As Praxes Académicas de Coimbra
Uma interpelação histórico-antropológica
Por António Manuel Nunes[1]
Resumo: Que leituras para as “praxes estudantis” produzidas na Universidade de Coimbra? Fenómeno “militarista”, “medieval”, “reaccionário”, “fascista”, como pretenderam as leituras militantes ligadas à herança do iluminismo e das esquerdas? “Essência” do ser-se estudante, como propuseram as direitas e os tradicionalistas não alinhados politicamente? Ou talvez outra coisa, com os seus praticantes a reinvindicarem uma necessidade/utilidade capaz de sobreviver aos diversos regimes políticos e ideologias?
Até à década de 1970 os etnólogos portugueses passaram completamente ao lado da cultura tradicional estudantil[2]. Nenhum estudo, nenhuma recolha, nenhuma curiosidade. Alguns deles, como Teófilo Braga, longe de compreenderem a Praxe, foram dela violentos detractores[3].
O primeiro estudo de fundo produzido no âmbito de uma licenciatura em Ciências Antropológicas e Etnológicas foi realizado por António Rodrigues Lopes[4]. O autor cruza a observação participante (morou na Alta coimbrã até aos 24 anos) com a pesquisa documental e a análise interpretativa. Rodrigues Lopes caracteriza com grande rigor as instituições fundamentais da Sociedade Tradicional Académica, as praxes, os orgãos jurídico-políticos, a antropologia económica, a captura e extinção da praxe na sequência dos movimentos estudantis da década de 1960. As sugestões de abordagem teórico-conceptual são estimulantes. Em nossa opinião o ponto fraco desta obra reside numa visão excessivamente essencialista e acrítica do fenómeno coimbrão, decerto tributária do paradigma funcionalista. O autor exclui a teoria da conflitualidade social e a coexistência de paradigmas ideológicos díspares no mesmo tecido sócio-cultural e cronológico.
Maria Eduarda Cruzeiro, docente do Gabinete de Investigações Sociais da Universidade de Lisboa, publicou em 1979 um ensaio sociológico sobre as praxes coimbrãs, assumido como trabalho preparatório da sua tese de doutoramento (“Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, volume XV, 1979, págs. 795-838). Com ligeiras diferenças, este trabalho foi republicado com o título de “Folclore estudantil e cerimonial académico: práticas de produção e reprodução institucional”, Vértice, nº 28, Julho de 1990, págs. 47-56. No caso vertente, a autora sufraga uma postura antipraxista, criticando a restauração das praxes no após 1974, e empregando ao nível da investigação um modelo bebido em Pierre Bourdieu, que pretende reduzir a Praxe a práticas de produção e de reprodução da Universidade de Coimbra[5]. Isto é, a praxização dos costumes estudantis, observada a partir do século XIX, funcionaria como um mecanismo de defesa e preservação da excelência coimbrã face às arremetidas das escolas médico-cirúrgicas, escolas politécnicas e Curso Superior de Letras. Revela-se profundamente discutível reduzir os fenómenos praxísticos oitocentistas a uma operação de defesa da UC, dado que a adopção do termo “praxe” não espelha a consciência defensiva invocada, e os costumes estudantis surgem como fenómeno cultural autónomo e até contracultural em relação ao modelo de saber/cultura produzido pela UC. Arriscamos afirmar, sem lesar a realidade histórica, que a par das faculdades de Direito, Medicina, Teologia, Matemática e Filosofia, os estudantes criaram e geriram uma “5ª Faculdade”, como aliás gostavam de escrever nas suas crónicas, com vivências e práticas muito específicas. Sendo verdade que a Praxe comporta(va) uma componente de preservação da tradição/identidade diferenciada, ela é muito mais do que isso. Isso mesmo nos mostra a observação participante, traduzida na vivência quotidiana destes fenómenos.
Se a interpelação tardo-marxista e bourdieuanista intentada por Maria Eduarda Cruzeiro não foi inteiramente compreensiva, já a leitura de Manuel Carvalho Prata, docente da Escola Superior da Guarda, se nos assevera bastante conseguida, por via das sugestões descodificadoras bebidas em Mircea Eliade, Gilbert Durand e Roger Callois (Cf. “A Praxe na Academia de Coimbra. Das práticas às representações”, Revista de História das Ideias, Nº 15, Coimbra, 1993, págs. 161-176), configurando um bom ponto de partida para a abordagem da temática.
Na gíria tradicionalmente usada pelos estudantes da UC detectam-se vocábulos como “praxe”, “praxar”, “estar na praxe”, “ser praxado”. Sendo certo que o termo Praxe não se vulgarizou nos meios académicos conimbricenses antes de meados do século XIX, as normas, práticas e rituais que sustentam tais instituições culturais remetem directamente para elementos herdados da Idade Média e do Antigo Regime, a par de outros que foram sendo transformados, inventados e acrescentados.
As referências escritas aos rituais estudantis para trás de 1850 são rarefeitas, tendo em conta os processos dominantes de transmissão oral, passados aos mais novos através dos veteranos, de antigos estudantes para filhos e de futricas para caloiros, num processo onde intervinham barbeiros, alfaiates, taberneiros, engomadeiras, criadas domésticas, funcionários da UC e proprietárias de bordéis[6]. Aliás, até à emergência da primeira grande codificação de 1957, as praxes e os costumes estudantis transmitiam-se oralmente, radicando a sua coerência no mito e na antiguidade.
Tendencialmente conservadores, os rituais praxísticos assentes na tradição oral eram simultaneamente abertos e flutuantes, porquanto permeáveis à incorporação do novo. Citem-se a substituição da Palmatória pela Colher de Pau à roda de 1900, o rasganço das vestes dos quintanistas pela mesma época, a invenção das Cartolas e Bengalas por 1931, a prática da Pastada na década de 1920, a Imposição de Insígnias dos Quartanistas Grelados em 1946, a Queima das “Fitas” dos Quartanistas por volta de 1896, as latadas de abertura do ano escolar inventadas nos inícios da década de 1950, a institucionalização/regulamentação do Trajo Académico Feminino pelo Conselho de Veteranos em 1954, a adopção do ritual da compra do Grelo/Nabiça às vendedeiras do Mercado Municipal desde a Revolta do Grelo de 1903.
Até à Revolução Republicana de 1910, a UC pelo número diminuto de alunos e pela rarefacção de alunas foi uma escola de elite, mais próxima dos extintos liceus, colégios particulares, e seminários diocesanos, cujos estatutos propunham normas de conduta similares às vigentes na caserna militar, nos seminários católicos, nas constituições sinodais dos bispos diocesanos, orfanatos, mosteiros e casas de correcção[7]: recordemos o toque do sino para a recolha vespertina e levantar, as regras atinentes ao uniforme de porte diário, o respeito ao reitor e aos lentes, a expulsão temporária ou definitiva. Por conseguinte, até às modificações operadas na UC pela Revolução do 5 de Outubro de 1910, ainda a Praxe não se tinha apoderado de certas regras disciplinares que constando dos antigos Estatutos e do Regulamento da Polícia Académica eram sindicadas e dirimidas pela própria Universidade.
Praxe pode definir-se em sentido restrito como o conjunto de normas criadas e vivenciadas pelos estudantes que regulam as relações entre os novatos/caloiros e os alunos dos anos mais avançados (doutores) e ainda as relações entre os estudantes, lentes e futricas. Neste sentido, a Praxe é sinónimo de estilos ou leis que instituem as diversas hierarquias internas, os rituais de iniciação e de passagem, como usar o Trajo Académico, os objectos e espaços interditos, e também o regime de sanções disciplinares e de emancipações. Instaurando sanções físicas, psicológicas e económicas, proibindo o uso de determinados bens simbólicos, sancionando tabus, premiando e distribuindo reforços positivos, a Praxe comporta(va) uma dimensão axiológico-normativa que está(va) longe de significar violência discricionária.
Em sentido mais alargado, o conceito de Praxe aproxima-se daquele que foi positivado nos artigos de abertura dos códigos da praxe de 1957 e 1993/2001: amplo e fluido, reporta-se a usos e costumes tradicionalmente vigentes na Academia de Coimbra e aos que lhe possam vir a ser acrescentados por via do poder legistativo/judicial cometido ao Conselho de Veteranos. Compete, aliás, ao Conselho de Veteranos, revogar determinadas práticas e legislar nos casos omissos, funcionando como Poder Legislativo. Mas compete-lhe igualmente funcionar como tribunal superior de apelação, informando periodicamente e sindicando da boa aplicação da Praxe. Aqui, a definição de Praxe abarca conceitos como cultura estudantil, tradições académicas e “decretus” positivados em sede de Conselho de Veteranos. Trata-se de uma tentativa de definição centrípta, na medida em que dilui na esfera da Praxe instituições que sendo tradições ou costumes não são Praxe. Constituem exemplo deste esforço praxizador a Queima das Fitas, a Récita dos Quintanistas, as Reuniões de Curso dos Antigos Estudantes da UC, a Festa das Latas e Imposição de Insígnias, o “bom” uso da Capa e Batina, a Serenata. Especificando melhor, são praxe as normas que regulamentam a boa exercitação cíclica destas tradições, mas estas instituições costumeiras não são praxe em sentido estrito[8].
Antes de meados do século XIX estas práticas foram designadas por INVESTIDAS (até finais do século XVIII), TROÇAS/ASSUADAS e CAÇOADAS (1ª metade do século XIX), comportando elevado grau de violência física e psicológica. Contrariamente ao que se possa pensar, esta violência ritualizada, e veementemente condenada desde o iluminismo, pouco ou nada se distinguia das troças com que os fidalgos mimoseavam os vilões e as raparigas do povo, das penalidades infamantes vigentes nos forais e Ordenações até ao advento do Liberalismo, da defesa da honra entre rapazes de aldeias rivais, e da exercitação da vingança privada nas comunidades rurais. São disso exemplo as latadas aos recém-casados e nubentes viúvos, as cornetadas à porta das adúlteras, os chocarreiros testamentos da Serração da Velha e Queima do Judas, o deitar pulhas, os entrudos porcos com arremesso de cinzas, ovos podres e tripas, as pancadarias dos habilidosos manejadores de paus em feiras e romarias, os insultos acompanhados de murros, taponas, escarros, sinais obscenos, palmadas nas nádegas, a coroação e sermonário dos maridos cucos/cornos[9].
