Pormenor da fachada principal do mausoléu de Raposo Marques no Cemitério da Conchada ("Pio"), Coimbra, com medalhão-retrato em bronze e dizeres votivos do "seu Orfeon" Académico. Manuel Raposo Marques nasceu na Ribeira Grande, Ilha de São Miguel, em 1902, tendo falecido na Ilha de Santa Maria, a 5 de Setembro de 1966. No regresso de uma digressão artística aos Açores com o Orfeon Académico, sofreu um colapso na aerogare da Ilha de Santa Maria, tendo sido assistido nos derradeiros momentos por duas figuras da música, da CC, e da Medicina, José Miguel Baptista e Jorge Tuna. Este jovem açoriano chegou a Coimbra por 1924 para frequentar Direito, curso jamais concluído, embora fosse frequentemente tratado por "Dr. Raposo Marques". De orfeonista mal conhecido e de tocador de bandola no elenco da TAUC, Raposo Marques foi-se tornando conhecido como tuno musicalmente ilustrado e compositor de temas para récitas estudantis e partituras de teatro amador popular. O lento definhamento do regente Padre Elias de Aguiar e a necessidade de regentes credíveis para o Orfeon e Tauc, agora vistos como potenciais instrumentos educativos do Estado Novo, ditaram a sorte de Raposo Marques. Após ter grangeado fama entre finais da década de 20 e os inícios dos anos trinta como compositor, arangista e regente substituto, MR foi despachado regente oficial da TAUC e do Orfeon em Janeiro de 1937. Assegurou ainda a regência da Cadeira de Música da Universidade de Coimbra durante longos anos.
De baixa estatura e figurinha palaciana, RM manteve sempre traços da rusticidade de origem, presentes na fonética micaelense, na rudeza de modos, no arrastamento da asa aos rabos de saia, e nos vernáculos palavrões que não se coibia de soltar mesmo quando se tratava de um elogio em língua inglesa. Vaidoso, trajava de lente com Batina abotoada e Capa talar, o peito medalhado de veneras. Num tempo em que Mussolini ficou famoso pelas suas poses militaristas, RM também ensaiou genialmente a sua entrada em palco com a ainda hoje falada escorregadela da capa. Entre finais da década de 1950 e os anos terminais da sua regência, RM entrara em franca decadência artística, ultrapassado por corais universitários de outras cidades e mesmo pelo arejado e experimentalista Coral das Letras (CELUC), regido por Francisco Faria. Amostras pontuais dessa derrapagem estética estão bem vincadas na forma solavancada como ensaiava "Alleluiah" de Haendell, e nos temas pirosos com que brindava a assistência em digressões internacionais, tipo "Rapsódia Luso Brasileira".
Tendo em conta a posição social que ocupou na UC, na Academia, na cidade de Coimbra, no Liceu e na Escola de Magistério, nas relações com o Ministério da Educação, e ainda os recursos que estavam ao seu alcance, podemos considerar RM um talento desperdiçado. Produziu escassas peças para o universo da CC, como a "Balada de Despedida do 5º Ano Médico de 1928", o "Fado da Despedida do 5º Ano Médico de 1928" (Oh meu amor pobrezinho, de parceria com Vaz Craveiro), a "Balada da Queima das Fitas de 1930", "Núvens Brancas" e a "Balada da Despedida do 5º Ano Médico de 1949" (sendo o arranjo para piano de João Anjo). A investigação produzida como docente universitário é insignificante. A edição de cancioneiros ou de recolhas e transcrições musicais é praticamente nula. Nada fez em prol da recolha e salvagurada do folclore de Coimbra, nem da CC.
Teria ficado bem a RM abandonar a regência do Orfeon por meados da década de 1950, após a fundação do Coral das Letras e do Coro Misto. No entanto, morreu tranquilamente aos 64 anos, no final de mais uma digressão orfeónica aos Açores. Os seus orfeonistas desculparam-lhe as bizarrarias, olhando com benevolência para a sua crescente decrepitude artística. Os menos informados dos novos caminhos da arte e seus devotados pupilos, só num registo de provincianismo fechado é que poderiam continuar a confundir filial afeição com qualidade artística.
Não tendo nascido no Estado Novo, RM acomodou-se à Universidade estadonovista, tendo vivido bem como um beneficiado cortesão, com as suas mordomias, condecorações, recepções e entradas solenes à Antigo Regime nas cidades visitadas, discursos de honra ao Orfeon na Sala dos Capelos, digressões escoltadas por membros do governo e da Universidade. As más línguas insinuavam que RM afinal sabia pouca música, sendo as composições e arranjos fabricados em casa por sua esposa Adélia. Se Adélia o desculpou, nós também o tentaremos compreender, lembrando aquela velha copla brejeira que se cantava nas antiquíssimas Fogueiras de São João da Alta de Coimbra: "O padre quando namora/Deita sempre a mão na coroa/Namora padre, namora/Que Deus tudo nos perdoa!" Quanto a nós, RM era acima de tudo um homem de bem com aquilo que a tão poucas vezes generosa Coimbra se presta a ofertar, possuindo dotes de encantador que usou na perfeição desde a sua nomeação oficial como regente em Janeiro de 1937 até à sua morte em 1966. Musicalmente ilustrado, que não ilustradíssimo, conivente e colaboracionista com o regime e com a sua Universidade sempre que necessário, lente de Música sem ser lente, "Dr." sem formatura, "Palestrina" representa uma certa imagem de uma certa Coimbra, num certo tempo... só possível numa atmosfera de encantamento e de prestidigitação. E Palestrina, se não tirava coelhos da cartola, tirava batutas da escorregadia capa de simulada lentência!
António M Nunes
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