Canção de Coimbra /Reflexões ( III )
José Mesquita*
Encerramos as reflexões sobre o primeiro dos temas que nos propusemos abordar, com uma nota final que é, simultaneamente, um reparo. Assim, durante a elaboração destes despretensiosos textos, tivemos a oportunidade de ver e ouvir, com muita atenção, o DVD «História do Fado de Coimbra» (1), referido nos primeiros artigos. Ficámos então altamente surpreendidos, ou melhor dizendo, estupefactos, com a completa omissão de, uma simples referência que fosse, a António Pinho Brojo!!...
Sabemos muito bem que nestes artigos jornalísticos, com certo cariz histórico, as referências exaustivas são difíceis e por vezes incompatíveis com o «espaço» disponível...
Conhecemos também os melindres, susceptibilidades e outras " dificuldades", que não são de agora, mas sempre existiram no meio "fadístico"...
Seja como for, neste caso particular, tendo em conta a importância do Prof. António Pinho Brojo no contexto da música coimbrã, o grande número de instrumentistas referidos no DVD (alguns deles seus colaboradores directos ! ) e a diversidade dos temas aí abordados, a não citação deste ilustre guitarrista é, quanto a nós, completamente injustificável. Trata-se de uma omissão injusta e incompreensível para além de, obviamente, constituir uma lacuna grave na história que se pretende divulgar do fado de Coimbra...
Aqui fica a crítica, na esperança de que os Autores, se assim o entenderem, venham a reparar esta profunda injustiça e repor a verdade histórica. ( B )
Prosseguindo agora com a abordagem dos pontos previamente anunciados (ver 1º artigo), começamos hoje a debruçar-nos sobre o seguinte tema :
A Poesia nas suas relações com a componente musical (melódica/harmónica) e/ou interpretativa da Canção de Coimbra
É por demais óbvio que toda a peça musical composta para ser cantada integra duas componentes: a letra (poema) e a música (melodia). As relações entre estas duas componentes, sob vários aspectos (importância relativa, prioridade temporal na composição, etc.) têm algumas vezes sido utilizadas para delimitar géneros musicais... Foi o que fez, por exemplo, Afonso de Sousa relativamente aos fados de Lisboa e de Coimbra . Diz este ilustre cultor do fado e da guitarra de Coimbra (companheiro de Artur Paredes e dos maiores vultos do canto coimbrão da 1.ª geração de ouro) : "O fado lisboeta será musicalmente estruturado para ser adaptado à letra, à copla, que são preexistentes, sendo estas que vão inspirar a linha melódica. Forçosamente, o sentido intencional e descritivo da letra vai arrancar do compositor musical a frase melódica adequada a essa acção e ao sentimento revelados no estrato literário"(sic) (6).
Em contrapartida," os compositores de Coimbra constróem as suas composições abstractamente (música pela música)... sem disporem ainda de um tema literário a musicar, seja a tradicional quadra, seja outro poema, à excepção do soneto.. como aconteceria, por exemplo, com os seus próprios fados "Asas Brancas" e" Desalento". Assim sendo, essas composições (frequentemente em tons maiores e primando pela leveza da sua estrutura melódica) não tendo sido vazadas numa forma, adaptam-se sem esforço a esta ou aquela composição literária" ( 6 ).
Quanto à temática, o fado de Lisboa distinguir-se-ia do de Coimbra pela incidência nos temas da morte, catástrofe, desgraça, desespero, ciúme, amores trágicos, etc. etc.
Analisemos esta interpretação:
Genericamente, se estivermos a comparar "extremos", isto é, o "fado castiço de Lisboa" com o chamado "fado tradicional de Coimbra", e nos reportarmos há 40-50 anos atrás, esta distinção, realçada por Afonso de Sousa, poderá parecer suficientemente bem fundamentada!... Com efeito, ainda na minha geração (anos 50) era muito frequente constatar-se que os fados não constituíam, em si mesmo, peças minimamente estáveis nas suas componentes musical e poética. As clássicas duas quadras, frequentemente sem qualquer relação uma com a outra (às vezes até desconexas...), eram escolhidas à vontade e ao gosto do intérprete. A história do fado de Coimbra é pródiga nestes exemplos em que a mesma melodia é cantada com 2, 3, 4, e às vezes mais, letras diferentes!... (ex.: o "Meu fado" e "Canção das lágrimas" de Armando Goes, para já não falar dos clássicos " Fado Hilário" e Samaritana "). O mesmo acontecia, aliás, com as "Introduções instrumentais"!... A única coisa que interessava aos intervenientes era conhecer o tom em que se ia" cantar o fado"!! A partir daí era a plena liberdade (ou "libertinagem"...), para guitarristas e cantores, sendo frequentes diálogos do género :" Eh pá! O que é que vais cantar logo à noite" ? ( Referência a uma serenata previamente aprazada e "arrematada" para uma "garota", algures num "Lar" do Penedo ou na Rua dos "Coutinhos".). Resposta possível: .o "fado das andorinhas em mi menor".É evidente que, quando chegava a "hora da verdade", saía a "Introdução"que dava mais jeito ( desde que em mi menor.) e ." as andorinhas podiam nem sequer aparecer" !! Para o "meio fadístico",porém, a melodia ali estava .inconfundível. É evidente que este procedimento é bem mais difícil, senão mesmo impraticável, com outras "formas poéticas", que não a quadra tradicional. A comprová-lo podemos citar, bem cedo na "história do fado" ( décadas de 20-30 do século passado ) os, ainda raros, sonetos musicados por D. José Pais de Almeida e Silva ("Dobadoira", "Noite de Luar", etc.), onde a letra e a música "se casam numa união feliz e indissolúvel". É evidente que esta "necessidade", musical e estética, de conjugação harmoniosa da letra com a melodia, foi-se acentuando cada vez mais, com a diversificação da música coimbrã, logo a partir da década de 60 , mas, fundamentalmente, quando a "grande poesia "e os seus diferentes estilos começaram a entrar significativamente nessa música.(ver artigo anterior ). Sendo esta realidade incontornável e já presente na música coimbrã há várias décadas, não nos parece historicamente correcto, vir apresentá-la agora como "inovação" ou "autêntica revolução" no Fado de Coimbra ! !... ( 7 ).