O elevado grau de violência registado na exercitação dos rituais de entrada dos caloiros até ao 5 de Outubro de 1910 não se distingue nem distancia da violência detectada pelos etnólogos nas comunidades rurais portuguesas e europeias[10]. Só passa a distinguir-se gradativamente a partir do Liberalismo, quando as normas de civilidade e boas maneiras impostas pela cultura urbana e pela escola se conseguem sobrepor à cultura popular[11]. Contrariando tudo quanto se acha escrito, as fontes documentais dizem-nos que até bem entrados no século XX não havia em Coimbra uma distinção marcante entre tradições e rituais estudantis e a cultura popular. O que havia era demarcação identitária por via de territórios, de ocupações profissionais e do grau de cultura. Comparando a Queima do Judas, realizada pela Sociedade Tradicional Futrica anualmente, na Praça Velha, com a Queima das Fitas, levada a cabo pelos quartanistas de Direito e de Teologia entre a Porta Férrea da UC e o Largo da Feira, ambas as festividades coincidem nos pontos nevrálgicos:
a) fim da Penitência Quaresmal/Fim do Ano Escolar e dos Exames;
b) Esconjuro do Inverno/ Esconjuro dos caloiros e do ano escolar;
c) Imolação de Judas pelo fogo/Incineração das fitas dos quartanistas;
d) Renovação Pascal/Emancipação dos Caloiros e Renovação das gerações estudantis,
e) Sermonário satírico de denúncia dos males da sociedade/Cartaz chocarreiro com versos em tom de crítica grotesca;
f) fertilização do solo com as cinzas de Judas/Enterramento das cinzas das fitas velhas ao portão da Universidade.
É perante o irreversível declínio da cultura popular e rural[12], por um lado, e a afirmação da nova cultura cívica urbana, por outro, que as praxes académicas coimbrãs nos seus aspectos mais violentos passam a ser condenadas e ameaçadas de extinção, como sucedeu no rescaldo da Revolução Republicana de 1910 e nos anos que antecederam a Revolução de 1974.
Que práticas mais ancestrais nos é dado conhecer?
Nenhuma festa de acolhimento que nos possa lembrar as semanas culturais que começaram a fazer época desde os movimentos restauracionistas de 1979-1980. O novato é um ser estranho à comunidade, e logo uma ameaça, começando por ser desbestializado. À semelhança do noviço conventual que entrega os bens materiais e sofre a tonsura sujeitando-se à regra monástica, e ao mancebo que é rapado no quartel[13], o caloiro é considerado juridicamente res nullius, animal, besta, João Fernandes (=João Toleirão). As descrições caricaturais repetidas nos textos memorialísticos permitem-nos desenhar um ser antropomórfico, guarnecido de crinas, patas, cascos, ferraduras (sapatos), cornos, cheiro pestilento, descerebrado. Ser híbrido, ora é referido como touro, ora como burro, ou mais frequentemente misto de touro e burro[14]. Nos cortejos alegóricos profusamente referidos nas fontes memorialísticas, repetem-se as alusões a cornos que ornamentam cabeças e pescoços e a chocalhos de gado. Sujeito à mais completa despersonalização, ao cabo e ao resto autêntica morte simbólica, o caloiro não passava a ser membro da comunidade porque se matriculava oficialmente na UC, mas sim porque a Sociedade Tradicional Académica dele se apropriava. Situemo-nos por agora entre o século XVI e a inauguração do caminho de ferro Lisboa/Coimbra/Porto em 1864. Primeiramente reconhecidos no Largo da Portagem, os caloiros são alvo de investidas, troças e manganices, rituais intensificados ao longo do mês de Outubro e praticados até final do ano escolar.
No Largo da Portagem:
-Picaria – os caloiros são enfreiados e albardados, montados por diversos veteranos, esporeados nos flancos, chicoteados, devendo zurrar, atirar pinotes, trotar;
-Tourada – os caloiros são pintados com bigodaças, ornados com chifres e toureados com farpas (mocas, palmatórias), passes de capas, devendo raspar as mãos no chão, mugir ruidosamente e mastigar palha ou erva;
-Insultos – o caloiro é alvo de troças chocarreiras, insultos alusivos a familiares, traços fisionómicos, vestuário, penteado, eventuais defeitos físicos, sendo no fim mimoseado com uma alcunha que o passava a identificar ao longo de todo o seu percurso académico;
-Baptismo – conduzido a um chafariz/fonte por uma matilha de veteranos, o caloiro era baptizado com água despejada sobre a cabeça;
Primeiros dias de aulas:
-Canelão/Pega de Caras – no primeiro dia de aulas os alunos eram esperados à Porta Férrea pelos quintanistas que se agrupavam em duas alas, simulando a descida aos Infernos e as margens do Rio Estígio. À medida que entravam eram sovados com palmadas, empurrões e pontapés nas canelas. Podiam no entanto ser protegidos pelos quintanistas fitados, designados por Barcas de Caronte. Este ritual já se praticava antes de 1640 e durou até 1908;
-O Grau – paródia à cerimónia de doutoramento, o caloiro era fechado numa sala tal qual acontecia nas provas doutorais ocorridas na Sala do Exame Privado, competindo-lhe defender uma tese burlesca perante um júri. Após os discursos do padrinho era investido com um penico na cabeça;
-O Julgamento/Tribunal – ritual iniciático-punitivo realizado em cenários macabros, a que não são alheios procedimentos transpostos das lojas maçónicas. Ambiente escurecido, códigos, objectos de tortura, castiçais armados sobre caveiras, juízes, jurados, advogados, carrasco, réu, rostos embuçados. Servia de banco dos réus um penico. Para o século XIX há referências explícitas a penalidades temíveis como o encarceramento em ataúde, sovas, tonsura ad libitum, “salto mortal” com os olhos vendados, “fuzilamento” com batatas, “degolação”, “sangria”, suplício da gota, depilação, selagem com cera quente.
-A Patente – sanção pecuniária, comum em universidades espanholas, consistia no pagamento de doces conventuais, lautas ceias e bebidas aos veteranos;
-A Trupe – no caso de ser apanhado fora de casa após o toque vespertino da Cabra, o caloiro podia ser caçado por grupos de estudantes mais velhos, armados de mocas, tesourões, palmatórias, pistolas. Nestes casos sofria tonsura parcial ou completa e palmatoadas (bôlas) nas mãos. Podia defender-se em duelo com o chefe da trupe e caso vencesse não sofreria as sanções. Épocas houve em que as trupes se confundiram com bandos juvenis delinquentes, ou em alternativa, praticaram um policiamento nocturno morigerador, fazendo regressar ao estudo caloiros encontrados em casa de meretrizes, casas de jogo a dinheiro e tabernas;
-Serviços domésticos – os veteranos tutores e apadrinhadores tinham o direito de mobilizar os seus caloiros para compras, limpezas domésticas, serviço de mesa, recados, idas à caça nos arredores da cidade, escovagem de cavalos, transporte de bagagens;
-Discursos – improvisação de um discurso sobre um tema burlesco, do tipo “qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”;
-As Soiças/Pega de Rabo – cortejos burlescos de passagem ligados à celebração do fim do ano escolar e à emancipação ritual dos caloiros. Estas festividades arcaicas, muito próximas das festas dos burros, festas dos loucos, festa dos rapazes, charivaris de carnaval, enterro do bacalhau, queimas dos judas, serrações da velha, passam a designar-se no século XIX por latadas, festa das latas e festa do ponto. Com a Pega de Rabo, último grande ritual de celebração do fim do ano escolar, suspendia-se momentaneamente o tempo, exorcizando a morte do ano velho (fustigado com latas ruidosas, mais tarde incinerado), parodiando professores, políticos e graves autoridades[15].
Mas era também esse ser híbrido, o Novato, que perdendo cornos, cascos, crinas, patas, mau hálito, se metamorfoseava em homem novo e ascendia à categoria de Semi-Puto. Os Semi-Putos passavam a Pés-de-Banco ou Ponte dos Asnos. Os Pés-de-Banco eram iniciados no estatuto de Candeeiros ou Doutores de Merda. Por último, os Candeeiros personificavam o derradeiro escalão da hierarquia, renovando o estrato dos Quintanistas, Carontes ou Merda de Doutores. Completava-se mais um ciclo, sujeito a repetição anual.
As praxes de fim de ano eram simultaneamente rituais de passagem e rituais de integração-emancipação. Os estudantes de todas as categorias hierárquicas libertavam-se da frequência das aulas. Todos morriam ritualmente para serem uma vez mais investidos num estrato sócio-cultural superior. Os dos quinto ano morriam como estudantes-jovens, saindo de casa da mãe (a Universidade), ingressando na adultez, na vida profissional. A Sociedade Tradicional Académica renovava-se e florescia na Primavera.
A partir de finais do século XIX as antigas praxes sofrem evoluções significativas. O Canelão tende a desaparecer, substituído pela Pastada na década de 1920. A palmatória cai em desuso, sendo substituída pela colher de pau, objecto simbólico que desde a Idade Média ornava o peito e os chapéus dos estudantes tunos ibéricos. O Grau é abandonado e substituído pelo Julgamento/Tribunal, ritual que glosa o tribunal judicial, pese embora com alusões demasiado evidentes às cerimónias iniciáticas de sociedades secretas. O Trajo Académico é abolido como uniforme obrigatório em 1910 e doravante não são os Estatutos da UC a regulamentar o seu uso mas sim as normas praxísticas (talho, cor, modo de trajar) legisladas pelo Conselho de Veteranos. As hierarquias são mantidas, com alterações de nomenclatura. Continuam a Patente, as troças, os discursos burlescos, os sistemas de protecção, a alforria, o apadrinhamento, a imposição de alcunhas, as mobilizações para serviço doméstico, as trupes, os rapanços, as unhadas.
A festas arcaica praticamente desaparece, progressivamente substituída pela nova Queima das Fitas. Esta revela poderosa capacidade congregadora, na medida em que incorpora todas as Faculdades e ainda o ritual de despedida dos quintanistas.
Nascida no seio de uma comunidade masculina, a Praxe manteve sempre o princípio da separação dos sexos, mesmo quando em 1954 foi instituído o trajo feminino.
II – O burlesco, o riso e a chacota
As praxes conimbricenses comportam desde tempos imemoriais uma forte componente ligada ao riso, à sátira e ao burlesco. Caçoar, troçar, gozar, mangar, deitar pulhas[16], esturdiar, são termos herdados do Antigo Regime, vazados em práticas longamente recenseadas nas fontes escritas. Os veteranos riam, ridicularizando os estudantes do secundário e os alunos do primeiro ano.
A exercitação do riso era alimentada por alcunhas, dixotes, discursos burlescos, declarações de amor a mulheres idosas, charivaris, investidas físicas. Mas, o riso estendia-se a outras esferas sociais. Comerciantes citadinos e camponeses dos arrabaldes da cidade eram também alvo de gozações e de partidas imaginosas.
Os lentes sofriam todo o tipo de verrinas, a começar pela Tourada e a acabar nas serenatas de escárnio e maldizer. Repare-se que a propósito da cerimónia doutoral de Imposição de Insígnias se designa o barrete (borla) por apagador do senso comum e o capelo por albarda (tomar albarda). Da mesma forma que competia à Academia dizer se aceitava ou não integrar o aluno do primeiro ano, também competia à Academia aceitar ou não o novo lente (professor). E este só era aceite após a Tourada ao Lente, com ingestão de feno/ ramagens, pinotes e discursos estrambóticos. O reconhecimento e a consagração só passavam a ter efeito a partir do momento em que o quintanista-padrinho colocava a pasta com as fitas sobre a cabeça do lente toureado (investidura, honra).
