Miguel Baptista Pereira (1929-2007)
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Faleceu Miguel Baptista Pereira
Por Lídia Pereira (06/03/2007)
Quem o conheceu e o teve como mestre não tem dúvidas. Miguel Baptista Pereira foi um dos grandes vultos da Filosofia em Portugal. O professor jubilado da FLUC faleceu segunda-feira.
Miguel Baptista Pereira, uma das grandes referências do século XX português na área da Filosofia, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, faleceu segunda-feira com 77 anos. Em câmara ardente na capela da Universidade de Coimbra desde ontem, o seu funeral sairá hoje, às 10H30, para o cemitério de Bagunte, Vila do Conde, de onde era natural.
Personalidade marcante para todos os que com ele conviveram, Miguel Baptista Pereira cultivou durante toda a sua vida uma postura de afastamento das "grandes tribunas da fama pelas quais nutria um explícito e assumido desprezo", como fez questão de sublinhar João Maria André, seu discípulo e depois seu par no Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E só por essa razão, como todos reconhecem, o professor de Filosofia que nunca abandonou colegas ou alunos, mesmo em tempo de repressão e sob a ameaça de represálias, não tem hoje direito à mais larga mediatização da sua influência e pensamento.
Nascido a 10 de Maio de 1929 em Bagunte, Vila do Conde, Miguel Baptista Pereira fez os seus primeiros estudos estudos no Seminário de Braga, onde foi ordenado sacerdote. Ingressando alguns anos depois na Universidade de Comillas, em Santander, Espanha, chegou a Coimbra para concluir a licenciatura em Filosofia. Já na Faculdade de Letras, Miguel Baptista Pereira foi o arguente da tese de José Afonso. Tendo prosseguido os seus estudos na Alemanha, defendeu a sua tese de doutoramento em 1967, num texto – "Método e Filosofia em Pedro da Fonseca" – que foi um "ajuste de contas com todo o pensamento ocidental".
Contratado como professor na Faculdade de Letras, na década de 60 tomou sempre o partido dos estudantes contra a repressão instalada, à semelhança de amigos como Orlando de Carvalho, Victor de Matos ou Paulo Quintela, o que viria a valer-lhe um forte travão na carreira. Após o 25 de Abril, Miguel Baptista Pereira pertenceu aos órgãos directivos da Faculdade de Letras e a sua obra passou por publicações como a Biblos e a Revista Filosófica de Coimbra. Conselheiro da Gulbenkian, o professor deu nome a um prémio anual da Fundação Engenheiro António de Almeida. Aquando da sua jubilação, foram publicadas duas obras: "Ars Interpretandi – Diálogo e Tempo" e "O Homem e o Tempo".
Declarações
Na figura de Miguel Baptista Pereira e no modo particular que assumiu a sua intervenção, na Faculdade de Letras e fora dela, ao longo de muitos anos, concentram-se o presente e o futuro, vividos ou pressentidos, reais ou utópicos, da Universidade portuguesa, da ideia de Universidade e da importância histórica da filosofia. Mas não é fácil uma síntese de poucas linhas. Se a Hermenêutica, que constitui o terreno filosófico onde se instalou, obriga a uma permanente reavaliação do passado em busca do que nele ainda permaneça inconcluso ou impensado, é uma análise radical do presente em permanente tensão para o futuro que constitui o tema favorito do seu trabalho e confere coerência à sua intervenção, pelos menos desde os meados da década de 60: como texto seminal, uma obra de Heidegger, Ser e Tempo; como problemática essencial, o conceito de "experiência", onde o pensamento é interpelado pelo real e responde; como preocupação decisiva, a distinção entre o que no presente ainda transporta o passado ou já prefigura o futuro; como lugar por excelência de exercício desta análise, a Universidade, sempre, mesmo quando, nos seus melhores momentos, aspirava revolucionar-se.
Os seus alunos puderam conhecer autores fundamentais antes de se tornarem moda (Adorno, Benjamin, Gadamer, Hanna Arendt) porque Miguel Baptista Pereira manteve intacta uma relação com a novidade e com o futuro, que resultava directamente de uma funda, séria e, diria, cândida confiança no pensamento e na filosofia, que o levou a empenhar-se seriamente na reforma dos estudos filosóficos, marcando época.
Uma confiança que, por outro lado, (ou é o mesmo?) alimentava a melancolia e a esperança, a alegria e o riso, a candura e a revolta de tantas palavras, atitudes, gestos, olhares. Hoje, é tudo isto que nos deixa um pouco menos sós.
António Pedro Pita
Miguel Baptista Pereira foi um mestre e um amigo para gerações e gerações de estudantes e de docentes que passaram pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Aliava a uma densa e profunda informação cultural e filosófica uma excelente e singular capacidade de pensar e uma notável aptidão para ensinar. Foi com ele que muitos de nós aprendemos a pensar filosoficamente o mundo, a vida, o homem e o tempo. Quem teve a oportunidade de seguir as suas aulas, de acompanhar a sua intensa produção filosófica ao longo de décadas e de conviver com o seu sentido crítico do pensamento e da realidade não pode deixar de lamentar o desaparecimento de um dos maiores vultos filosóficos do pensamento português na segunda metade do século XX.
Nenhum momento da História da Filosofia, desde a Antiguidade à Época Contemporânea, nenhuma das grandes disciplinas filosóficas, com especial incidência na Hermenêutica, na Antropologia, na Ética e na Filosofia da Cultura, ficaram fora da sua investigação e do pensamento que desenvolveu nos seus livros e, sobretudo, em dezenas e dezenas artigos de notável densidade e penetração.
Além disso, atento ao homem concreto, à vida e à sociedade, foi sempre um combatente pela liberdade, de pensamento e de acção, e, por isso, quando as circunstâncias eram adversas nunca deixou de estar ao lado de estudantes e colegas na luta contra o regime ditatorial que o 25 de Abril conseguiu vencer. Só a sua aversão às grandes tribunas da fama pelas quais nutria um explícito e assumido desprezo fez com que não seja hoje amplamente reconhecido a nível nacional como aquilo que realmente é: um dos maiores vultos da Filosofia em Portugal no século XX.Mas quem com ele conviveu e teve o privilégio de o ter como amigo guarda ainda outras marcas gratas da sua presença: a generosidade, o entusiasmo e a alegria de viver. É não apenas no pensamento que nos legou, mas nessa memória festiva que ele hoje continua também dentro de nós.
João Maria André
[texto extraído de «As Beiras» on line, edição 4ª feira, 07 de Março de 2007, http://www.asbeiras.pt/, AMNunes]
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