domingo, janeiro 07, 2007

Ainda acerca do papel da mulher na canção de Coimbra…

2º texto retirado do caderno que acompanha o CD de Cristina Cruz. Texto enviado por Paulo Larguesa.
Estranhamente, em pleno século XXI, a polémica em torno do papel da mulher na canção de Coimbra ainda é uma realidade. Esta questão, extemporânea, deve ser integrada numa problemática mais vasta, pois tem a ver com discriminações relativas a tudo o que é considerado elemento exógeno a uma ficção, criada por alguns puristas da canção de Coimbra, designada por “Sociedade tradicional académica”. Neste pequeno apontamento centrar-me-ei somente na discriminação feminina. Sou mulher, cidadã, pessoa e, por acaso, frequentei a Universidade de Coimbra, mas, apesar disso, esses puristas consideram ser ilegítima a possibilidade de poder ser cultora da canção de Coimbra, dado este género artístico ser “na sua essência e estrutura original (…) inequívoca e indiscutivelmente masculino”.
Qual seria a situação das mulheres actuais se lhes fosse vedada toda e qualquer actividade de origem “inequívoca e indiscutivelmente masculina”!? Continuariam recatadas no “gineceu”, a exercer meramente tarefas domésticas, sem poderem desenvolver todas as suas potencialidades como pessoas que são, dotadas de eminente dignidade, como qualquer “macho”, possuidoras de uma vontade autónoma, de criatividade, de motivações, … não seriam políticas, engenheiras, médicas, jornalistas, advogadas, artistas de jazz, artistas em geral, escritoras, filósofas, polícias, professoras, cientistas, … O ser humano, enquanto ser espácio-temporalmente situado, vai evoluindo historicamente e qualquer tentativa de abolir o progresso será esquizóide, lunática, … Todas as áreas da actividade humana sofrem as mutações que o horizonte epocal lhes determina, porque não somos coisas, somos seres inteligentes, conscientes, motivados, emocionais, criativos, … Aquando da polémica “Manuela Bravo” em 1996, houve alguns conservadores que referiram ser “uma aberração histórica” qualquer apropriação feminina do património artístico que é o fado de Coimbra; pois eu reformulo, dizendo que aberração histórica é não querer acompanhar a renovação endógena da tradição, é continuar a não dar crédito ao convite kantiano (já velho de três séculos) “Ousa pensar” e perpetuar a menoridade mental que não nos deixa ser autónomos, que nos faz escravos das ideias feitas e dos preconceitos, dum passadismo e machismo serôdios que negam a própria essência do ser pessoa como ser autónomo, livre, crítico, aberto e singular. Se estes intolerantes e fundamentalistas não ousam pensar por si, pelo menos deveriam escutar a voz de pessoas reconhecidas internacionalmente pelas suas competências intelectuais e artísticas, como Boaventura de Sousa Santos, Carlos Fiolhais, Manuel Alegre, Elísio Estanque e outros, que, desafiando-se a si próprios, criaram ciência e arte, actividades consentâneas com espíritos que reflectem, que duvidam, que questionam o óbvio, que problematizam, que não aceitam a superficialidade e que já mostraram a sua indignação relativamente aos argumentos falaciosos e machistas dos puristas da canção de Coimbra. Nem vale a pena aduzir argumentos como o facto de, neste momento, a Universidade de Coimbra ter mais alunas do que alunos, pois não me parece que essa seja a questão central. Com efeito, o problema fulcral prende-se com o desrespeito por um conjunto de seres humanos, as mulheres, que têm o mesmo direito inalienável que os homens de se expressarem artisticamente. Quando a criação e a expressão artísticas não são livres, é porque a sociedade que as cultiva é prepotente, ditatorial, não respeitadora dos direitos de cidadania, … e nós queremos, em Portugal, que as conquistas de Abril sejam uma realidade!
Não esqueçamos que estamos também em época de globalização, e esta deverá ser encontro, fusão e não é, necessariamente, perda da identidade, pois esta, seja individual ou cultural, constrói-se na dialéctica entre o eu e o outro, implicando, simultaneamente, diferenciação e influência, e não me parece que Coimbra possa ficar isolada deste processo, como algo transcendente e imune às vicissitudes da história, por isso, consequentemente, a sua canção sofrerá, obrigatoriamente, influências exteriores.
Para terminar este pequeno apontamento, gostaria de acrescentar que, se o século XX foi, assumidamente, “o século das mulheres”, como diz Victoria Camps, o século XXI será o reforço dessa assunção e, por isso, o processo de apropriação feminina da canção de Coimbra será irreversível. Se isto agradar aos fundamentalistas, será assim, mas se não lhes agradar, será assim também!

Alice Alves

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