A Praxe comporta uma dimensão corrosiva de inversão da ordem social, de crítica mordaz, que ainda hoje se prolonga nos ditos e “bocas” das latadas e carros alegóricos da Queima das Fitas, nas piadas e partidas mais ou menos imaginosas, no latim macarrónico. Evoquemos também os caloiros que mobilizados para serviço de mesa nas repúblicas tinham de envergar fardas burlescas, com peças do avesso e pijamas; os caloiros que faziam porta de armas nas repúblicas, com vestes do avesso, penico na cabeça e vassoura na mão, gritando “às armas” sempre que ali passasse mulher jovem; o estrondoso charivari que eram as latadas do século XIX; a risota causada pelos discursos estrambóticos e declarações amorosas; as caricaturas dos livros de quartanistas e de quintanistas, apelando aos vícios, às taras, ao burlesco físico e psicológico.
Ambivalente e chocarreiro é o estatuto conferido ao penico, objecto que além de simbolizar o doutor (estudante das hierarquias mais elevadas), é banco dos réus, barrete doutoral, cinzeiro cerimonial em cortejos e vaso baptismal. Eis um mundo momentaneamente posto às avessas, semeando a desordem e o caos no interior da Sociedade Académica com incursões na Sociedade Futrica.
São os cortejos que atravessam as ruas e atroam a cidade; são os estudantes que invadem o mercado municipal num jogo de compra/furta a nabiça (grelo); são as repúblicas que entre os alvores do século XX e a década de 1960 povoam as fachadas com bonecos enforcados, cadeiras, cangirões, cestas de vime, garrafões, tampos de sanita, violões; são os caloiros que vestem pijamas e desfilam pelas ruas; são os quartanistas que sacrificam os grelos em honra de Minerva, transformando o penico em altar sagrado.
Gritos desregrados, vómitos na via pública, urinadelas, garrafas e vidros pelo chão às toneladas, lautos jantares, ingestão descontrolada de vinho e de cerveja, arraiais que entram pela madrugada e proíbem o tranquilo sono dos moradores. O riso e o choro, a morte e a vida, o Amor (Eros) e a embriaguês (Dioniso), a dança triunfal de Flora sobre os despojos do Inverno.
III – Civilizar/Extirpar
As queixas contra certas práticas estudantis consideradas desordeiras, perturbadoras, excessivas, remontam à Idade Média. As mais antigas, remetem-nos para os reinados de D. Dinis e Dom João III, fazendo eco da frequência de bordéis, do jogo a dinheiro, da perturbação da ordem nocturna citadina (gritos, toques de tambor, cantorias, assaltos, porte de armas, charivaris, pateadas). Os ataques à Praxe sobem de tom no século XVIII, coincidindo com a afirmação da cultura letrada iluminista. D. João V, Luís António Verney e António Ribeiro Sanches condenam severamente tudo quanto se relacione directamente com troças, palmatoadas, tonsura, chibatadas, escarradelas, tourada, trupes, patentes. No fundo o que se condena é a vida ociosa e boémia, o perigo da malformação do carácter, o culto das aparências, a distinção social, os prazeres nocturnos desregrados, o excesso das palavras e dos gestos corporais (insultar, escarrar, urinar na rua, vomitar, gargalhar).
A ociosidade pública deixa de ser tolerada pelos manuais de boas maneiras, e bem assim o consumo não produtivo do tempo académico. Combate-se oficialmente a mentalidade fidalga a partir da reforma pombalina, apelando à limpeza do uniforme e do corpo, ao estudo, à obrigatoriedade dos exames, às ocupações diárias honestas. Mas a Praxe continua a rejeitar os códigos de civilidade.
No século XIX, após a implantação da Monarquia Constitucional, redobram os ataques, nas vozes de José Ramalho Ortigão, Joaquim Teófilo Braga e do prestigiado director do jornal local O Conimbricense, Joaquim Martins de Carvalho. É na segunda metade do século XIX que se assiste à construção da figura do antripraxista, via de regra associada a causas humanitaristas, proletárias, socialistas, republicanas e anarquistas. Nas vésperas de 1910 recrudesce a denúncia das praxes iniciáticas “bárbaras”, desta vez, sugerindo-se a sua substituição por eventos culturais e recreativos.
Entre 1910 e a eleição de Sidónio Pais para chefe de Estado a Praxe sofre algum declínio. Novo período de denúncia ocorre de 1928 a 1936. A Praxe volta em força a partir de 1917-1918, para sofrer novo crepúsculo entre 1962-1969, com extinção formal no período 1969-1979. Na fase final do Estado Novo, a Praxe foi assimilada ao fascismo autoritário. A partir da década de 1920 define-se a categoria do adepto de certas tradições, mas antipraxista. Exemplificam esta situação figuras conhecidas como os cantores António Menano e Edmundo de Bettencourt e o futuro lente de Direito António Ferrer Correia. A partir dos inícios da década de 1960, com a politização dos movimentos associativos, a Praxe passa a ser conotada pelas esquerdas radicais e contestárias com reaccionarismo, militarismo, autoritarismo fascista.
Como interpretar o conjunto de normas e rituais de entrada e de passagem tradicionalmente designadas por Praxe Académica?
1º - a Praxe configura-se como uma ordem jurídica menor instituída e praticada num determinado território pelos estudantes da UC. Ordem jurídica menor, quando confrontada com o Estado de Direito e sua produção normativa centralizada. Representa sobrevivências de práticas culturais e de penalidades infamantes que lograram escapar a todas as ofensivas saídas ou herdadas da Revolução Francesa. Daí que por diversas vezes tenha colidido com o demorado processo de centralização/estatização da Justiça, evidenciando capacidade de resistência pelo seu profundo enraizamento nas culturas académica e popular locais. Coimbra não foi um caso único de sobrevivência de práticas culturais avessas à civilização urbana e à cultura de massas, podendo citar-se o caso de Rio de Onor (conhecido graças ao estudo levado a cabo por Jorge Dias) e as touradas de morte em Barrancos.
2º - Os rituais de iniciação tinham como escopo proclamar a morte de um ser estranho à comunidade para o acolherem às diversas categorias ritualizadas do homem novo, através de provações físicas, psicológicas e económicas. O caloiro era integrado por via da desbestialização entrando numa esfera cíclica de sacralidade que terminava com a passagem do fim do curso para a entrada na adultez da sociedade civil. Sendo certo que muitos dos antigos rituais eram efectivamente violentos do ponto de vista físico e psicológico, na realidade pretendiam criar um homem novo viril, utilizando aquilo que poderemos designar por terapia de choque.
3º - A praxe ritualizada celebrava a sociabilidade, a integração, o convívio, as relações de vizinhança, a vida grupal, a juventude, mas num registo social rigidamente estratificado, hierarquizado, e até vicinalmente vigiado, onde cada estamento era igual entre si, mas desigual em relação ao antecedente e ao procedente. Daí o choque directo com o credo cívico e as virtudes pregadas pela Revolução Iluminista de 1789 a nível dos Direitos Humanos e dos princípios da Igualdade e Liberdade. Aceitando o individualismo, a Praxe valorizava a vida comunitária, a convivialidade familiar, a vizinhança, o contacto diário, o sistema de alcunhas, a relação tutorial caloiro-veterano ou caloiro-padrinho, instituindo um controlo social baseado em sanções, castigos, persuasões, recompensas, hierarquias.
4º - O tempo físico e psicológico da praxe era cíclico, repetitivo, presentificando os seus rituais anualmente em função das estações e solstícios. A entrada era outonal/invernal coincidindo com a morte da natureza, mais punitiva e disciplinar do que propriamente festiva. Simbolicamente traduzia-se num processo de morte/hibernação, marcado pela deposição em ataúde (tribunal) e pela descida aos infernos com travessia do Estígio (canelão). A emancipação era primaveril, festiva, celebrando a vida/juventude e a progressão nas diversas hierarquias académicas. Ao longo do século XIX os festejos de fim do ano escolar coincidiam com a floração do tulipeiro do Jardim Botânico. Revela-se inoperante não descortinar nesta assimilação resíduos do culto da árvore sagrada, das Maias (1 de Maio), Dia da Espiga (14 de Maio), e festejos dos santos populares. Morte do ano escolar, morte do Caloiro, combate entre o Inverno e o Verão. Curiosamente, a partir da década de 1890, diversos liceus nacionais começam a realizar festejos designados por Enterro da Gata (Liceu de Braga), Enterro da Bicha (Liceu de Ponta Delgada), Enterro do Ano[17]. Na Academia de Coimbra expulsava-se o ano velho com violentos charivaris nocturnos de latas, panelas, cântaros, com a Tourada dos Caloiros e, a partir da década de 1890, com a incineração das fitas dos quartanistas (enterradas à Porta Férrea ou atiradas ao vento a partir da Torre da Universidade). À maneira dos sapos e monstros encantados dos contos populares, o caloiro transformava-se em ser humano, aceite pela comunidade. Era o lado sacrificial da cultura cíclica estudantil que no fim do ano escolar ritualizava a abolição do tempo profano, procedendo ao sacrifício ritual de um animal (o caloiro toureado) e à combustão das fitas dos quartanistas, à orgia colectiva, à mascarada e à ingestão desregrada de bebidas alcoólicas.
5º - Por detrás de uma cultura proclamada máscula, nidificam práticas e representações claramente femininas. Femininas e matriarcais são a Academia, a Alma Mater (Universidade), a Canção de Coimbra, a Viola Toeira, a Guitarra de Coimbra, o culto da Noite, das Estrelas, da Lua. Que representava simbolicamente o Canelão à Porta Férrea senão o incesto ritual do noviço (caloiro) com a sua nova mãe (Universidade), o baptismo nos fontanários e o ir beber água à Fonte do Castanheiro na noite de São João? Que representavam as ancestrais Soiças, latadas, Queima das Fitas, que não seja a morte ritual do homem velho, do ano escolar que termina incinerado, da celebração da floração primaveril? Que representavam as serenatas, onde se clamavam a noite, a lua, as estrelas, as fontes, a mulher amada, a mãe? A mãe, mas nunca a figura paterna! O que significava esse velho ritual de rasgar as vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento em que se acabava o curso e se fugia em correria pela Porta Férrea? O sair da mãe, nu, adulto, emancipado.
Pode afirmar-se que as “tradições académicas” eram de índole maternal, apelando aos afectos, à alegria juvenil, à adesão espontânea dos “filhos” que alegres louvaminham a Mãe/Alma Mater, e despeitados lhe chamavam de quando em vez Madrasta. Em contrapartida, as praxes iniciático-punitivas eram vincadamente masculinas, castigadoras, reproduzindo a imagem tradicional do pai português armado de palavra grossa, cinto de couro e vara de marmeleiro.
