Raposo Marques - O Artista Certo Para o meio Académico de Coimbra
Texto de António Moniz Palme, publicado no “Decretus” – Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto, em 4 de Novembro de 2002
Apesar dos nomes grandes que regeram o Orfeon Académico de Coimbra, o seu grande maestro, que com ele se identificou de alma e coração, foi o açoreano Manuel Raposo Marques, que manteve enquanto viveu o seu espírito jovial de estudante, o amor à vida académica e uma perfeita simbiose com a Universidadre da Lusa Atenas, com quem perfilhou alegrias e tristezas durante dezenas de anos. Muitas vezes as novas direcções do Orfeon, quando entravam em funções, congeminavam as maiores reorganizações possíveis para o “meter na ordem” bem como os seus métodos muito pessoais de actuar, mas o encanto deste logo pacificava o espírito dos mais revolucionários, que começavam a ver nele o colega e amigo mais velho, apesar da rabugice e manias próprias da sua idade. Para se verificar a perfeita união do Maestro com o seu Orfeon Académico de Coimbra, basta lembrar que foi após uma viagem aos Açores e de uma digressão apoteótica por todas as ilhas do Arquipélogo, com multidões a esperarem e a despedirem-se do seu Conterrâneo, que à entrada do avião, onde faria a viagem de regresso para o Continente, que Raposo Marques faleceu subitamente, nos braços da sua Querida Adélia e rodeado pelos seus Meninos Cantores, feliz com o seu enorme êxito e ouvindo ainda comovido os vivas e aplausos entusiásticos da enorme multidão que se tinha ido despedir ao aeroporto. Mas lembremos antes histórias divertidas que bem caracterizavam a sua maneira de ser de Académico Mais Velho, pois outros falarão certamente da sua portentosa obra musical.
Quando o Orfeon se deslocava ao estrangeiro, Raposo Marques fazia-se acompanhar da Sua Encantadora Amélia, Mulher Bondosa, Fina e Inteligente, que O admirava loucamente e que tratava todos os orfeonistas como se fossem seus filhos. O que é certo, porém, o nosso maestro não falava qualquer língua, apesar de ter um ouvido fantástico e de ser um autor musical notável. Mas para idiomas era um autêntico pé, isto é, era uma pura desgraça. O que vale é que havia sempre algum intérprete por perto para evitar disparates e situações caricatas. Os seus intérpretes preferidos, que constantemente chamava, eram o Toni Lacerda Pinto, o Carlos Ganho e o Zé Henrique Flores. Certo dia, num restaurante em New York, acompanhado pela sua simpática Mulher, fez à respectiva funcionária a sua encomenda nestes termos bem castiços: - “Menina, please, queria uma sopinha de beanes para mim e para a minha mulher e uma garrafa de wine”. Assim mesmo!!! A rapariga, coitada, perante pessoa tão importante do mundo da música, cuja fotografia tinha saído na generalidade dos jornais e nas televisões dos States, quase que chorava por se achar culpada por não perceber patavina daquela espécie de inglês, que era certamente a língua arcaica da aristocracia mais refinada da loira Albion e o modo de expressão dos artistas europeus que se prezam. Valeu a ajuda de um de nós para que o nosso Querido Maestro e a encantadora Adélia não ficassem encalhados ou na contingência de comer alguma estranha iguaria condizente com a linguagem utilizada.
Mas, apesar de nada dizer e falar, na língua local, o nosso Maestro era sensível ao olhar perturbador das admiradoras que, no fim dos espectáculos, apareciam para nos saudar e conviver com aquele numeroso grupo de homens latinos, morenaços, alegres e comunicativos. A sua primeira preocupação era mandar a simpática Adélia para a cama, pois tinha que repousar e o ambiente de fumo poder-lhe-ia fazer mal... E depois, após a mesma ter saído contrariada de cena e de um de nós garantir e trejurar que tomava conta do artista, começava a exibição perante o mulherio. Parecia um pavão de leque aberto, contando coisas em português de que as estrangeiras nada percebiam, mas gostavam de ouvir embasbacadas, perante aquela figura de baforina à Tyrone, de óculos de míope e de capa negra, como o Drácula, fazendo tilintar uma profusão de condecorações que lhe enxameavam o peito. Convém esclarecer, aliás, que uma das condecorações era a Legião de Honra ou, pelo menos, tinha um aspecto muito parecido, o que lhe valia, nas estadias pelas terras gaulesas, honras militares, com apresentação de armas e revista às tropas, o que o nosso Raposo Marques fazia com desembaraço e enorme lata, no seu passo curto e cauteloso, com os pés para fora, à “orate frates”, em jeito bem pouco militar. Mas, voltemos à nossa história. Apareceu, no fim de um espectáculo memorável, uma pianista de fartas carnaduras e formas apetitosas, com um generosíssimo decote, que resolveu tocar uns números a quatro mãos com o nosso maestro, no piano de cauda da enorme e esplêndida sala do hotel onde nos encontrávamos. O Orfeon inteiro que, perante aquele concerto não programado, se aproximou da dupla, achava que a pianista adornava perigosamente para cima do partenair, muito mais pequeno do que ela e que, ainda por cima, no meio das fusas e e das semifusas, aproveitava para apalpar desalmadamente o nosso Maestro, e, no fim de cada número, abusivamente saudava-o com beijos de longa metragem acompanhados pelas palmas entusiásticas dos presentes. Foi um sucesso, com honras de notícia num jornal de escândalos sociais de Chicago, pois o local era frequentado pela nata indígena...
