se no domínio do respeito pela memória e identidade dos espoliados, reflectindo necessariamente uma desconfiança acrescida pela invocada bondade de determinados discursos votados ao culto do chefe e à omnisciência de soluções que hoje se afiguram no mínimo discutíveis

[1].
A Alta a que nos referimos conglobava basicamente os antigos zonamentos configurados pelo Bairro Latino (a Alta dos estudantes) e pelo Bairro Salatina (a Alta dos futricas), deixando de fora os espaços que correm da Sé Velha para baixo (dito “Bairro dos Chibatas”) e as ribas do Quebra Costas.
Em Novembro de 2002, a pretexto e a contexto de uma exposição documental e fotográfica realizada no Museu Machado de Castro por alturas do Primeiro Centenário do Guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, a Directora daquela instituição, Dra. Adília Alarcão procedeu a um levantamento territorial bastante rigoroso da Velha Alta, serpenteando o lápis pela Couraça de Lisboa, Santo António da Pedreira, Rua Borges Carneiro, Beco das Condeixeiras, Rua do Loureiro, Rua Doutor João Jacinto, alto da Couraça dos Apóstolos, Largo Marquês de Pombal e Praça D. Dinis. Na opinião dos Salatinas, para quem é curial a distinção entre o Bairro Salatina e o “Bairro dos Chibatas”, não seria de descer tão acentuadamente em direcção ao Sousa Bastos e Governo Civil. Lá em baixo já era outra coisa…
Demolida a Alta, como e quanto será possível “recuperar” da sua memória visual em termos patrimoniais e identitários?
A questão tem de ser forçosamente pensada em momento de candidatura do Paço das Escolas e Alta de Coimbra a Património da Unesco. E as traves mestras desta reflexão serão tão mais ricas e abrangentes quanto reflectirem a capacidade de perspectivar a Universidade, a Academia e os espaços Salatinas. Se iniciativas como a Feira dos Lázaros (Largo D. Dinis), as Fogueiras do São João (Largo Marquês de Pombal), a Feira Medieval e a Serenata Monumental da Queima das Fitas (Largo da Sé Velha) não abrem fábricas nem geram empregos, serão contudo empreendimentos culturais menores quando comparados com o teatro de rua que vimos junto ao cosmopolita Beaubourg (Centre Pompidou)?
Em 2001-2002, quando se levou a cabo um trabalho de recolha sobre a vida e reportório guitarrístico do barbeiro salatina Flávio Rodrigues da Silva (1902-1950), não deixei de expressar aos membros da Comissão OS SALATINAS as minhas preocupações face a dois problemas ainda não dilucidados a contento:

a) haveria que romper o pesado mutismo dos salatinas administrativamente expropriados e deportados pelo Estado Novo, convidando-os através de recolhas orais a prestarem testemunhos e a facultarem cópias de fotografias relativas ao quotidiano da Velha Alta. Neste particular ainda consegui que o Dr. Augusto Alfaiate entrevistasse longamente um antigo morador da Alta, testemunho já divulgado no Blog “guitarradecoimbra”, tendo o Sr. Carlos Alberto Dias procedido à recolha de fotografias particulares, entretanto digitalizadas na Imagoteca Municipal. Convenhamos que o feito é muito pouco, quando comparado com o que se poderia fazer;
b) a Universidade de Coimbra teria de colocar a “mão na consciência”, assumindo perante os salatinas espoliados uma palavra a posteriori. Não propriamente um “mea culpa”, mas um consciente assumir da sua quota parte das responsabilidades. Uma tentativa saudável de saramento das velhas feridas passaria pelo descerramento de um Monumento aos Salatinas em espaço condigno da Velha Alta.