6º - A Praxe, comportando um determinado grau de violência simbólica, física, psicológica e económica, não se confundia com delinquência juvenil. A sua exercitação era enquadrada por regras e numerosas excepções, vazadas em institutos jurídicos designados Protecções, Salvus Condutus, Carta de Alforria, Desmobilização, Emancipação. A Praxe consagrava o princípio do Objector de Consciência, reconhecendo o direito a não ser praxado. Reservava aos elementos do sexo feminino ampla esfera de acção. Permitia a circulação nocturna para efeitos de práticas desportivas, participação em actividades musicais, corais, teatrais e outras, mediante o expediente do Salvus Condutus. Proibia que os caloiros fossem sujeitos a praxes, quando protegidos por pais, empregadas domésticas, irmãos, namoradas/namorados, embriaguês, serenatas, vitória em duelo com chefe de trupe, triunfo oral em discursos que retirassem a capacidade de resposta a veteranos, afirmação de capacidades artísticas dignas de reconhecimento (bom cantor, bom instrumentista). Embora a maioria das sanções praxísticas se reporte a Bichos (ensino secundário) e Caloiros (alunos do primeiro ano), o estudo das fontes revela que os estudantes de todas as hierarquias e os membros do corpo docente também estavam sujeitos a práticas sancionatórias.
7º - Os ritos de iniciação/passagem continuam a desempenhar importante papel na vida humana. A iniciação ritualiza a passagem da puberdade à adolescência e desta à adultez. Em cada passagem há morte simbólica, nascimento e de novo morte. Cada passagem implica um conjunto de mudanças codificadas e uma aceitação social. O caloiro iniciado separa-se do seu meio familiar, geográfico e sócio-cultural. O ano de caloiro equivale a um tempo de purgação e de gestação embrionária no ventre da Alma Mater, outrora personificado pela entrada vaginal na Porta Férrea (Canelão) e pelo encerramento temporário em ataúde durante os Julgamentos (morte, enterramento, descida aos infernos através do rio Estígio). Quando renascia em Maio-Junho, na categoria de estudante, o Caloiro-Monstro era um homem novo, via de regra identificado e reconhecido por outro nome, a alcunha, dominando os mitos, lendas e segredos da cultura tradicional estudantil, perpetuando costumes, conhecendo a gíria académica. Conduzido por Caronte atravessara o Estígio, deambulara pelo Inferno e conhecera Minos. Alfim, emergindo do humús fértil, ingressara na “sua” comunidade. Findava o receio do caos primordial, regenerava-se e reafirmava-se a ordem social.
Elemento privilegiado de uma elite sócio-cultural, o estudante de Coimbra viveu até 1969 numa esfera dual. Sem negar o devir histórico e o fluir da temporalidade do relógio, inventou e propôs como modus vivendi peculiar uma autêntica cosmogonia. O espaço-tempo da Praxe e das tradições académicas apelava incessantemente ao encantatório, ao maravilhoso, à vivência ritualizada, à repetição cíclica de gestos considerados ancestrais, à sublimação juvenil, à proclamação do direito a ser-se adolescente, muito antes de a sociedade portuguesa ter reconhecido este estatuto aos seus jovens.
Tais vivências ajudaram a tecer a identidade cultural peculiar do estudante coimbrão e foram tomadas como paradigma em muitos liceus, escolas agrárias, magistérios primários e estabelecimentos de ensino superior. Após 1974, a Academia de Coimbra retomou muitas das suas antigas praxes e costumes, não deixando de incorporar novas práticas. Seja como for, a Praxe iniciático-punitiva continua a gerar adeptos e a suscitar violentas críticas. Arcaísmo bárbaro para uns, património cultural a preservar para outros, bem pode concluir-se dizendo que o fenómeno de restauração das praxes coimbrãs pós 1974 revela um elevado índice de adesões, apelando ao regresso do encantatório, seja a nível local, seja a nível dos fenómenos de imitação/apropriação observados um pouco por todo o país.
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Uma interpelação histórico-antropológica
Por António Manuel Nunes[1]
Resumo: Que leituras para as “praxes estudantis” produzidas na Universidade de Coimbra? Fenómeno “militarista”, “medieval”, “reaccionário”, “fascista”, como pretenderam as leituras militantes ligadas à herança do iluminismo e das esquerdas? “Essência” do ser-se estudante, como propuseram as direitas e os tradicionalistas não alinhados politicamente? Ou talvez outra coisa, com os seus praticantes a reinvindicarem uma necessidade/utilidade capaz de sobreviver aos diversos regimes políticos e ideologias?
Até à década de 1970 os etnólogos portugueses passaram completamente ao lado da cultura tradicional estudantil[2]. Nenhum estudo, nenhuma recolha, nenhuma curiosidade. Alguns deles, como Teófilo Braga, longe de compreenderem a Praxe, foram dela violentos detractores[3].
O primeiro estudo de fundo produzido no âmbito de uma licenciatura em Ciências Antropológicas e Etnológicas foi realizado por António Rodrigues Lopes[4]. O autor cruza a observação participante (morou na Alta coimbrã até aos 24 anos) com a pesquisa documental e a análise interpretativa. Rodrigues Lopes caracteriza com grande rigor as instituições fundamentais da Sociedade Tradicional Académica, as praxes, os orgãos jurídico-políticos, a antropologia económica, a captura e extinção da praxe na sequência dos movimentos estudantis da década de 1960. As sugestões de abordagem teórico-conceptual são estimulantes. Em nossa opinião o ponto fraco desta obra reside numa visão excessivamente essencialista e acrítica do fenómeno coimbrão, decerto tributária do paradigma funcionalista. O autor exclui a teoria da conflitualidade social e a coexistência de paradigmas ideológicos díspares no mesmo tecido sócio-cultural e cronológico.
Maria Eduarda Cruzeiro, docente do Gabinete de Investigações Sociais da Universidade de Lisboa, publicou em 1979 um ensaio sociológico sobre as praxes coimbrãs, assumido como trabalho preparatório da sua tese de doutoramento (“Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, volume XV, 1979, págs. 795-838). Com ligeiras diferenças, este trabalho foi republicado com o título de “Folclore estudantil e cerimonial académico: práticas de produção e reprodução institucional”, Vértice, nº 28, Julho de 1990, págs. 47-56. No caso vertente, a autora sufraga uma postura antipraxista, criticando a restauração das praxes no após 1974, e empregando ao nível da investigação um modelo bebido em Pierre Bourdieu, que pretende reduzir a Praxe a práticas de produção e de reprodução da Universidade de Coimbra[5]. Isto é, a praxização dos costumes estudantis, observada a partir do século XIX, funcionaria como um mecanismo de defesa e preservação da excelência coimbrã face às arremetidas das escolas médico-cirúrgicas, escolas politécnicas e Curso Superior de Letras. Revela-se profundamente discutível reduzir os fenómenos praxísticos oitocentistas a uma operação de defesa da UC, dado que a adopção do termo “praxe” não espelha a consciência defensiva invocada, e os costumes estudantis surgem como fenómeno cultural autónomo e até contracultural em relação ao modelo de saber/cultura produzido pela UC. Arriscamos afirmar, sem lesar a realidade histórica, que a par das faculdades de Direito, Medicina, Teologia, Matemática e Filosofia, os estudantes criaram e geriram uma “5ª Faculdade”, como aliás gostavam de escrever nas suas crónicas, com vivências e práticas muito específicas. Sendo verdade que a Praxe comporta(va) uma componente de preservação da tradição/identidade diferenciada, ela é muito mais do que isso. Isso mesmo nos mostra a observação participante, traduzida na vivência quotidiana destes fenómenos.
Se a interpelação tardo-marxista e bourdieuanista intentada por Maria Eduarda Cruzeiro não foi inteiramente compreensiva, já a leitura de Manuel Carvalho Prata, docente da Escola Superior da Guarda, se nos assevera bastante conseguida, por via das sugestões descodificadoras bebidas em Mircea Eliade, Gilbert Durand e Roger Callois (Cf. “A Praxe na Academia de Coimbra. Das práticas às representações”, Revista de História das Ideias, Nº 15, Coimbra, 1993, págs. 161-176), configurando um bom ponto de partida para a abordagem da temática.
Na gíria tradicionalmente usada pelos estudantes da UC detectam-se vocábulos como “praxe”, “praxar”, “estar na praxe”, “ser praxado”. Sendo certo que o termo Praxe não se vulgarizou nos meios académicos conimbricenses antes de meados do século XIX, as normas, práticas e rituais que sustentam tais instituições culturais remetem directamente para elementos herdados da Idade Média e do Antigo Regime, a par de outros que foram sendo transformados, inventados e acrescentados.
As referências escritas aos rituais estudantis para trás de 1850 são rarefeitas, tendo em conta os processos dominantes de transmissão oral, passados aos mais novos através dos veteranos, de antigos estudantes para filhos e de futricas para caloiros, num processo onde intervinham barbeiros, alfaiates, taberneiros, engomadeiras, criadas domésticas, funcionários da UC e proprietárias de bordéis[6]. Aliás, até à emergência da primeira grande codificação de 1957, as praxes e os costumes estudantis transmitiam-se oralmente, radicando a sua coerência no mito e na antiguidade.
Tendencialmente conservadores, os rituais praxísticos assentes na tradição oral eram simultaneamente abertos e flutuantes, porquanto permeáveis à incorporação do novo. Citem-se a substituição da Palmatória pela Colher de Pau à roda de 1900, o rasganço das vestes dos quintanistas pela mesma época, a invenção das Cartolas e Bengalas por 1931, a prática da Pastada na década de 1920, a Imposição de Insígnias dos Quartanistas Grelados em 1946, a Queima das “Fitas” dos Quartanistas por volta de 1896, as latadas de abertura do ano escolar inventadas nos inícios da década de 1950, a institucionalização/regulamentação do Trajo Académico Feminino pelo Conselho de Veteranos em 1954, a adopção do ritual da compra do Grelo/Nabiça às vendedeiras do Mercado Municipal desde a Revolta do Grelo de 1903.
Até à Revolução Republicana de 1910, a UC pelo número diminuto de alunos e pela rarefacção de alunas foi uma escola de elite, mais próxima dos extintos liceus, colégios particulares, e seminários diocesanos, cujos estatutos propunham normas de conduta similares às vigentes na caserna militar, nos seminários católicos, nas constituições sinodais dos bispos diocesanos, orfanatos, mosteiros e casas de correcção[7]: recordemos o toque do sino para a recolha vespertina e levantar, as regras atinentes ao uniforme de porte diário, o respeito ao reitor e aos lentes, a expulsão temporária ou definitiva. Por conseguinte, até às modificações operadas na UC pela Revolução do 5 de Outubro de 1910, ainda a Praxe não se tinha apoderado de certas regras disciplinares que constando dos antigos Estatutos e do Regulamento da Polícia Académica eram sindicadas e dirimidas pela própria Universidade.
Praxe pode definir-se em sentido restrito como o conjunto de normas criadas e vivenciadas pelos estudantes que regulam as relações entre os novatos/caloiros e os alunos dos anos mais avançados (doutores) e ainda as relações entre os estudantes, lentes e futricas. Neste sentido, a Praxe é sinónimo de estilos ou leis que instituem as diversas hierarquias internas, os rituais de iniciação e de passagem, como usar o Trajo Académico, os objectos e espaços interditos, e também o regime de sanções disciplinares e de emancipações. Instaurando sanções físicas, psicológicas e económicas, proibindo o uso de determinados bens simbólicos, sancionando tabus, premiando e distribuindo reforços positivos, a Praxe comporta(va) uma dimensão axiológico-normativa que está(va) longe de significar violência discricionária.
