Fado Académico
Carminé Nobre, "Coimbra de Capa e Batina", Tomo I, Coimbra, Atlântida, 1937, págs. 65-69. Carminé Nobre veio frequentar o Liceu José Falcão, de Coimbra, por 1919, tendo feito o curso da Escola Normal (Magistério Primário). Cunhado do cantor e guitarrista Francisco Serrano Baptista, fundador dos grupos musicais Karminoff e Hulla’s Players, jornalista do Diário de Coimbra, acompanhou muito de perto a vida académica. Faleceu vitimado por um acidente de viação em 1946. A crónica narra a fundação do Fado Académico de Coimbra (1930-1938), agremiação de cantores e de guitarristas que não pode ser entendida como uma escola de ensino-aprendizagem.
Coimbra foi sempre a terra dos cantores. O seu fado, o Fado de Coimbra, já percorreu o mundo inteiro, pelas vozes de Menano, Paradela, Junot, Goes e Bettencourt.
Tem as suas características inconfundíveis, impregnadas dum romantismo sem igual, que não destilam tragédias horrorosas, mas que nos falam de amor, sentimento e saudade, trilogia sagrada que sempre viveu nas almas sonhadoras dos estudantes de Coimbra.
Hilário, o protótipo do estudante sentimental do seu tempo, passou à posteridade por ter cantado o fado – o seu fado – sentido e triste, aquela canção que o acompanhou até que a sua voz se extinguiu para não mais cantar:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra
A forma dum coração,
A forma duma guitarra!
Não tem este fado pretensões a Canção Nacional, a um primeiro plano no vasto e riquíssimo folclore português. É simplesmente o Fado de Coimbra, e isso basta, para o definir e consagrar.
Coimbra escutou e sentiu através de todas as gerações o seu fado, sentimental sem ser piegas, romântico sem fatalismos lúgubres.
Ouviu-o o Choupal em noites brilhantes de luar. Sentiram-no os seus Penedos em momentos repassados de poesia, escutou-o a Rainha Santa quando, do outro lado do Mondego, uma voz se elevava nos céus, cantando com suavidade a prece:
Eu ouvi de Santa Clara,
Lamentos de alguém que chora:
Era a Rainha pedindo
Por mim a Nossa Senhora.
O Menano deixou Coimbra, cantando o fado. O Rouxinol do Mondego, como lhe chamavam então, deixou de cantar nos sinceirais do seu rio; não mais se ouviu, no silêncio dos recantos da Sé Velha, a voz suave e melodiosa dum dos maiores cantores da cidade de Minerva.
Paradela forma-se e parte também; Gois e Bettencourt seguem-lhe os passos, deixando por Coimbra o eco das suas vozes, chorando eternamente as saudades da partida:
Vou-me embora de Coimbra!
Saudades me ficam nela...
De Santa Clara ao Choupal
Dos Olivais à Portela!
Outro bando de cantores apareceu, depois, na Academia, a dar vida e continuação ao fado. Serrano Baptista, António Vaz, Lucena Sampaio, Faria e Monteiro Lopes foram, durante estes últimos anos, os príncipes trovadores do saudosismo das capas negras e velhinhas dos estudantes de Coimbra.
Foi nesta altura – em 1930, aproximadamente – que Jorge de Morais (Xabregas) afamado guitarrista, lançou a ideia da fundação duma agremiação que juntasse e coordenasse todos os estudantes que cantavam e tocavam.
Com estes e outros fundamentos, a que não foi estranha uma história de amor, vivida pelo iniciador desta nova instituição, fundou-se o Fado Académico, que logo de início começou a dar sinais de vida.
Foram seus fundadores, Jorge de Morais (Xabregas), Serrano Baptista, Alexandre Sá Carneiro, Albano Noronha e Felisberto Passos.
Começou a sua existência com um grandioso baile no Salão Nobre da Associação Académica, em homenagem ao Excelentíssimo Reitor da Universidade, ao tempo Prof. Dr. Luís Carriço. Foi um triunfo completo para o Fado Académico essa festa à qual concorreram professores e estudantes numa confraternização animadora e muito pouco vista no meio escolar coimbrão. Repetiu-se durante alguns anos esta festa, que no meio académico ficou conhecida pela designação de Baile do Fado.
Mais tarde, o Fado Académico fez a sua apresentação oficial num sarau realizado no Teatro Avenida, no qual brilhou a grande altura, tendo ficado madrinha deste grupo Académico, a Exma. Senhora D. Ana Carriço, esposa do Reitor da Universidade, que bastante contribuiu para o seu êxito.
Foi desta forma que apareceu o Fado Académico, organização simpática e expressiva, que o espírito empreendedor de Xabregas concebeu, e à qual deu a vida, cor e movimento. Por ele passaram as melhores vozes de Coimbra, destes últimos anos.
Ali pontificaram os melhores guitarristas da época, como Noronha e Felisberto Passos, não esquecendo o Sá Carneiro, conhecido entre a malta por Afonso XIII, dadas as suas parecenças fisionómico-narigais com o ex-monarca de Espanha.
Já estão formados todos os rapazes que deram início ao Fado Académico. O Xabregas, ainda não deixou Coimbra, é certo, mas de estudante alegre e folião, passou a respeitabilíssimo licenciado em Matemática, trocando as variações da sua guitarra pela dança mirabolante dos números. Altos desígnios de Minerva, a que um cidadão por mais pândego que seja, não pode fugir.