Entre 25/11/2005 e 01/03/2006 seriam dados importantes passos no sentido de se implementar um Comissão Provisória Pró-Monumento Salatina, para a qual foram convidadas figuras da cultura coimbrã. Incumbido de assumir funções de consultor, bem como de secretário da primeira comissão provisória, até à entrada do Verão-2006 consegui contactar quase todos os membros da Comissão de Honra, havendo concordância quanto à rentabilização do extenso muro da Rua das Covas, situado entre o Museu Machado de Castro e as traseiras do edifício da Faculdade de Letras, como local de implantação do monumento a definir.
Porém, a minha indisponibilidade pessoal como que fez gorar o almejado andamento do projecto. Em conversas mais recentes com Nuno Rosmaninho Rolo voltei a levantar a questão. Dado o envelhecimento do álbum fotográfico “A Velha Alta Desaparecida”, e não existindo em parte alguma da Alta um memorial que homenageie condignamente os expropriados e deportados às ordens do Estado, não seria o momento de converter a tese “O Poder da Arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra” num guião para a realização de um ROTEIRO DIGITAL/VIRTUAL DA ALTA? Nuno Rosmaninho Rolo remeteu-me, com modéstia, para os conhecimentos e imagens pacientemente estudadas por Alexandre Ramires. Entre os saberes de Nuno Rosmaninho Rolo e Alexandre Ramires e os eventuais contributos da História da Arte e da Arquitectura da UC, estará a chave da resposta para uma reconstituição virtual da Alta, com base em tecnologias que permitam visualizar o que era, as transformações operadas, os sons, as cores, os interiores e até as vivências académicas e populares que animavam as ruas e largos. A continuada reflexão sobre esta questão, sem perder de vista a aquidade de um memorial objectivável numa qualquer matéria prima, diz-me que as boas opções passarão por um projecto mais abrangente do tipo Museu Digital.
Não pretendendo entrar em minudências e querelas já suficientemente estudadas, o caso da Cidade Universitária de Coimbra remete para uma omnipotência totalitária que não respeitou nem o sítio, nem a sua história, nem as comunidades humanas/e culturais que nele habitavam.
Já se tem argumentado que o Estado Novo estimava os sítios e as tradições, faceta só em parte corroborável. Sempre que estivesse em causa o “superior interesse do Estado”, as tradições claudicavam, especialmente quando se tratava de olhar para formulações arquitectónicas não situáveis na categoria de “monumento digno”. Um entendimento deste tipo era comum ao Ministério das Obras Públicas do regime italiano. Os técnicos do regime de Mussolini que restauraram monumentos e escavaram Herculano foram os mesmos que arrasaram sem dó nem piedade os espaços edificados entre o Coliseu e o novo monumento ao Rei Victor Emanuel II.
Caso de menor escala, quando comparado com a Alta de Coimbra, foi o da deportação forçada do povo de Vilarinho das Furnas, a nordeste de Terras do Bouro, com consequente submersão da aldeia sob as águas da barragem em 21 de Maio de 1972. Se em Coimbra pouco resta para ver (arco do Aqueduto demolido, rochedos escavacados junto aos alicerces dos Colégios de São Jerónimo e das Artes), em Vilarinho, quando o nível das águas da barragem baixa, as ruínas não deixam de impressionar…
O Património tem suscitado diferentes entendimentos, conforme os ecossistemas culturais e os regimes políticos. Enquanto o governo português arrasava a Alta de Coimbra e se preparava para submergir Vilarinho das Furnas, entre 1960 e 1963 a Unesco desenvolveu intensa campanha internacional em prol da salvaguarda dos monumentos faraónicos núbios. O exemplo mais conseguido e conhecido é o do Templo de Ramés II, em Abou Simbel, desmontando por blocos a partir de Agosto de 1965 e inaugurado no novo local em 22 de Setembro de 1969. Relativamente à França, é bem conhecido o problema da degradação das pinturas rupestres da Gruta de Lascaux. Descobertas em 1940, o perigo de degradação das pinturas levou o governo francês a optar pelo encerramento das galerias ao público em 1955. Em 1983, a cerca de 200 metros das grutas originais, o Ministério da Cultura de França inaugurou uma réplica fiel, visitável e fotografável, Lascaux II.


Portugal, pós-1974: em 1998 arrancam as obras de construção de Aldeia da Luz, Concelho de Mourão. O processo de transferência das populações decorreu entre 26/06/2002 e 01/04/2003 sem sobressaltos. O projecto (Nova) Aldeia da Luz, não sendo perfeito, caracterizou-se por atitudes acrescidas de correcção e de respeito pela comunidade afectada, a sua arquitectura tradicional, as suas crenças religiosas, os seus artefactos do quotidiano e a memória dos seus mortos. Corolário deste respeito pela “memória e identidade” foi a inauguração Museu da Luz em Novembro de 2003.
Por seu turno, a Câmara Municipal de Terras do Bouro, deu cobertura a um projecto museulógico iniciado em 1981, e inaugurado em 1989 com a designação de Museu Etnográfico de Vilarinho.
Quanto a Coimbra, sem sinais de museu nem de monumento, assinalam-se passos lentos mas decisivos. Não vale a pena persistir em transformar a memória do perdido em “muro de lamentações”. O contexto das demolições, transformações, meandros políticos e humanos que sustentaram o projecto, encontram-se estudados por Nuno Rosmaninho ROLO na sua tese de doutoramento “O Poder da Arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra”, Coimbra, Imprensa da UC, 2006.
Na recta final deste importante estudo, Nuno Rolo abre a porta à “Alta de volta”, dando conta da aprovação de um projecto de requalificação urbana da autoria do arquitecto Gonçalo Byrne (1997). Em meados de 2006 voltou a falar-se da reabilitação e requalificação patrimonial da Alta, focalizando as atenções no futuro Tribunal Judicial Universitário Europeu (Colégio da Trindade) e na abertura de um Parque de Estacionamento nas catacumbas da acrópole.


