sábado, fevereiro 04, 2006


"Fados com Açúcar" Posted by Picasa
Parece o título de uma telenovela mexicana de faca e de alguidar, mas não é! Como diria Isabel de Aragão a seu desconfiado esposo, "são saquetas de açúcar real senhor". Entre 21 de Maio de 2004 e 17 de Setembro de 2004 o jornal PÚBLICO editou às sextas-feiras uma luxuosa colecção de cds dedicada às celebrações dos "100 anos das primeiras gravações de discos de fado".
Até aqui nada de anormal que pudesse sobressaltar a morna historiografia. Cem anos não se celebram todos os dias. Daí a xaroposa doçura!
Pelo alinhamento anunciado em grandes parangonas publicitárias no título "O Fado do Público. Tudo isto existe, tudo isto é Público, tudo isto é Fado", em jornal PÚBLICO , de 21 de Maio de 2004, págs. 50-51, ficámos a saber que os cds nº 7 ("Fados e Baladas de Coimbra", edição a 2/07/2004) e nº 8 ("O Amigo Paredes", 9/07/2004) também integravam a colecção.
Estudada a proposta de alinhamento, ouvidos os discos, algumas perplexidades se nos assaltam. Confundido e não esclarecido, além de monumental golpe publicitário e de formidável proeza contemporânea portuguesa digna de suceder ao "Édito de Milão", perguntamos:
1 - Se em 2004 já se sabia de fonte segura que as primeiras gravações discográficas de Fado tinham ocorrido não em 1904 mas sim em 1902 no Brasil, quais os motivos que autorizaram a sustentação do embuste (e não vamos sequer perder tempo com as gravações em cilindro Edison feitas na década de 1890, pois essas são rolos e não discos!)?
2 - Se na década de 1990, a Heritage e a Tradisom já tinham lançado remasterizações de fados antigos, porque motivo só no cd 1 ("100 anos de Fado", de 21/05/2004), ocorrem algumas dessas gravações da década de 1920, num claro recuo histórico-sonoro?
3 - Se a colecção pretendia evocar primacialmente as composições antigas, como entender que das largas dezenas de fados oitocentistas impressos em fascículos de quiosque e cancioneiros, nenhum tenha sido dado a reconstituir a grupos organizados para o efeito? Se nada sabíamos dos fados primitivos oitocentistas, nada continuamos a saber. Bom, até nem será bem assim, pois o Rancho Folclórico do Porto gravou em Julho de 2000 um cd com significativa amostra de fados oitocentistas (Cf. "Fado do Porto recuperado pelo Rancho Folclórico do Porto", Porto, Fortes & Rangel, DCD 1051, ano de 2000). A comissão organizadora da colecção do Público desconhecia o referido disco, ou preferiu ignorá-lo?
4 - Não é de aceitar passiva e pacificamente a total e descarada omissão monocultural facultada pela amostragem proposta, quando o passado do Fado aponta de forma clara e inequívoca para o pluralismo de desempenhos. Por outras palavras, fenecem a esta colecção os Fados Coreográficos recolhidos e ainda hoje dançados pelos grupos folclóricos do Ribatejo, Estremadura, Beira Litoral e Açores; faltam os fados tocados pelos bandolins e acordeons; faltam os fados solados na Viola da Terra (Açores), na Viola Toeira (Coimbra) e na Viola Braguesa (Douro Litoral e Minho). Tais amostragens não são ficção: existem em recolhas musicais impressas e em recolhas sonoras de homens como Artur Santos e José alberto Sardinha.
5 - o cd nº 13 ("Fados do Porto", 13/08/2004), pretendendo centralizar a questão do Fado em Lisboa, comete uma autêntica falsificação da História ao negar a prática activa do Fado na cidade do Porto. Não é de todo verdade que o Fado não se tenha cultivado intensamente nas tascas, salões, cafés e restaurantes portuenses desde os alvores do século XIX. Não só se praticou, como se mantiveram em actividade artistas e formações com produções artísticas locais e inúmeros discos gravados. Se alguns fadistas oriundos do Porto se transferiram para Lisboa, muitos outros desenvolveram toda a sua actividade no Porto, mantendo contactos com a comunidade lisboeta. Compreende-se a necessidade ideológica de centralizar a questão do Fado em Lisboa. Ela é comparável ao insolúvel combate pelo impossível achamento da "verdadeira capital da chanfana". 2004 foi o ano da formulação larvar da candidatura patrimonial do Fado à Unesco. Mas uma candidatura não legitima fazer o mesmo que aqueles directores de ranchos folclóricos que, marcados pelo bairrismo exaltado, inventaram supostas abissais diferenças de viras e chulas entre a terra A e o local B. Por vezes, as invocadas diferenças eram apenas uma fala peculiar do mandador! Era o que acontecia na Mealhada, onde num povoado o mandador do Vira dava falas de "vira, vira" e noutro povoado se dizia "passa, passa".