(transcrição de António M. Nunes)
Carminé Nobre, "Coimbra de Capa e Batina", Tomo I, Coimbra, Atlântida, 1937, págs. 65-69. Carminé Nobre veio frequentar o Liceu José Falcão, de Coimbra, por 1919, tendo feito o curso da Escola Normal (Magistério Primário). Cunhado do cantor e guitarrista Francisco Serrano Baptista, fundador dos grupos musicais Karminoff e Hulla’s Players, jornalista do Diário de Coimbra, acompanhou muito de perto a vida académica. Faleceu vitimado por um acidente de viação em 1946. A crónica narra a fundação do Fado Académico de Coimbra (1930-1938), agremiação de cantores e de guitarristas que não pode ser entendida como uma escola de ensino-aprendizagem.
Coimbra foi sempre a terra dos cantores. O seu fado, o Fado de Coimbra, já percorreu o mundo inteiro, pelas vozes de Menano, Paradela, Junot, Goes e Bettencourt.
Tem as suas características inconfundíveis, impregnadas dum romantismo sem igual, que não destilam tragédias horrorosas, mas que nos falam de amor, sentimento e saudade, trilogia sagrada que sempre viveu nas almas sonhadoras dos estudantes de Coimbra.
Hilário, o protótipo do estudante sentimental do seu tempo, passou à posteridade por ter cantado o fado – o seu fado – sentido e triste, aquela canção que o acompanhou até que a sua voz se extinguiu para não mais cantar:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra
A forma dum coração,
A forma duma guitarra!
Não tem este fado pretensões a Canção Nacional, a um primeiro plano no vasto e riquíssimo folclore português. É simplesmente o Fado de Coimbra, e isso basta, para o definir e consagrar.
Coimbra escutou e sentiu através de todas as gerações o seu fado, sentimental sem ser piegas, romântico sem fatalismos lúgubres.
Ouviu-o o Choupal em noites brilhantes de luar. Sentiram-no os seus Penedos em momentos repassados de poesia, escutou-o a Rainha Santa quando, do outro lado do Mondego, uma voz se elevava nos céus, cantando com suavidade a prece:
Eu ouvi de Santa Clara,
Lamentos de alguém que chora:
Era a Rainha pedindo
Por mim a Nossa Senhora.
O Menano deixou Coimbra, cantando o fado. O Rouxinol do Mondego, como lhe chamavam então, deixou de cantar nos sinceirais do seu rio; não mais se ouviu, no silêncio dos recantos da Sé Velha, a voz suave e melodiosa dum dos maiores cantores da cidade de Minerva.
Paradela forma-se e parte também; Gois e Bettencourt seguem-lhe os passos, deixando por Coimbra o eco das suas vozes, chorando eternamente as saudades da partida:
Vou-me embora de Coimbra!
Saudades me ficam nela...
De Santa Clara ao Choupal
Dos Olivais à Portela!
Outro bando de cantores apareceu, depois, na Academia, a dar vida e continuação ao fado. Serrano Baptista, António Vaz, Lucena Sampaio, Faria e Monteiro Lopes foram, durante estes últimos anos, os príncipes trovadores do saudosismo das capas negras e velhinhas dos estudantes de Coimbra.
Foi nesta altura – em 1930, aproximadamente – que Jorge de Morais (Xabregas) afamado guitarrista, lançou a ideia da fundação duma agremiação que juntasse e coordenasse todos os estudantes que cantavam e tocavam.
Com estes e outros fundamentos, a que não foi estranha uma história de amor, vivida pelo iniciador desta nova instituição, fundou-se o Fado Académico, que logo de início começou a dar sinais de vida.
Foram seus fundadores, Jorge de Morais (Xabregas), Serrano Baptista, Alexandre Sá Carneiro, Albano Noronha e Felisberto Passos.
Começou a sua existência com um grandioso baile no Salão Nobre da Associação Académica, em homenagem ao Excelentíssimo Reitor da Universidade, ao tempo Prof. Dr. Luís Carriço. Foi um triunfo completo para o Fado Académico essa festa à qual concorreram professores e estudantes numa confraternização animadora e muito pouco vista no meio escolar coimbrão. Repetiu-se durante alguns anos esta festa, que no meio académico ficou conhecida pela designação de Baile do Fado.
Mais tarde, o Fado Académico fez a sua apresentação oficial num sarau realizado no Teatro Avenida, no qual brilhou a grande altura, tendo ficado madrinha deste grupo Académico, a Exma. Senhora D. Ana Carriço, esposa do Reitor da Universidade, que bastante contribuiu para o seu êxito.
Foi desta forma que apareceu o Fado Académico, organização simpática e expressiva, que o espírito empreendedor de Xabregas concebeu, e à qual deu a vida, cor e movimento. Por ele passaram as melhores vozes de Coimbra, destes últimos anos.
Ali pontificaram os melhores guitarristas da época, como Noronha e Felisberto Passos, não esquecendo o Sá Carneiro, conhecido entre a malta por Afonso XIII, dadas as suas parecenças fisionómico-narigais com o ex-monarca de Espanha.
Já estão formados todos os rapazes que deram início ao Fado Académico. O Xabregas, ainda não deixou Coimbra, é certo, mas de estudante alegre e folião, passou a respeitabilíssimo licenciado em Matemática, trocando as variações da sua guitarra pela dança mirabolante dos números. Altos desígnios de Minerva, a que um cidadão por mais pândego que seja, não pode fugir.
(transcrição de António M. Nunes)
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