COIMBRA DO MEU TEMPO*
Por João MOURA
*Adaptação do texto “Coimbra, década de oitenta”, in “Canção de Coimbra, testemunhos vivos”, Coimbra, Edição da Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra (A.A.C.), 2002, pp. 181-195; idem, CD "Coimbra, espírito e raiz", Edição Coimbra XXI, 2005.
Por João MOURA
*Adaptação do texto “Coimbra, década de oitenta”, in “Canção de Coimbra, testemunhos vivos”, Coimbra, Edição da Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra (A.A.C.), 2002, pp. 181-195; idem, CD "Coimbra, espírito e raiz", Edição Coimbra XXI, 2005.
O Autor
João Carlos Vidaurre Pais de Moura nasceu em Cantanhede no dia 1 de Novembro de 1957. É licenciado em Farmácia pela Universidade de Coimbra (1981) e doutorado em Ciências (Química) pela Universidade do Minho, onde é Professor Associado. Foi fundador da Secção de Fado da AAC e seu primeiro monitor de Guitarra de Coimbra. Enquanto guitarrista exerceu intensa actividade artística e participou na gravação de pelo menos 3 discos, o último dos quais com Luiz Goes.
Nota prévia
Este texto foi originalmente preparado na sequência do convite que me foi feito pela Direcção Geral da A.A.C. para integrar uma antologia de textos sobre a Canção de Coimbra para ser reunida em livro a publicar no âmbito das comemorações do 115º aniversário da A.A.C. Na altura, para a preparação do texto, foram-me sugeridos diversos tópicos relacionados com os antecedentes à minha geração, com as influências recebidas de gerações anteriores, com as referências do meu tempo de estudante tais como o ambiente citadino e académico, o movimento associativo e a canção coimbrã.
Assim, este texto reporta-se essencialmente a uma década em que vivi intensamente Coimbra, o tempo do ressurgimento das tradições académicas e em que alguns dos temas agora apresentados foram criados.
Coimbra, Setembro de 1976. Iniciava o meu percurso pela Universidade de Coimbra que conduziria à obtenção do “canudo” em Farmácia, em 1982. Por influência familiar, cedo criei o gosto pela música, pela guitarra e pelas serenatas. O meu avô Daniel, alfaiate em Pombal, foi um cultor da guitarra portuguesa tendo participado em algumas serenatas na Sé Velha de Coimbra, e o meu pai, que cursou Medicina em Coimbra, foi quem me deu a conhecer o fado e a Canção Coimbrã. Recordo as manhãs de Domingo, ainda em criança, em que o meu pai tocando viola me deliciava cantando fados e baladas de Coimbra intervalados com histórias da boémia coimbrã.
Em 1967, com dez anos de idade, era já um adepto confesso da Académica de Coimbra sendo habitual deslocar-me com a família ao estádio municipal de Coimbra, nas tardes de Domingo. Tenho gravado na minha memória algumas imagens desses momentos inesquecíveis: a entrada em campo da Briosa ao som da "Balada de Coimbra", as capas negras espalhadas pelas bancadas, o Formidável, e os meus ídolos, os manos Campos, o Artur Jorge, o Toni, o Rocha, o Crispim e o Rui Rodrigues, entre outros. E o meu desespero quando assisti à derrota da Académica na final da Taça de Portugal, em 1967, frente ao Vitória de Setúbal. Salvou-se, nesse episódio, a visita tradicional dos estudantes de Coimbra ao cavalo de D. José, na Praça do Comércio.
Foi meu pai quem me iniciou na viola e o pouco que aprendi servia perfeitamente para trautear alguns fados e baladas de Coimbra. Na aldeia de Febres (hoje vila), Concelho de Cantanhede, onde residi até aos dezoito anos, existia uma tertúlia de cultores deste género musical e era frequente ser requisitado para animar o grupo nas noites quentes de verão. Fados, baladas, trovas e, sempre que o Manuel Rocha estava presente, poesia da boa e da melhor, eram os ingredientes para um serão bem passado. Havia um núcleo duro, o meu irmão Carlos, o Manuel e o Fernando da farmácia, o Fresco e o Miraldo, que providenciavam o repasto pois às duas da manhã sabia sempre bem uma bucha regada com vinho caseiro. Esta actividade tinha o seu ponto alto na Praia de Mira, em Agosto, onde o meu irmão me mobilizava para as serenatas frequentes que o grupo realizava. As noites acabavam invariavelmente com fados e baladas de Coimbra, no café Mirassol.