Em sentido mais alargado, o conceito de Praxe aproxima-se daquele que foi positivado nos artigos de abertura dos códigos da praxe de 1957 e 1993/2001: amplo e fluido, reporta-se a usos e costumes tradicionalmente vigentes na Academia de Coimbra e aos que lhe possam vir a ser acrescentados por via do poder legistativo/judicial cometido ao Conselho de Veteranos. Compete, aliás, ao Conselho de Veteranos, revogar determinadas práticas e legislar nos casos omissos, funcionando como Poder Legislativo. Mas compete-lhe igualmente funcionar como tribunal superior de apelação, informando periodicamente e sindicando da boa aplicação da Praxe. Aqui, a definição de Praxe abarca conceitos como cultura estudantil, tradições académicas e “decretus” positivados em sede de Conselho de Veteranos. Trata-se de uma tentativa de definição centrípta, na medida em que dilui na esfera da Praxe instituições que sendo tradições ou costumes não são Praxe. Constituem exemplo deste esforço praxizador a Queima das Fitas, a Récita dos Quintanistas, as Reuniões de Curso dos Antigos Estudantes da UC, a Festa das Latas e Imposição de Insígnias, o “bom” uso da Capa e Batina, a Serenata. Especificando melhor, são praxe as normas que regulamentam a boa exercitação cíclica destas tradições, mas estas instituições costumeiras não são praxe em sentido estrito[8].
Antes de meados do século XIX estas práticas foram designadas por INVESTIDAS (até finais do século XVIII), TROÇAS/ASSUADAS e CAÇOADAS (1ª metade do século XIX), comportando elevado grau de violência física e psicológica. Contrariamente ao que se possa pensar, esta violência ritualizada, e veementemente condenada desde o iluminismo, pouco ou nada se distinguia das troças com que os fidalgos mimoseavam os vilões e as raparigas do povo, das penalidades infamantes vigentes nos forais e Ordenações até ao advento do Liberalismo, da defesa da honra entre rapazes de aldeias rivais, e da exercitação da vingança privada nas comunidades rurais. São disso exemplo as latadas aos recém-casados e nubentes viúvos, as cornetadas à porta das adúlteras, os chocarreiros testamentos da Serração da Velha e Queima do Judas, o deitar pulhas, os entrudos porcos com arremesso de cinzas, ovos podres e tripas, as pancadarias dos habilidosos manejadores de paus em feiras e romarias, os insultos acompanhados de murros, taponas, escarros, sinais obscenos, palmadas nas nádegas, a coroação e sermonário dos maridos cucos/cornos[9].
O elevado grau de violência registado na exercitação dos rituais de entrada dos caloiros até ao 5 de Outubro de 1910 não se distingue nem distancia da violência detectada pelos etnólogos nas comunidades rurais portuguesas e europeias[10]. Só passa a distinguir-se gradativamente a partir do Liberalismo, quando as normas de civilidade e boas maneiras impostas pela cultura urbana e pela escola se conseguem sobrepor à cultura popular[11]. Contrariando tudo quanto se acha escrito, as fontes documentais dizem-nos que até bem entrados no século XX não havia em Coimbra uma distinção marcante entre tradições e rituais estudantis e a cultura popular. O que havia era demarcação identitária por via de territórios, de ocupações profissionais e do grau de cultura. Comparando a Queima do Judas, realizada pela Sociedade Tradicional Futrica anualmente, na Praça Velha, com a Queima das Fitas, levada a cabo pelos quartanistas de Direito e de Teologia entre a Porta Férrea da UC e o Largo da Feira, ambas as festividades coincidem nos pontos nevrálgicos:
a) fim da Penitência Quaresmal/Fim do Ano Escolar e dos Exames;
b) Esconjuro do Inverno/ Esconjuro dos caloiros e do ano escolar;
c) Imolação de Judas pelo fogo/Incineração das fitas dos quartanistas;
d) Renovação Pascal/Emancipação dos Caloiros e Renovação das gerações estudantis,
e) Sermonário satírico de denúncia dos males da sociedade/Cartaz chocarreiro com versos em tom de crítica grotesca;
f) fertilização do solo com as cinzas de Judas/Enterramento das cinzas das fitas velhas ao portão da Universidade.
É perante o irreversível declínio da cultura popular e rural[12], por um lado, e a afirmação da nova cultura cívica urbana, por outro, que as praxes académicas coimbrãs nos seus aspectos mais violentos passam a ser condenadas e ameaçadas de extinção, como sucedeu no rescaldo da Revolução Republicana de 1910 e nos anos que antecederam a Revolução de 1974.
Que práticas mais ancestrais nos é dado conhecer?
Nenhuma festa de acolhimento que nos possa lembrar as semanas culturais que começaram a fazer época desde os movimentos restauracionistas de 1979-1980. O novato é um ser estranho à comunidade, e logo uma ameaça, começando por ser desbestializado. À semelhança do noviço conventual que entrega os bens materiais e sofre a tonsura sujeitando-se à regra monástica, e ao mancebo que é rapado no quartel[13], o caloiro é considerado juridicamente res nullius, animal, besta, João Fernandes (=João Toleirão). As descrições caricaturais repetidas nos textos memorialísticos permitem-nos desenhar um ser antropomórfico, guarnecido de crinas, patas, cascos, ferraduras (sapatos), cornos, cheiro pestilento, descerebrado. Ser híbrido, ora é referido como touro, ora como burro, ou mais frequentemente misto de touro e burro[14]. Nos cortejos alegóricos profusamente referidos nas fontes memorialísticas, repetem-se as alusões a cornos que ornamentam cabeças e pescoços e a chocalhos de gado. Sujeito à mais completa despersonalização, ao cabo e ao resto autêntica morte simbólica, o caloiro não passava a ser membro da comunidade porque se matriculava oficialmente na UC, mas sim porque a Sociedade Tradicional Académica dele se apropriava. Situemo-nos por agora entre o século XVI e a inauguração do caminho de ferro Lisboa/Coimbra/Porto em 1864. Primeiramente reconhecidos no Largo da Portagem, os caloiros são alvo de investidas, troças e manganices, rituais intensificados ao longo do mês de Outubro e praticados até final do ano escolar.
No Largo da Portagem:
-Picaria – os caloiros são enfreiados e albardados, montados por diversos veteranos, esporeados nos flancos, chicoteados, devendo zurrar, atirar pinotes, trotar;
-Tourada – os caloiros são pintados com bigodaças, ornados com chifres e toureados com farpas (mocas, palmatórias), passes de capas, devendo raspar as mãos no chão, mugir ruidosamente e mastigar palha ou erva;
-Insultos – o caloiro é alvo de troças chocarreiras, insultos alusivos a familiares, traços fisionómicos, vestuário, penteado, eventuais defeitos físicos, sendo no fim mimoseado com uma alcunha que o passava a identificar ao longo de todo o seu percurso académico;
-Baptismo – conduzido a um chafariz/fonte por uma matilha de veteranos, o caloiro era baptizado com água despejada sobre a cabeça;
Primeiros dias de aulas:
-Canelão/Pega de Caras – no primeiro dia de aulas os alunos eram esperados à Porta Férrea pelos quintanistas que se agrupavam em duas alas, simulando a descida aos Infernos e as margens do Rio Estígio. À medida que entravam eram sovados com palmadas, empurrões e pontapés nas canelas. Podiam no entanto ser protegidos pelos quintanistas fitados, designados por Barcas de Caronte. Este ritual já se praticava antes de 1640 e durou até 1908;
-O Grau – paródia à cerimónia de doutoramento, o caloiro era fechado numa sala tal qual acontecia nas provas doutorais ocorridas na Sala do Exame Privado, competindo-lhe defender uma tese burlesca perante um júri. Após os discursos do padrinho era investido com um penico na cabeça;
-O Julgamento/Tribunal – ritual iniciático-punitivo realizado em cenários macabros, a que não são alheios procedimentos transpostos das lojas maçónicas. Ambiente escurecido, códigos, objectos de tortura, castiçais armados sobre caveiras, juízes, jurados, advogados, carrasco, réu, rostos embuçados. Servia de banco dos réus um penico. Para o século XIX há referências explícitas a penalidades temíveis como o encarceramento em ataúde, sovas, tonsura ad libitum, “salto mortal” com os olhos vendados, “fuzilamento” com batatas, “degolação”, “sangria”, suplício da gota, depilação, selagem com cera quente.
-A Patente – sanção pecuniária, comum em universidades espanholas, consistia no pagamento de doces conventuais, lautas ceias e bebidas aos veteranos;
-A Trupe – no caso de ser apanhado fora de casa após o toque vespertino da Cabra, o caloiro podia ser caçado por grupos de estudantes mais velhos, armados de mocas, tesourões, palmatórias, pistolas. Nestes casos sofria tonsura parcial ou completa e palmatoadas (bôlas) nas mãos. Podia defender-se em duelo com o chefe da trupe e caso vencesse não sofreria as sanções. Épocas houve em que as trupes se confundiram com bandos juvenis delinquentes, ou em alternativa, praticaram um policiamento nocturno morigerador, fazendo regressar ao estudo caloiros encontrados em casa de meretrizes, casas de jogo a dinheiro e tabernas;
-Serviços domésticos – os veteranos tutores e apadrinhadores tinham o direito de mobilizar os seus caloiros para compras, limpezas domésticas, serviço de mesa, recados, idas à caça nos arredores da cidade, escovagem de cavalos, transporte de bagagens;
-Discursos – improvisação de um discurso sobre um tema burlesco, do tipo “qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”;
-As Soiças/Pega de Rabo – cortejos burlescos de passagem ligados à celebração do fim do ano escolar e à emancipação ritual dos caloiros. Estas festividades arcaicas, muito próximas das festas dos burros, festas dos loucos, festa dos rapazes, charivaris de carnaval, enterro do bacalhau, queimas dos judas, serrações da velha, passam a designar-se no século XIX por latadas, festa das latas e festa do ponto. Com a Pega de Rabo, último grande ritual de celebração do fim do ano escolar, suspendia-se momentaneamente o tempo, exorcizando a morte do ano velho (fustigado com latas ruidosas, mais tarde incinerado), parodiando professores, políticos e graves autoridades[15].
Mas era também esse ser híbrido, o Novato, que perdendo cornos, cascos, crinas, patas, mau hálito, se metamorfoseava em homem novo e ascendia à categoria de Semi-Puto. Os Semi-Putos passavam a Pés-de-Banco ou Ponte dos Asnos. Os Pés-de-Banco eram iniciados no estatuto de Candeeiros ou Doutores de Merda. Por último, os Candeeiros personificavam o derradeiro escalão da hierarquia, renovando o estrato dos Quintanistas, Carontes ou Merda de Doutores. Completava-se mais um ciclo, sujeito a repetição anual.
