segunda-feira, janeiro 08, 2007

As Tradições Académicas Portuenses

As Tradições Académicas Portuenses *


À memória do Doutor Amândio Joaquim
Tavares (1900-1974), lente de Medicina,
Reitor da Universidade do Porto (1946-1961)


Cursei História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (UP) entre 1968 e 1973. Fui, nesses anos, membro do Orfeão Universitário do Porto (OUP). Fui também – e às vezes ainda sou – executante de viola de acompanhamento da Guitarra de Coimbra. Conheci portanto – e vivi – a fase final de determinadas práticas estudantis, antes da interrupção verificada nos anos 70 (1971-1978). O que possa dizer sobre o assunto radica assim mais no vivido do que propriamente em pesquisa de fundo.
Nesses finais da década de 60, o ensino universitário portuense estava ainda consideravelmente concentrado no espaço que em tempos designei como «dos Clérigos ao Carregal». Como é de conhecimento relativamente corrente, a UP surgira em 1911, no quadro das reformas operadas pelo Governo Provisório da República, onde António José de Almeida ocupava o Ministério então tutelante do sistema educativo: o do Interior. É evidente que o novo Estudo Geral não surgira propriamente do nada: desde a segunda metade do século XVIII que algumas Escolas superiores se tinham afirmado na Cidade. E os anos 20 e 30 do século XIX haviam assistido à sua consolidação, particularmente com as reformas de Passos Manuel (1836-1837). Ao surgir como tal, a UP iria compreender a Faculdade de Ciências (herdeira da Academia Politécnica) e a Faculdade de Medicina (sucessora da Escola Médico-Cirúrugica); esta última tinha anexa uma Escola de Farmácia, autonomizada em 1915 e ganhando o estatuto de Faculdade meia dúzia de anos depois; enquanto que da Faculdade de Ciências cedo se destacaria uma Faculdade «Técnica», designada «de Engenharia» desde a segunda metade dos anos 20. As restantes Escolas superiores surgiriam bem mais tarde: Economia em 1953; e Letras (com uma efémera primeira experiência entre 1919 e 1931) em 1962.
Em 1968 a maioria das Escolas estava ainda sediada em edifícios localizados em ruas e praças dentro do perímetro que atrás mencionei, ou não muito distanciadas dele: no edifício do antigo Largo do Carmo, ao tempo já crismado de Praça Gomes Teixeira (assim se perpetuando o matemático célebre que foi o primeiro Reitor da UP), sediavam, para além da Reitoria e da Secretaria-Geral, a Faculdade de Ciências e, no último piso, a Faculdade de Economia (que aí permaneceu até 1974); não muito longe, no antigo edifício de Medicina (actual sede do Instituto de Ciências Biomédicas «Abel Salazar»), estava justamente a minha Escola, partilhando no entanto o imóvel com Ciências (departamento de Química), Economia, uma cantina do então Centro Universitário do Porto (actuais Serviços Sociais da UP) e as sedes do Orfeão Universitário (OUP, com raízes em 1912, existindo sem soluções de continuidade e com esta designação desde 1942), do Teatro Universitário (TUP, fundado em 1948) e do Coral de Letras (CLUP, fundado em 1966); não excessivamente longe estavam Engenharia (na Rua dos Bragas) e Farmácia (na Rua Aníbal Cunha); e só Medicina (no Hospital de S. João desde 1959), o Jardim Botânico (ao Campo Alegre) e o Estádio Universitário (idem) se localizavam claramente alhures. Mas as distâncias levavam obviamente muito menos tempo a percorrer no Porto dessas eras. Para além do que, estando determinados serviços plenamente centralizados no edifício dos «Leões», todos os estudantes regularmente teriam que passar pela zona; acrescendo que os primeiros anos de Medicina e de Belas-Artes tinham então cadeiras em Ciências; e que a segunda daquelas Escolas – só muito mais tarde integrada na UP – via no entanto os seus escolares participar nas actividades dos Organismos culturais e desportivos.