Com quinze anos, já tinha criado o gosto pela Canção Coimbrã e, por influência familiar, tirar um curso em Coimbra fazia parte dos meus planos. Mais, alimentava o sonho de vir a tocar guitarra portuguesa, o instrumento nuclear para acompanhar o fado e que apenas conheci quando cheguei a Coimbra. A sua sonoridade já me tinha tocado quando ouvi pela primeira vez Artur e Carlos Paredes num álbum conjunto (editora Alvorada, temas gravados em 1957, 1962 e 1963) em que deixaram bem expresso as potencialidades da guitarra portuguesa como instrumento de solo. O génio da composição, da execução e da interpretação das guitarradas, e que se repetiram em trabalhos posteriores, marcaram-me profundamente.
Foi por essa altura que conheci a voz de Luiz Goes através de um trabalho discográfico intitulado “Serenata de Coimbra” (editora Philips) com a participação do Quinteto de Coimbra, e que considero um ex-libris da Canção de Coimbra, quer do ponto de vista musical quer do ponto de vista técnico. Este intérprete já fazia parte do meu imaginário quer através de meu pai, que referenciava Goes como um dos grandes, senão o maior cantor de Coimbra, quer através de minha mãe, que cursou Farmácia e que, tendo sido sua vizinha, ouvia-o frequentemente durante os ensaios do grupo.
Quando chegou a hora de frequentar o ensino superior, de entre as universidades existentes, Coimbra foi a única opção que considerei. A minha determinação em aprender a guitarra portuguesa era grande, o fado, a canção dos estudantes, tinha aqui a sua expressão máxima e Coimbra era a única cidade que me permitiria atingir, naturalmente, esse objectivo.
Na época, Coimbra era uma cidade onde não se ouvia o "Fado de Coimbra" e a Academia estava adormecida quanto às suas tradições. A Crise Académica de 1969, o luto académico e a proibição da praxe tiveram reflexos negativos após o 25 de Abril de 1974 pois qualquer actividade relacionada com a praxe era reprimida no seio da Academia pelos movimentos mais radicais e que lideravam as Direcções Gerais da Associação Académica de Coimbra (A.A.C.).
Na minha opinião, as Direcções Gerais da A.A.C., até 1978, cometeram um erro político enorme ao reprimirem o ressurgimento das tradições, em todas as suas vertentes. Não souberam (ou não quiseram) distinguir entre o que havia de positivo e de negativo nas praxes colocando no mesmo saco o "Fado de Coimbra" e o que havia de mais retrógrado na praxe académica. Recordo, nesse período conturbado da Academia, os debates nas “Engenharias” e as opiniões favoráveis de nomes insuspeitos tais como José Carlos Vasconcelos e Fernando Assis Pacheco àcerca do ressurgimento das Tradições Académicas.
A questão para mim era básica: se a Canção de Coimbra (o fado, a balada, a trova, a canção de intervenção) constituiu uma forma de resistência à ditadura, tendo a Academia banido o seu culto público, na sequência da Crise Académica de 1969 em sinal de protesto contra o regime, não seria normal que, após o 25 de Abril de 1974, esse culto fosse retomado em toda a sua plenitude? O "Fado de Coimbra", a canção dos estudantes, arma de arremesso contra um regime ditatorial, património ímpar da Universidade e da cidade, podia ser hostilizado e conotado politicamente como fascista por um grupo de estudantes radicais?
A Academia tardava em acordar...
Quando cheguei a Coimbra, em 1976, a minha determinação em aprender a guitarra portuguesa e em envolver-me no "Fado de Coimbra", levou-me a procurar os locais de ensino deste instrumento. Percorri a Associação Académica e não encontrei uma única referência ao fado ou à guitarra. Procurei informar-me junto de outros organismos universitários e a resposta foi sempre negativa. Já quase em desespero, indicaram-me que na A.C.M. (Associação Cristã da Mocidade), à rua Alexandre Herculano, havia uma classe de guitarra portuguesa dirigida por Jorge Gomes, a única existente em Coimbra. Este professor já tinha iniciado a classe de guitarra em 1972, nas Piscinas Municipais, por iniciativa do Dr. Mendes Silva, tendo transitado em 1974 para a A.C.M. A partir de 1978, esta actividade continuou no Edifício Chiado. Assim iniciei a aprendizagem deste instrumento tendo como colegas o Tó Zé Moreira, o Henrique Ferrão e o António Nogueira.
Coimbra e a Universidade têm uma dívida enorme para com o mestre Jorge Gomes pois com a sua dedicação interveio directamente no ressurgimento da guitarra portuguesa e do "Fado de Coimbra" ao ensinar ao longo de três décadas as sucessivas gerações de estudantes que frequentaram (e frequentam) as suas aulas.