As praxes de fim de ano eram simultaneamente rituais de passagem e rituais de integração-emancipação. Os estudantes de todas as categorias hierárquicas libertavam-se da frequência das aulas. Todos morriam ritualmente para serem uma vez mais investidos num estrato sócio-cultural superior. Os dos quinto ano morriam como estudantes-jovens, saindo de casa da mãe (a Universidade), ingressando na adultez, na vida profissional. A Sociedade Tradicional Académica renovava-se e florescia na Primavera.
A partir de finais do século XIX as antigas praxes sofrem evoluções significativas. O Canelão tende a desaparecer, substituído pela Pastada na década de 1920. A palmatória cai em desuso, sendo substituída pela colher de pau, objecto simbólico que desde a Idade Média ornava o peito e os chapéus dos estudantes tunos ibéricos. O Grau é abandonado e substituído pelo Julgamento/Tribunal, ritual que glosa o tribunal judicial, pese embora com alusões demasiado evidentes às cerimónias iniciáticas de sociedades secretas. O Trajo Académico é abolido como uniforme obrigatório em 1910 e doravante não são os Estatutos da UC a regulamentar o seu uso mas sim as normas praxísticas (talho, cor, modo de trajar) legisladas pelo Conselho de Veteranos. As hierarquias são mantidas, com alterações de nomenclatura. Continuam a Patente, as troças, os discursos burlescos, os sistemas de protecção, a alforria, o apadrinhamento, a imposição de alcunhas, as mobilizações para serviço doméstico, as trupes, os rapanços, as unhadas.
A festas arcaica praticamente desaparece, progressivamente substituída pela nova Queima das Fitas. Esta revela poderosa capacidade congregadora, na medida em que incorpora todas as Faculdades e ainda o ritual de despedida dos quintanistas.
Nascida no seio de uma comunidade masculina, a Praxe manteve sempre o princípio da separação dos sexos, mesmo quando em 1954 foi instituído o trajo feminino.
II – O burlesco, o riso e a chacota
As praxes conimbricenses comportam desde tempos imemoriais uma forte componente ligada ao riso, à sátira e ao burlesco. Caçoar, troçar, gozar, mangar, deitar pulhas[16], esturdiar, são termos herdados do Antigo Regime, vazados em práticas longamente recenseadas nas fontes escritas. Os veteranos riam, ridicularizando os estudantes do secundário e os alunos do primeiro ano.
A exercitação do riso era alimentada por alcunhas, dixotes, discursos burlescos, declarações de amor a mulheres idosas, charivaris, investidas físicas. Mas, o riso estendia-se a outras esferas sociais. Comerciantes citadinos e camponeses dos arrabaldes da cidade eram também alvo de gozações e de partidas imaginosas.
Os lentes sofriam todo o tipo de verrinas, a começar pela Tourada e a acabar nas serenatas de escárnio e maldizer. Repare-se que a propósito da cerimónia doutoral de Imposição de Insígnias se designa o barrete (borla) por apagador do senso comum e o capelo por albarda (tomar albarda). Da mesma forma que competia à Academia dizer se aceitava ou não integrar o aluno do primeiro ano, também competia à Academia aceitar ou não o novo lente (professor). E este só era aceite após a Tourada ao Lente, com ingestão de feno/ ramagens, pinotes e discursos estrambóticos. O reconhecimento e a consagração só passavam a ter efeito a partir do momento em que o quintanista-padrinho colocava a pasta com as fitas sobre a cabeça do lente toureado (investidura, honra).
A Praxe comporta uma dimensão corrosiva de inversão da ordem social, de crítica mordaz, que ainda hoje se prolonga nos ditos e “bocas” das latadas e carros alegóricos da Queima das Fitas, nas piadas e partidas mais ou menos imaginosas, no latim macarrónico. Evoquemos também os caloiros que mobilizados para serviço de mesa nas repúblicas tinham de envergar fardas burlescas, com peças do avesso e pijamas; os caloiros que faziam porta de armas nas repúblicas, com vestes do avesso, penico na cabeça e vassoura na mão, gritando “às armas” sempre que ali passasse mulher jovem; o estrondoso charivari que eram as latadas do século XIX; a risota causada pelos discursos estrambóticos e declarações amorosas; as caricaturas dos livros de quartanistas e de quintanistas, apelando aos vícios, às taras, ao burlesco físico e psicológico.
Ambivalente e chocarreiro é o estatuto conferido ao penico, objecto que além de simbolizar o doutor (estudante das hierarquias mais elevadas), é banco dos réus, barrete doutoral, cinzeiro cerimonial em cortejos e vaso baptismal. Eis um mundo momentaneamente posto às avessas, semeando a desordem e o caos no interior da Sociedade Académica com incursões na Sociedade Futrica.
São os cortejos que atravessam as ruas e atroam a cidade; são os estudantes que invadem o mercado municipal num jogo de compra/furta a nabiça (grelo); são as repúblicas que entre os alvores do século XX e a década de 1960 povoam as fachadas com bonecos enforcados, cadeiras, cangirões, cestas de vime, garrafões, tampos de sanita, violões; são os caloiros que vestem pijamas e desfilam pelas ruas; são os quartanistas que sacrificam os grelos em honra de Minerva, transformando o penico em altar sagrado.
Gritos desregrados, vómitos na via pública, urinadelas, garrafas e vidros pelo chão às toneladas, lautos jantares, ingestão descontrolada de vinho e de cerveja, arraiais que entram pela madrugada e proíbem o tranquilo sono dos moradores. O riso e o choro, a morte e a vida, o Amor (Eros) e a embriaguês (Dioniso), a dança triunfal de Flora sobre os despojos do Inverno.
III – Civilizar/Extirpar
As queixas contra certas práticas estudantis consideradas desordeiras, perturbadoras, excessivas, remontam à Idade Média. As mais antigas, remetem-nos para os reinados de D. Dinis e Dom João III, fazendo eco da frequência de bordéis, do jogo a dinheiro, da perturbação da ordem nocturna citadina (gritos, toques de tambor, cantorias, assaltos, porte de armas, charivaris, pateadas). Os ataques à Praxe sobem de tom no século XVIII, coincidindo com a afirmação da cultura letrada iluminista. D. João V, Luís António Verney e António Ribeiro Sanches condenam severamente tudo quanto se relacione directamente com troças, palmatoadas, tonsura, chibatadas, escarradelas, tourada, trupes, patentes. No fundo o que se condena é a vida ociosa e boémia, o perigo da malformação do carácter, o culto das aparências, a distinção social, os prazeres nocturnos desregrados, o excesso das palavras e dos gestos corporais (insultar, escarrar, urinar na rua, vomitar, gargalhar).
A ociosidade pública deixa de ser tolerada pelos manuais de boas maneiras, e bem assim o consumo não produtivo do tempo académico. Combate-se oficialmente a mentalidade fidalga a partir da reforma pombalina, apelando à limpeza do uniforme e do corpo, ao estudo, à obrigatoriedade dos exames, às ocupações diárias honestas. Mas a Praxe continua a rejeitar os códigos de civilidade.
No século XIX, após a implantação da Monarquia Constitucional, redobram os ataques, nas vozes de José Ramalho Ortigão, Joaquim Teófilo Braga e do prestigiado director do jornal local O Conimbricense, Joaquim Martins de Carvalho. É na segunda metade do século XIX que se assiste à construção da figura do antripraxista, via de regra associada a causas humanitaristas, proletárias, socialistas, republicanas e anarquistas. Nas vésperas de 1910 recrudesce a denúncia das praxes iniciáticas “bárbaras”, desta vez, sugerindo-se a sua substituição por eventos culturais e recreativos.
Entre 1910 e a eleição de Sidónio Pais para chefe de Estado a Praxe sofre algum declínio. Novo período de denúncia ocorre de 1928 a 1936. A Praxe volta em força a partir de 1917-1918, para sofrer novo crepúsculo entre 1962-1969, com extinção formal no período 1969-1979. Na fase final do Estado Novo, a Praxe foi assimilada ao fascismo autoritário. A partir da década de 1920 define-se a categoria do adepto de certas tradições, mas antipraxista. Exemplificam esta situação figuras conhecidas como os cantores António Menano e Edmundo de Bettencourt e o futuro lente de Direito António Ferrer Correia. A partir dos inícios da década de 1960, com a politização dos movimentos associativos, a Praxe passa a ser conotada pelas esquerdas radicais e contestárias com reaccionarismo, militarismo, autoritarismo fascista.
Como interpretar o conjunto de normas e rituais de entrada e de passagem tradicionalmente designadas por Praxe Académica?
1º - a Praxe configura-se como uma ordem jurídica menor instituída e praticada num determinado território pelos estudantes da UC. Ordem jurídica menor, quando confrontada com o Estado de Direito e sua produção normativa centralizada. Representa sobrevivências de práticas culturais e de penalidades infamantes que lograram escapar a todas as ofensivas saídas ou herdadas da Revolução Francesa. Daí que por diversas vezes tenha colidido com o demorado processo de centralização/estatização da Justiça, evidenciando capacidade de resistência pelo seu profundo enraizamento nas culturas académica e popular locais. Coimbra não foi um caso único de sobrevivência de práticas culturais avessas à civilização urbana e à cultura de massas, podendo citar-se o caso de Rio de Onor (conhecido graças ao estudo levado a cabo por Jorge Dias) e as touradas de morte em Barrancos.
2º - Os rituais de iniciação tinham como escopo proclamar a morte de um ser estranho à comunidade para o acolherem às diversas categorias ritualizadas do homem novo, através de provações físicas, psicológicas e económicas. O caloiro era integrado por via da desbestialização entrando numa esfera cíclica de sacralidade que terminava com a passagem do fim do curso para a entrada na adultez da sociedade civil. Sendo certo que muitos dos antigos rituais eram efectivamente violentos do ponto de vista físico e psicológico, na realidade pretendiam criar um homem novo viril, utilizando aquilo que poderemos designar por terapia de choque.
3º - A praxe ritualizada celebrava a sociabilidade, a integração, o convívio, as relações de vizinhança, a vida grupal, a juventude, mas num registo social rigidamente estratificado, hierarquizado, e até vicinalmente vigiado, onde cada estamento era igual entre si, mas desigual em relação ao antecedente e ao procedente. Daí o choque directo com o credo cívico e as virtudes pregadas pela Revolução Iluminista de 1789 a nível dos Direitos Humanos e dos princípios da Igualdade e Liberdade. Aceitando o individualismo, a Praxe valorizava a vida comunitária, a convivialidade familiar, a vizinhança, o contacto diário, o sistema de alcunhas, a relação tutorial caloiro-veterano ou caloiro-padrinho, instituindo um controlo social baseado em sanções, castigos, persuasões, recompensas, hierarquias.