Não sei se estou a ser má língua, mas adorava o Meu Querido Amigo e Maestro Manuel Raposo Marques e estes eventos não são mais do que a prova de que até ao fim da sua vida se manteve um jovem com o mesmo espírito da rapaziada que Ele regia. Igualmente, nos Estados Unidos, durante um concerto, o Zé Maria Lacerda e Megre desafinou. Depois de terminado o número musical, e após agradecer as palmas quentes do sofisticado público de smoking e fato comprido que enchia o enorme anfiteatro de Boston, o nosso Saudoso Raposo Marques dirigiu-se com o lamiré em riste para o prevaricador Zé Maria e invectivou-o com a linguagem saborosa que lhe era peculiar, obtendo por resposta a desculpa esfarrapada de o desafinanço ter sido provocado por uma senhora sentada, na primeira fila, de perna traçada e que, apesar do elegante vestido comprido, mostrava as pernas até às amígdalas. Claro que o nosso Maestro olhou para o móbil do crime e constatou as justas razões da distracção. Mas o problema não acabou ali pois, durante os números seguintes, quem olhava para o panorama irresistível que se desenrolava fora do palco, era o próprio maestro que, no meio de cada estocada musical com a batuta, deitava o rabo do olho para a plateia...!
Mas a cena de maior frisson a que assisti, foi durante um espectáculo realizado, na Embaixada Portuguesa, em Washington, organizado pelo embaixador Teotónio Pereira, que convidou, tudo o que era artista e actor, bem como os representantes diplomáticos dos cinco continentes, dando-lhes um requintado jantar com pratos e vinhos portugueses, como só um autêntico Senhor sabia fazer e, para culminar a propaganda gastronómica lusitana, o Orfeon rematou com uma exibição. Perante tão luzida assistência, o nosso Raposo Marques empolgou-se, manejando bravamente a batuta e dando golpes de esgrima para a esquerda e para a direita, fazendo balançar com aparato o “medalhame”. Porém, desgraça das desgraças, num bote mais fundo, saltou-lhe a dentadura postiça da boca, que fez uma airosa curva no ar, e que o nosso maestro, como bom espadachim da batuta, apanhou com uma das mãos, metendo o “corta palhas” graciosamente no sítio de onde saíra, com o semblante imperturbável e digno que só os grandes e consagrados possuem. A rapaziada viu-se e desejou-se para não desatar às gargalhadas. Eu dava beliscões em mim próprio e via o perigo que o grupo coral corria, pois bastava que um de nós cedesse à avassaladora vontade de rir que nos tinha invadido e impregnado o ambiente, para que, num ápice, tudo acabasse numa desconcertante gargalhada monumental. Lá acabou o número com palmas nervosas da elegante assistência que nada ouviu pois estava, como nós, a fazer prodígios para não se descompor. Todavia, há sempre homens providenciais e Teotónio Pereira levantou-se com um ar solene, declarando gravemente e em tom circunstancial que havia uma pequena pausa de um minuto para todos poderem rir à vontade e temperar as forças com “um Porto”. Foi o fim do mundo. Nunca vi a frieza diplomática esboroar-se tão depressa e descambar numa estrondosa gargalhada colectiva, entre lágrimas e palmas. Claro está que o nosso maestro ficou fulo. Foi o único que, na altura, não deve ter rido, sendo esta história um tabu guardado religiosamente no arquivo secreto na memória de cada um dos orfeonistas presentes, pois nunca foi bem deglutida pelo autor desta divertida peripécia dental. Mas, o espectáculo foi fantástico, pois cantámos lindamente e Raposo Marques saíu prestigiado e em ombros perante os cumprimentos calorosoa de toda a assistência que pessoalmente lhe quis manifestar a sua admiração pelo nível artístico do grupo coral que tinha ouvido.
António Moniz Palme
Licenciado em Direito (UC)
Advogado
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