6 - Muito dificilmente se poderá aceitar a inclusão da matéria do cd nº 7 ("Fados e Baladas de Coimbra", 2/07/2004) na referida colecção. Nenhuma das composições alinhadas ilustra cronologicamente o período oitocentista costumeiramente invocado como sendo o tempo das ligações entre Fado (de Lisboa) e Canção de Coimbra. As 12 faixas seleccionadas são todas cronologicamente posteriores a essa tão invocada ligação. Ora, se o objectivo da inclusão dessas faixas sonoras, como se disse, posteriores ao "tempo do fado", não serve para ilustrar a reclamada ligação umbilical, para que serve afinal o disco nº 7? Para reafirmar, uma vez mais, que quem diz a suposta "Estória do Chamado Fado de Coimbra" é o Fado de Lisboa? Por outro lado, se quisermos ser muito rigorosos, Coro dos Caídos, de José Afonso serve para documentar exactamente que movimento artístico neste disco? O único tema que pode servir de exemplificação a alguma proximidade entre os dois géneros artísticos é Fado Hylario Moderno, mais pela parte final em corrido menor, do que propriamente pela primeira parte. Os desenhos de Fernando Guerreiro mostram supostos estudantes em figurino de casas de fados, com guitarra de Lisboa. É a eterna sombra do filme "Capas Negras" com a fraude "Avril au Portugal", piedosamente tomada por tema universal da Canção de Coimbra. Aqui sim, estamos verdadeiramente confrontados com o tal espírito mexicano dos "fados com açúcar". Quanto ao cd nº 8 ("O Amigo Paredes", de 8/07/2004), mais aumentam as perplexidades. Em Coimbra jamais se chamaria o "Paredes" a Carlos Paredes, pois O PAREDES é Artur Paredes. Carlos Paredes numa colecção de fados? Mas Carlos Paredes nunca cultivou o Fado de Lisboa, como também não pretendeu confundir-se com a imagem do cultor da Canção de Coimbra tout court. Qual o critério? Integrou-se Carlos Paredes porque CP era um tocador de guitarra e a guitarra simboliza o Fado? Ou integrou-se CP porque os cultores do Fado se querem apropriar da herança de CP?
7 - Do pouco que me é dado conhecer da História da Canção de Coimbra (asseguro que não se trata de um brinde saído no pacote da farinha), ser-me-ia grato, razoável e avisado ver nesta colecção um cd intitulável "Amostra de Fados que se cantaram em Coimbra". Em 2004, data da preparação e comercialização deste projecto, já estava disponível uma lista de fados e de canções fadográficas que comprovadamente se cantaram em Coimbra. Além do arrolamento, era ainda possível disponibilizar a qualquer equipa de estudo/reconstituição fontes documentais (sonoras e impressas) com fados cantáveis e coreográficos. Os coordenadores do projecto não solicitaram este intercâmbio porque desconheciam pura e simplesmente a sua existência documental, ou porque estavam apostados em perpetuar unicamente a vulgata? A confirmar-se a 2ª hipótese, as consequências mediáticas de uma tal decisão são culturalmente gravíssimas. Vejamos, no plano da história comparada, tais atitudes irresponsáveis, correspondem à imposição da história branca dos EUA, com violento branquamento da ancestralidade da história dos povos índios anteriores a Colombo, à glorificação da gesta dos cowboys e ao triste confinamento dos índios em parques turísticos onde dançam com penachos aos domingos para os visitantes fotografarem!
Terminada esta espécie de novela adocicada, cujos folhetins agitaram jornais, deram origem a saquetas de açúcar e a canecas de louça distribuídas em pacotes de café Delta, a Canção de Coimbra viu-se respeitada na sua autonomia cultural e na sua individualidade artístico-patrimonial?
Como diria, Cunhal, "olhe que não, olhe que não..." . Quando a doçura é grande, o santo desconfia!
Post scriptum: agradeço ao Estimado Amigo e Ilustre Investigador Armando Luís de Carvalho Homem as oportunas palavras de corroboração a esta crónica que estava para sair havia pelo menos dois anos. Propositadamente não escrevi uma única palavra sobre os textos de Raul Vieira Nery, então publicados em fascículos ao longo dos vários discos. Entendendo que só tinha de me pronunciar, neste particular, em matéria de Canção de Coimbra, escrevi em finais de 2004 uma longa carta particular ao etnomusicólgo Dr. José Alberto Sardinha, carta essa onde expunha a minha indignação e profunda estranheza perante uma investigação que em 100 anos não se renovou, mais acrescentando que os invocados elos de ligação entre Fado e Canção de Coimbra jamais se comprovariam apenas com exemplificação de duas composições ("Fado de Coimbra" e "Fado dos Estudantes Açorianos!") estróficas. A verdade é que o monumental projecto foi do agrado de certos clercs, pois um Eduardo Prado Coelho não lhe poupou elogios. Em terra de cego quem tem olho é rei, lá diz o vulgo.
AMNunes

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