4º - O tempo físico e psicológico da praxe era cíclico, repetitivo, presentificando os seus rituais anualmente em função das estações e solstícios. A entrada era outonal/invernal coincidindo com a morte da natureza, mais punitiva e disciplinar do que propriamente festiva. Simbolicamente traduzia-se num processo de morte/hibernação, marcado pela deposição em ataúde (tribunal) e pela descida aos infernos com travessia do Estígio (canelão). A emancipação era primaveril, festiva, celebrando a vida/juventude e a progressão nas diversas hierarquias académicas. Ao longo do século XIX os festejos de fim do ano escolar coincidiam com a floração do tulipeiro do Jardim Botânico. Revela-se inoperante não descortinar nesta assimilação resíduos do culto da árvore sagrada, das Maias (1 de Maio), Dia da Espiga (14 de Maio), e festejos dos santos populares. Morte do ano escolar, morte do Caloiro, combate entre o Inverno e o Verão. Curiosamente, a partir da década de 1890, diversos liceus nacionais começam a realizar festejos designados por Enterro da Gata (Liceu de Braga), Enterro da Bicha (Liceu de Ponta Delgada), Enterro do Ano[17]. Na Academia de Coimbra expulsava-se o ano velho com violentos charivaris nocturnos de latas, panelas, cântaros, com a Tourada dos Caloiros e, a partir da década de 1890, com a incineração das fitas dos quartanistas (enterradas à Porta Férrea ou atiradas ao vento a partir da Torre da Universidade). À maneira dos sapos e monstros encantados dos contos populares, o caloiro transformava-se em ser humano, aceite pela comunidade. Era o lado sacrificial da cultura cíclica estudantil que no fim do ano escolar ritualizava a abolição do tempo profano, procedendo ao sacrifício ritual de um animal (o caloiro toureado) e à combustão das fitas dos quartanistas, à orgia colectiva, à mascarada e à ingestão desregrada de bebidas alcoólicas.
5º - Por detrás de uma cultura proclamada máscula, nidificam práticas e representações claramente femininas. Femininas e matriarcais são a Academia, a Alma Mater (Universidade), a Canção de Coimbra, a Viola Toeira, a Guitarra de Coimbra, o culto da Noite, das Estrelas, da Lua. Que representava simbolicamente o Canelão à Porta Férrea senão o incesto ritual do noviço (caloiro) com a sua nova mãe (Universidade), o baptismo nos fontanários e o ir beber água à Fonte do Castanheiro na noite de São João? Que representavam as ancestrais Soiças, latadas, Queima das Fitas, que não seja a morte ritual do homem velho, do ano escolar que termina incinerado, da celebração da floração primaveril? Que representavam as serenatas, onde se clamavam a noite, a lua, as estrelas, as fontes, a mulher amada, a mãe? A mãe, mas nunca a figura paterna! O que significava esse velho ritual de rasgar as vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento em que se acabava o curso e se fugia em correria pela Porta Férrea? O sair da mãe, nu, adulto, emancipado.
Pode afirmar-se que as “tradições académicas” eram de índole maternal, apelando aos afectos, à alegria juvenil, à adesão espontânea dos “filhos” que alegres louvaminham a Mãe/Alma Mater, e despeitados lhe chamavam de quando em vez Madrasta. Em contrapartida, as praxes iniciático-punitivas eram vincadamente masculinas, castigadoras, reproduzindo a imagem tradicional do pai português armado de palavra grossa, cinto de couro e vara de marmeleiro.
6º - A Praxe, comportando um determinado grau de violência simbólica, física, psicológica e económica, não se confundia com delinquência juvenil. A sua exercitação era enquadrada por regras e numerosas excepções, vazadas em institutos jurídicos designados Protecções, Salvus Condutus, Carta de Alforria, Desmobilização, Emancipação. A Praxe consagrava o princípio do Objector de Consciência, reconhecendo o direito a não ser praxado. Reservava aos elementos do sexo feminino ampla esfera de acção. Permitia a circulação nocturna para efeitos de práticas desportivas, participação em actividades musicais, corais, teatrais e outras, mediante o expediente do Salvus Condutus. Proibia que os caloiros fossem sujeitos a praxes, quando protegidos por pais, empregadas domésticas, irmãos, namoradas/namorados, embriaguês, serenatas, vitória em duelo com chefe de trupe, triunfo oral em discursos que retirassem a capacidade de resposta a veteranos, afirmação de capacidades artísticas dignas de reconhecimento (bom cantor, bom instrumentista). Embora a maioria das sanções praxísticas se reporte a Bichos (ensino secundário) e Caloiros (alunos do primeiro ano), o estudo das fontes revela que os estudantes de todas as hierarquias e os membros do corpo docente também estavam sujeitos a práticas sancionatórias.
7º - Os ritos de iniciação/passagem continuam a desempenhar importante papel na vida humana. A iniciação ritualiza a passagem da puberdade à adolescência e desta à adultez. Em cada passagem há morte simbólica, nascimento e de novo morte. Cada passagem implica um conjunto de mudanças codificadas e uma aceitação social. O caloiro iniciado separa-se do seu meio familiar, geográfico e sócio-cultural. O ano de caloiro equivale a um tempo de purgação e de gestação embrionária no ventre da Alma Mater, outrora personificado pela entrada vaginal na Porta Férrea (Canelão) e pelo encerramento temporário em ataúde durante os Julgamentos (morte, enterramento, descida aos infernos através do rio Estígio). Quando renascia em Maio-Junho, na categoria de estudante, o Caloiro-Monstro era um homem novo, via de regra identificado e reconhecido por outro nome, a alcunha, dominando os mitos, lendas e segredos da cultura tradicional estudantil, perpetuando costumes, conhecendo a gíria académica. Conduzido por Caronte atravessara o Estígio, deambulara pelo Inferno e conhecera Minos. Alfim, emergindo do humús fértil, ingressara na “sua” comunidade. Findava o receio do caos primordial, regenerava-se e reafirmava-se a ordem social.
Elemento privilegiado de uma elite sócio-cultural, o estudante de Coimbra viveu até 1969 numa esfera dual. Sem negar o devir histórico e o fluir da temporalidade do relógio, inventou e propôs como modus vivendi peculiar uma autêntica cosmogonia. O espaço-tempo da Praxe e das tradições académicas apelava incessantemente ao encantatório, ao maravilhoso, à vivência ritualizada, à repetição cíclica de gestos considerados ancestrais, à sublimação juvenil, à proclamação do direito a ser-se adolescente, muito antes de a sociedade portuguesa ter reconhecido este estatuto aos seus jovens.
Tais vivências ajudaram a tecer a identidade cultural peculiar do estudante coimbrão e foram tomadas como paradigma em muitos liceus, escolas agrárias, magistérios primários e estabelecimentos de ensino superior. Após 1974, a Academia de Coimbra retomou muitas das suas antigas praxes e costumes, não deixando de incorporar novas práticas. Seja como for, a Praxe iniciático-punitiva continua a gerar adeptos e a suscitar violentas críticas. Arcaísmo bárbaro para uns, património cultural a preservar para outros, bem pode concluir-se dizendo que o fenómeno de restauração das praxes coimbrãs pós 1974 revela um elevado índice de adesões, apelando ao regresso do encantatório, seja a nível local, seja a nível dos fenómenos de imitação/apropriação observados um pouco por todo o país.
Bibliografia
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VARA, Flávio – O espantalho da praxe coimbrã, Lisboa, 1958.
NOTAS:
[1] Professor de História e História da Arte. Comunicação proferida nas Primeiras Jornadas “As Praxes Académicas. Sentido actual e perspectivas”, promovidas pelo Instituto Piaget de Viseu nos dias 29 e 30 de Abril de 2003. Trabalho publicado na revista Cadernos do Noroeste, Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, Volume 22 (1-2), ano de 2004, págs. 133-149, por gentileza do Prof. Doutor Albertino Marques.
[2] Desinteresse que em muitos casos vota o património documental estudantil a uma certa clandestinidade, como acontece com o Museu Académico, destituído de quadro de pessoal e de financiamento. No tocante à escassez de estudos sobre estas matérias (em Coimbra) e aos perigos de degradação patrimonial veja-se João Paulo Avelãs Nunes, “Em busca de memórias perdidas”, Vértice nº 38, Maio de 1991, págs. 89-91.
[3] Assim o etnólogo Teófilo Braga, tão compreensivo face aos contos populares, rifonário, cancioneiro, romanceiro, costumes locais, e tão virulentamente antipraxista, confundindo desonestamente o pretenso atraso intelectual e científico da UC com as chamadas praxes. Releia-se a sua História da Literatura Portuguesa. O Ultra-Romantismo, Porto, 1870-1873, onde se estabelece uma correlação abusiva entre Soares de Passos/poesia ultra-romântica e costumes académico-praxísticos (Cf. Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa. O Ultra-Romantismo, Tomo VI, Mem Martins, Europa América, 1986, págs. 132-137).
[4] António Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra, s/e, 1982.
[5] “Questões de uma tradição. Entrevista de V. L. à Dra. Eduarda Cruzeiro”, Via Latina, 1985/1986, págs. 23-27.
[6] Processo ainda muito activo na década de 1980. Por 1986-1987 tivemos o ensejo de verificar que na maioria das casas comerciais onde se vendiam “capas e batinas”, os proprietários possuíam exemplar do Código da Praxe de 1957 e aconselhavam os estudantes dos primeiros e segundos anos sobre “a maneira correcta de trajar”.
[7] Isto mesmo se pode demonstrar através do confronto entre os vários Estatutos da UC, Constituições Sinodais dos Bispados portugueses, estatutos dos Seminários Católicos, regulamentos disciplinares de colégios particulares e orfanatos. Por exemplo, para o século XVI, as interdições académicas relativas às transgressão do uniforme, proibição da prostituição, alcoolismo, jogos de azar, porte de armas, vida escandalosa, repetem-se com poucas diferenças nas Constituições Sinodais.
[8] Esta leitura abusiva, faz escola na maioria dos estabelecimentos de ensino superior públicos e privados. De tal forma que “latada”, “trajo académico”, “pasta com fitas”, “tuna”, “orfeon”, “cartola e bengala”, “semana académica”, “festival de tunas”, surgem designadas por “praxe”.
[9] O material disponível sobre estas temáticas é abundante. Citemos apenas alguns: Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984; James George Frazer, Le cycle du Rameau d’Or. Le Dieu Qui meurt, Volume IV, Paris, 1931; Luís Chaves, “Os testamentos na tradição popular”, O Ocidente, Volume XVIII, 1946, págs. 268 e ss.; Albertino Gonçalves, O sentido da comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga, Braga, Biblioteca Pública de Braga, 2001; Henrique Barreto Nunes e outros, Tradições académicas de Braga, Braga, Associação Académica da UM, 2001; Rita Ribeiro, As lições dos aprendizes: as praxes académicas na Universidade do Minho, Braga, UM, 2001; Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, 2 tomos, Coimbra, 1885; Francisco Afonso Chaves, As festas de São Marcos nas ilhas dos Açores, Lisboa, 1906; Manuel Dionísio, Costumes açorianos, Horta, 1937; Jacques Heers, Festas de loucos e carnavais, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
[10] Cf. Julian Pitt-Rivers, Anthropologie de l’honner. La mésaventure de Sichem, Paris, Le Sycomore, 1983.
[11] Comparativamente, veja-se o estimulante estudo de Robert Muchembled, Culture populare e culture des élites dans la France moderne (Xve-XVIIIe siècle), Paris, Champs/Flammarion, 1991.