A memória da Velha Alta não tem deixado de “estar de volta” desde a década de 1950, por acção do corpo redactorial da revista de antigos estudantes RUA LARGA e das primeiras exposições fotográficas retrospectivas então promovidas. Na década de 1980, foram momentos decisivos na reabilitação da memória diversos projectos de animação de rua:

-Maio de 1978: Primeiro Seminário Sobre o Fado de Coimbra e Serenata Monumental na Sé Velha;
-a retoma da Queima das Fitas dos Quartanistas da Universidade de Coimbra, realizada no antigo Largo da Feira dos Estudantes em Maio de 1980;
-a reabilitação da Imposição de Insígnias dos Estudantes, das Latadas, da Tomada da Bastilha e Cortejo da Queima das Fitas, eventos que em determinadas datas do ano escolar colocam a Alta em polvorosa;
-a restauração do cerimonial universitário no reitorado de António Ferrer Correia (1976-1982), com o retorno da Abertura Solene, doutoramentos honoris causa (Karl Carstens, Direito, 17/01/1980) e imposições de insígnias aos novos doutorados;
-a edição do álbum fotográfico “A Velha Alta Desaparecida” (1984), iniciativa da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra;
-a realização das Fogueiras de São João no Largo do Salvador em Junho de 1986 e Junho de 1987, pelo Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal;
-o “Primeiro Encontro Sobre a Alta de Coimbra”, em Outubro de 1987;
-reconstituição da Feira dos Lázaros no espaço do antigo hospital dos leprosos (Largo D. Dinis) no último domingo antes da Páscoa;
-realização da Feira Medieval de Coimbra no Largo da Sé Velha desde Junho de 1992;
-13/06/1993: Sessão de Homenagem ao Guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, retomada com outros desenvolvimentos em 10/11/2002

[2].

Se aos 20 anos já me custava galgar as Escadas Monumentais, o que dizer agora? Quando penso na dimensão humana do escadório que ligava a Ágora de Atenas à Acrópole, ou em propostas portuguesas bem mais recentes como os escadórios de lanços do Santuário do Bom Jesus (Braga), Santuário de Nossa Senhora dos Remédios (Lamego, 686 degraus e 9 lanços), ou o Elevador de Santa Luzia (Viana do Castelo, 1923), só posso duvidar da bondade da maior parte das soluções implementadas na Velha Alta.
Notas
[1] Como tal, não partilho das hipóteses sociológicas aventadas no escorso de Aníbal Frias e Paulo Peixoto, “O Reencantamento da Cidade. Representação Imaginária da Cidade. Processos de Racionalização e de Estetização do Património urbano de Coimbra”, www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/183/183.pdf (comunicação feita no Porto, em 2001). E neste distanciamento incluo a tentativa discutível de definição de Praxe e o desconhecimento dos motivos da escolha do local de realização da Feira dos Lázaros. Não há relação directa entre a animação de espaços urbanos "mortos" por via de recriações histórico-teatrais e sintomas de perda de importância da cidade. Nem sequer estamos perante encenações imobilistas, reaccionárias ou avessas ao "progresso" urbano, mas perante iniciativas cívicas apostadas na dinamização cultural e na positivação de momentos de fruição cultural-ecológica. Em tempos de "choque tecnológico", as leituras sociológicas prestam-se a ínvias exercitações píticas, com desbragada instalação de agentes nos meandros do poder. E é precisamento de campos de especialização dominados pela Sociologia e pela Economia que emergem hodiernamente nos cenários do poder os mais assanhados defensores do regresso à barbárie liberal anterior à Crise de 1929 e à manipulação maquiavélica e despudorada da opinião pública. Caso para dizer, "são boaventuranças, senhores!"
[2] Também na Baixa são de assinalar actividades de animação cultural: Feira das Cebolas, Feira das Velharias, Cortejo da Chegada dos Reis Magos, Procissão dos Nus, Fogueiras do São João, além das Festas da Rainha Santa. Os projectos de dinamização de quadros históricos, cenas bíblicas e etnográficas, não se podem considerar apenas derivados da pós-modernidade ou dos regimes autoritários do século XX. Os quadros com figurantes vivos e animais, representado cenas do Presépio e Estações da Via Sacra, remontam em certas comunidades católicas à Idade Média. Os "teatros" portugueses e espanhóis que anualmente recriam combates entre mouros e cristãos também se realizam desde a Idade Média. Cenas etnográficas como a ida ao moinho, a matança do porco, a lavadeira, a romaria ou a arruada dos gaiteiros, ocorrem em diversos presépios barrocos portugueses (que por sua vez se inspiram em propostas napolitanas coevas). Na Grã-Bretanha está fortemente enraizado o costume de grupos de actores e de amadores recriarem batalhas, entradas régias, momentos da vida do clero, nobreza e povo, para tanto existindo extensos recursos no tocante a ensaiadores, cenaristas e guarda-roupas de época. Pelo menos desde a década de 1960 que os britânicos articulam as suas reconstituições históricas com projectos pedagógicos escolares, influência que se começou a registar em escolas portuguesas desde a década de 1980 (Feira de São Martinho, Feira Medieval, Janeiras).

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