Ou seja: não havendo então no Porto qualquer espécie de «campus» ou «cidade universitária», durante décadas a maior parte das Escolas e Organismos (acrescidos de cafés e restaurantes de frequência estudantil, lares e residências) permaneceu numa área relativamente bem delimitada da Urbe. E se em Portugal uma torre podia simbolizar um Estudo, a dos Clérigos ali estava, bem perto: e não foi por acaso que a obra de Nazoni por tantas vezes serviu de motivo aos cartazes da «Queima das Fitas» nos anos 50 e 60.
Num limitado espaço, portanto, todo um viver estudantil; que a dado momento se terá plasmado em práticas bem próprias (musicais, teatrais, lúdicas, simbólicas…), permanentes umas, sazonais outras. Desde quando ? É a pergunta a que a tal pesquisa de fundo, que ainda não temos, um dia dará resposta. Mas creio bem que as raízes vêm do século XIX, do tempo da Politécnica e da Escola Médico-Cirúrgica. Memória vaga tenho de fotos de 1900 e pouco, retratando Mestres e finalistas da Politécnica; a par das becas magistrais, as capas e batinas lá estão (bem como uma interessante componente de de uniformes militares, que julgo reportarem-se a aspirantes às então Escolas de Guerra e Naval, cursando os chamados «Preparatórios»); e continuidades não iriam faltar, particularmente na década de 30.
O Orfeão Académico (com existência intermitente até aos anos 40) teve o seu ‘minuto zero’ logo em Maio de 1912. Festividades marcando momentos vários do ano lectivo estão documentadas para os anos 20, havendo quem localize as primeiras «Queimas das Fitas» (nos moldes que iriam depois perdurar) no final da década seguinte. Pela mesma altura ou pouco antes, creio, se poderá datar a prática do Canto e da Guitarra de Coimbra na UP (como em tantos Liceus do Norte, Centro e Sul do País), numa ‘aculturação’ facilitada pelo facto de estudantes de Engenharia com os «Preparatórios» feitos em Coimbra virem concluir a licenciatura no Porto (1). De alcance mais pontual, lembre-se também que, entre 1928 e 1968, a Faculdade de Farmácia da UP foi a única do País: as então Escolas Superiores de Farmácia da UC e da UL ministravam somente o «Curso Profissional» (3 anos); e quem quisesse concluir a licenciatura teria que rumar ao Porto; António Brojo (1927-1999), por exemplo – Mestre de Farmácia e da Guitarra –, era licenciado e doutor pela UP.
Especificidades na Tradição portuense ? Talvez. Embora não me pareça esta questão, potencialmente ‘bairrista’, uma das que mais importe esclarecer. Mas sim, haverá algumas. Veja-se a longa existência de uma Orquestra de Tangos – primeiro autónoma, depois integrada no OUP – dos anos 30 aos anos 70; e com uma qualidade que lhe permitiu gravar três discos 45 RPM entre 1959 e 1966; mencione-se também a pioneira inclusão de vozes femininas num coro estudantil (Orfeão Académico, 1937; OUP, 1942 ss.); e, na mesma linha de ideias, não se esqueça ainda a pioneira adaptação da batina em saia-casaco preto…
Foi um pouco de tudo isto o que eu ainda conheci e vivi há cerca de 30 anos.
Como o leitor facilmente depreenderá, não me reconheço hoje em muito do que vejo na Cidade em matéria de Tradições Académicas. O tempo é outro, os lugares também; e as Instituições multiplicaram-se (Ensino Superior Universitário e Politécnico, Universidade do Estado, Ensino Superior Privado, Cooperativo e Concordatário, etc.).
Mas não será a expressão das minhas assintonias o que mais importe no fechar desta nótula. Por força das incidências curriculares da minha área de especialização, costumo reger disciplinas dos dois primeiros anos da licenciatura. Em tempo de efémeros, há algo de indescritivelmente agradável no reencontro com finalistas que me solicitam o autografar das fitas e/ou o apadrinhamento da imposição da cartola. Este virar de mês, onde facilmente coexistem a calidez das tardes e a frescura das noites, é pois tempo de afectos múltiplos e de libertação expressiva. Sempre gostei desta altura do ano: também por isso…
NOTAS:
* Reed. de um artigo dado à estampa no Público (1998/05/10), caderno «Local/Porto», p. 48.
(1) Só em 1970 houve em Coimbra licenciaturas em Engenharia.
Armando Luís de Carvalho HOMEM

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