Com efeito, seria hoje, no mínimo, de muito mau gosto, tentar interpretar melodias como o "Lago do Breu", "Menino do Bairro Negro", "Senhor Poeta", "Canção de Embalar" e tantas outras de Zeca Afonso, ou "É preciso acreditar", "Balada da distância", "Balada do rei vadio", "Boneca de trapo", "Romagem à Lapa" etc, etc, de Lionel Neves /Luiz Goes ou ainda "Súplica", "Ficam as sombras", "Canção", "Ostinato", "Se pudesse" .e outras de Miguel Torga e Eugénio de Andrade, com letras diferentes dos poemas originais para que foram compostas.
Então, se a situação de "música abstracta independente da letra" (6), não se pode generalizar na Canção de Coimbra, muito menos pode considerar-se seu exclusivo, pois vamos também encontrá-la, bem evidente, no Fado de Lisboa, no qual, como é sabido, 4-5 harmonizações (fado menor, fado corrido, fado Mouraria, fado Vitória.) dão suporte musical a dezenas / centenas de letras!!...
Continuaremos a analisar esta questão no próximo artigo.
(B) Tomámos conhecimento, recentemente, de uma nova versão ampliada (produção TELEVITA Reg. nº 12028 / 2005 ) que, infelizmente, neste particular, se mantém inalterada !...
De qualquer modo, gostaríamos de salientar que estes nossos reparos não questionam a valia e significado do DVD pois, para além do mais, trata-se do único trabalho sobre Fado de Coimbra, disponível no mercado, no domínio do audio-visual. Em nossa opinião, este pioneirismo justifica, só por si, a aquisição do DVD por quem se interesse por esta faceta das tradições da Academia de Coimbra.
Bibliografia
* Cultor da Canção de Coimbra ( canto e composição ).
(1) In"História do Fado de Coimbra" ( DVD ) estem LOSANGO 2004.
(2) « Diário de Coimbra, 7/6/1999
(3) « Semanário "O Jornal " ( Supl. Educação ), 12/1983
(4) « Semanário "O Jornal",8/3/1985
(5) « Expresso ( Única ),nº 1703, 18/6/2005
(6) « Separ./Comissão Municipal de Turismo ( 1981 )
(7) «"Diário As Beiras ( 21/09/2005 )
(8) «"Diário As Beiras" ( 17/04/2001 )
Legenda da Figura (Montagem Fotográfica):
Memória / Momentos : Tempo(s) de Coimbra / Divulgação da sua canção
Ao centro (A) : "Tempo(s) de Coimbra"- oito décadas no canto e na guitarra (1985) Edit. EMI-Valentim de Carvalho. Esta Antologia do Fado de Coimbra (6 discos), com várias edições (em vinil e cd) e que ainda se encontra no mercado, teve como base as gravações realizadas para a série de Televisão com o mesmo nome, da autoria e coordenação de António Brojo e António Portugal e interpretações do "Grupo de Guitarras e Cantares de Coimbra".
Em cima (B-D) : Grupo, com a composição mais frequente (Anos 80), em concerto no Palácio Foz - Lisboa (1982) (B), em gravação para a TV, no Páteo da U.C. (1983) (C) e com Carlos de Jesus (1995) (D). E, F, G - Digressão pela ex-União Soviética (U.R.S.S.) (1984), onde se constata que a "irreverência Coimbrã" não tem idade !!...
Em baixo (H-O) : Divulgando a Canção de Coimbra. H, Japão (1981); I, Açores / Madeira (1988); J, África do Sul (1989); K, Bulgária (1995); L, Macau (2005); M, Hong-Kong(2005) ; N, Bruxelas (?) e outras paragens como, Espanha, França, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, U.S.A., Brasil, Argentina.
<< Home