[12] Relativamente à cultura popular coimbrã, recordemos os desaparecidos Entrudo “porco”, a Queima do Judas, o Deitar Pulhas (Cernache).
[13] O “tempo de ir à tropa” (expressão de Boaventura Sousa Santos), apresenta algumas similitudes com o ir para Coimbra. Relativamente aos processos de transformação físicos e psicológicos sofridos pelos recrutas citemos esta trova cantada na Ilha do Pico: “Quando eu assentei praça/Ó rapaz, não olhei para a direita/Cortaram-me o meu cabelo/Mas olha, foi a primeira desfeita”.
[14] Por detrás de aspectos que a civilização reputa de humilhantes formas de rebaixamento, faz sentido precisar a sacralidade do Touro desde remota antiguidade na cultura mediterrânica e a imagem do Burro como símbolo de obscuridade, morte, forças maléficas, iniciação honorífica (nas festas medievais dos loucos), potência sexual incontrolada que regenera a sociedade. O burro liga-se directamente ao culto grego de Dioniso. Sobre a imagem positiva do Burro na cultura estudantil veja-se o antiquíssimo conto popular do estudante que finge transformar-se no burro do azeiteiro (Francisco Adolfo Coelho, Contos populares portugueses, Lisboa, Dom Quixote, 2001, págs. 271-272).
[15] Elementos interpretativos em Mircea Eliade, O sagrado e o profano. A essência das religiões, Lisboa, Livros do Brasil, s/d; idem, O mito do eterno retorno, Lisboa, Edições 70, 1985; Gilbert Durand, A imaginação simbólica, Lisboa, Edições 70, 1995; Michel Maffesoli, O eterno instante. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, Lisboa, Instituto Piaget, 2001; Michel Maffessoli, Du nomadisme, Paris, Le Livre de Poche, 1997; Michel Maffesoli, L’ombre de Dionysos. Contribution à une sociologie de l’orgie, Paris, Le Livre de Poche, 1991.
[16] O ritual das pulhas era bem conhecido nas comunidades rurais do Concelho de Coimbra. Em Vila Nova de Cernache foi recolhido da tradição oral e integra reconstituições dinamizadas pelo Grupo Folclórico Os Camponeses de Vila Nova. As pulhas reviravam as comunidades do avesso com pregões corrosivos, lançados por rapazes e homens armados de funis de latão. Mas também podiam assumir a forma de descantes nocturnos provocatórios, com vozes, quadras brejeiras, instrumentos musicais.
[17] Relativamente ao trajo académico, o primeiro liceu oitocentista a instituí-lo foi o Liceu de Coimbra, logo em 1836, visto ter ficado na dependência administrativa da reitoria da Universidade. Seguiu-se-lhe o Liceu de Évora, através de Portaria de 27 de Outubro de 1860, na sequência de uma intervenção de D. Pedro V. Neste Liceu e no Liceu Pedro Nunes (Lisboa) os estudantes usaram um barrete circular de pano preto (O Tacho). Para a década de 1940, ainda falando o Liceu de Évora, há notícia de serenatas, tonsura, baptismo em fontanário. No Liceu de Ponta Delgada usou-se capa e batina e instituiram-se serenatas, baile de finalistas, pontapés e pinturas, procissão do caloiro (com um rei instalado num andor), baptismo em fonte e festejos de fim do ano escolar (Enterro da Bicha). No Liceu do Funchal, também foco de práticas tradicionais inspiradas em Coimbra, o uso da capa e batina remonta à publicação de uma portaria governamental de 1889.
[1] Professor de História e História da Arte. Comunicação proferida nas Primeiras Jornadas “As Praxes Académicas. Sentido actual e perspectivas”, promovidas pelo Instituto Piaget de Viseu nos dias 29 e 30 de Abril de 2003. Trabalho publicado na revista Cadernos do Noroeste, Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, Volume 22 (1-2), ano de 2004, págs. 133-149, por gentileza do Prof. Doutor Albertino Marques.
[2] Desinteresse que em muitos casos vota o património documental estudantil a uma certa clandestinidade, como acontece com o Museu Académico, destituído de quadro de pessoal e de financiamento. No tocante à escassez de estudos sobre estas matérias (em Coimbra) e aos perigos de degradação patrimonial veja-se João Paulo Avelãs Nunes, “Em busca de memórias perdidas”, Vértice nº 38, Maio de 1991, págs. 89-91.
[3] Assim o etnólogo Teófilo Braga, tão compreensivo face aos contos populares, rifonário, cancioneiro, romanceiro, costumes locais, e tão virulentamente antipraxista, confundindo desonestamente o pretenso atraso intelectual e científico da UC com as chamadas praxes. Releia-se a sua História da Literatura Portuguesa. O Ultra-Romantismo, Porto, 1870-1873, onde se estabelece uma correlação abusiva entre Soares de Passos/poesia ultra-romântica e costumes académico-praxísticos (Cf. Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa. O Ultra-Romantismo, Tomo VI, Mem Martins, Europa América, 1986, págs. 132-137).
[4] António Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra, s/e, 1982.
[5] “Questões de uma tradição. Entrevista de V. L. à Dra. Eduarda Cruzeiro”, Via Latina, 1985/1986, págs. 23-27.
[6] Processo ainda muito activo na década de 1980. Por 1986-1987 tivemos o ensejo de verificar que na maioria das casas comerciais onde se vendiam “capas e batinas”, os proprietários possuíam exemplar do Código da Praxe de 1957 e aconselhavam os estudantes dos primeiros e segundos anos sobre “a maneira correcta de trajar”.
[7] Isto mesmo se pode demonstrar através do confronto entre os vários Estatutos da UC, Constituições Sinodais dos Bispados portugueses, estatutos dos Seminários Católicos, regulamentos disciplinares de colégios particulares e orfanatos. Por exemplo, para o século XVI, as interdições académicas relativas às transgressão do uniforme, proibição da prostituição, alcoolismo, jogos de azar, porte de armas, vida escandalosa, repetem-se com poucas diferenças nas Constituições Sinodais.
[8] Esta leitura abusiva, faz escola na maioria dos estabelecimentos de ensino superior públicos e privados. De tal forma que “latada”, “trajo académico”, “pasta com fitas”, “tuna”, “orfeon”, “cartola e bengala”, “semana académica”, “festival de tunas”, surgem designadas por “praxe”.
[9] O material disponível sobre estas temáticas é abundante. Citemos apenas alguns: Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom Quixote, 1984; James George Frazer, Le cycle du Rameau d’Or. Le Dieu Qui meurt, Volume IV, Paris, 1931; Luís Chaves, “Os testamentos na tradição popular”, O Ocidente, Volume XVIII, 1946, págs. 268 e ss.; Albertino Gonçalves, O sentido da comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga, Braga, Biblioteca Pública de Braga, 2001; Henrique Barreto Nunes e outros, Tradições académicas de Braga, Braga, Associação Académica da UM, 2001; Rita Ribeiro, As lições dos aprendizes: as praxes académicas na Universidade do Minho, Braga, UM, 2001; Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, 2 tomos, Coimbra, 1885; Francisco Afonso Chaves, As festas de São Marcos nas ilhas dos Açores, Lisboa, 1906; Manuel Dionísio, Costumes açorianos, Horta, 1937; Jacques Heers, Festas de loucos e carnavais, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
[10] Cf. Julian Pitt-Rivers, Anthropologie de l’honner. La mésaventure de Sichem, Paris, Le Sycomore, 1983.
[11] Comparativamente, veja-se o estimulante estudo de Robert Muchembled, Culture populare e culture des élites dans la France moderne (Xve-XVIIIe siècle), Paris, Champs/Flammarion, 1991.
[12] Relativamente à cultura popular coimbrã, recordemos os desaparecidos Entrudo “porco”, a Queima do Judas, o Deitar Pulhas (Cernache).
[13] O “tempo de ir à tropa” (expressão de Boaventura Sousa Santos), apresenta algumas similitudes com o ir para Coimbra. Relativamente aos processos de transformação físicos e psicológicos sofridos pelos recrutas citemos esta trova cantada na Ilha do Pico: “Quando eu assentei praça/Ó rapaz, não olhei para a direita/Cortaram-me o meu cabelo/Mas olha, foi a primeira desfeita”.
[14] Por detrás de aspectos que a civilização reputa de humilhantes formas de rebaixamento, faz sentido precisar a sacralidade do Touro desde remota antiguidade na cultura mediterrânica e a imagem do Burro como símbolo de obscuridade, morte, forças maléficas, iniciação honorífica (nas festas medievais dos loucos), potência sexual incontrolada que regenera a sociedade. O burro liga-se directamente ao culto grego de Dioniso. Sobre a imagem positiva do Burro na cultura estudantil veja-se o antiquíssimo conto popular do estudante que finge transformar-se no burro do azeiteiro (Francisco Adolfo Coelho, Contos populares portugueses, Lisboa, Dom Quixote, 2001, págs. 271-272).
[15] Elementos interpretativos em Mircea Eliade, O sagrado e o profano. A essência das religiões, Lisboa, Livros do Brasil, s/d; idem, O mito do eterno retorno, Lisboa, Edições 70, 1985; Gilbert Durand, A imaginação simbólica, Lisboa, Edições 70, 1995; Michel Maffesoli, O eterno instante. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, Lisboa, Instituto Piaget, 2001; Michel Maffessoli, Du nomadisme, Paris, Le Livre de Poche, 1997; Michel Maffesoli, L’ombre de Dionysos. Contribution à une sociologie de l’orgie, Paris, Le Livre de Poche, 1991.
[16] O ritual das pulhas era bem conhecido nas comunidades rurais do Concelho de Coimbra. Em Vila Nova de Cernache foi recolhido da tradição oral e integra reconstituições dinamizadas pelo Grupo Folclórico Os Camponeses de Vila Nova. As pulhas reviravam as comunidades do avesso com pregões corrosivos, lançados por rapazes e homens armados de funis de latão. Mas também podiam assumir a forma de descantes nocturnos provocatórios, com vozes, quadras brejeiras, instrumentos musicais.
[17] Relativamente ao trajo académico, o primeiro liceu oitocentista a instituí-lo foi o Liceu de Coimbra, logo em 1836, visto ter ficado na dependência administrativa da reitoria da Universidade. Seguiu-se-lhe o Liceu de Évora, através de Portaria de 27 de Outubro de 1860, na sequência de uma intervenção de D. Pedro V. Neste Liceu e no Liceu Pedro Nunes (Lisboa) os estudantes usaram um barrete circular de pano preto (O Tacho). Para a década de 1940, ainda falando o Liceu de Évora, há notícia de serenatas, tonsura, baptismo em fontanário. No Liceu de Ponta Delgada usou-se capa e batina e instituiram-se serenatas, baile de finalistas, pontapés e pinturas, procissão do caloiro (com um rei instalado num andor), baptismo em fonte e festejos de fim do ano escolar (Enterro da Bicha). No Liceu do Funchal, também foco de práticas tradicionais inspiradas em Coimbra, o uso da capa e batina remonta à publicação de uma portaria governamental de 1889.
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