Neste período, na cidade de Coimbra, o culto público do fado não existia. Excepcionalmente, em Junho de 1976, Coimbra assistiu a uma Serenata de Coimbra, nos claustros da Igreja de Santa Cruz e integrada nas festas da cidade e onde participaram, de entre outros, Pinho Brojo, Jorge Gomes, Manuel Dourado, Aurélio dos Reis, Alfredo da Glória Correia, Amândio Marques, José Mesquita e António Nogueira. Este último, proveniente da escola de Jorge Gomes, fazia a sua estreia em serenatas públicas com dezoito anos de idade.
Fui Pyn-Guyn de 1976 a 1978 e era frequente ser mobilizado para tocar guitarra e acompanhar o fado nos serões da República dos Pyn-Guyns. E alguns antigos repúblicos tornaram-se visitas frequentes fazendo questão de cantar um fado ou uma balada. Tomei então consciência de que algo estava errado pois a grande maioria dos repúblicos estavam fortemente conotados com os sectores mais esquerdistas da Academia e no entanto reviam-se no culto da guitarra e do fado. Muitos serões eram passados com debates acalorados sobre este tema e era opinião dominante que a guitarra, a Canção de Coimbra e dos estudantes, deveria estar acima de qualquer tentativa de instrumentalização e das guerras políticas entre os vários sectores da Academia.
O ressurgimento das tradições académicas…
1978 e 1979 foram anos nucleares pois começaram a surgir, no seio da Academia, diversos grupos de estudantes que usavam Capa e Batina e a ideia do ressurgimento das tradições começou a ganhar corpo. Outros grupos defendiam uma posição mais radical, isto é, o ressurgimento da praxe académica em todas as suas vertentes. O assunto era polémico criando conflitos frequentes entre as diversas facções a favor e contra as tradições.
Em Maio de 1978 realizou-se o I Seminário sobre o Fado de Coimbra onde estiveram presentes inúmeros cultores da guitarra e do "Fado de Coimbra" e que culminou com uma Serenata Monumental na Sé Velha, no dia 20 de Maio. Esta iniciativa da Associação dos Antigos Estudantes da Universidade de Coimbra contou com o apoio da Comissão Municipal de Turismo de Coimbra, da Universidade de Coimbra, do Governo Civil e da Câmara Municipal.
As eleições para a Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra, em 1979, ficaram marcadas por uma viragem histórica pois a lista vencedora, liderada por Maló de Abreu, propôs-se apoiar o ressurgimento das tradições e promover a realização de uma Semana Académica que deveria dar corpo, nos anos subsequentes, à realização da Queima das Fitas.
É também em 1979 que aparecem ao público os trabalhos discográficos do Prof. José Mesquita intitulados “Canções de Coimbra” e “Fados e Baladas de Coimbra” (editora Vadeca) em que colaboram Pinho Brojo e Jorge Gomes, nas guitarras, e Aurélio dos Reis e Manuel Dourado, nas violas.
O Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra nasce em 1978. Encontrava-me no segundo ano de Farmácia, com quarto na República dos Pyn-Guyns, e fui contactado pelo Vítor Baltasar e pelo Carlos Caiado para fazer parte, como guitarrista, de um grupo de fados de Coimbra, recém-criado e constituído maioritariamente por estudantes da Universidade. Dele faziam parte o António Pedroso (guitarra), o José António Nobre e o Rui Figueiredo (violas) e o Vítor Baltasar e o Carlos Caiado (vozes). Por este grupo, que se mantém activo, passaram inúmeros estudantes de Coimbra: no canto, Luís Cartario, José Morgado, José Neves, Fernando Castro, António Pimentel, Rui Lucas, Fernando Silva e António Nogueira; na guitarra, Francisco Alte da Veiga, Nuno Maia Grego e Filipe Almeida. Actualmente, o grupo é constituído por João Moura, Domingos Mateus (guitarra), José Santos e Luís Veloso (viola), Vítor Barreto e Jaime Leite (vozes).
No início, o ponto de encontro do grupo era o café Moçambique, na Praça da República e, por diversas vezes, houve “problemas” com estudantes mais radicais opositores ao "Fado de Coimbra". Naquele tempo a Academia estava fortemente dividida e era arriscado atravessar a Praça da República com a guitarra debaixo do braço. Com o passar do tempo, tornámo-nos familiares do Moçambique e chegámos a fechar o café com fados e baladas de Coimbra.
O grupo iniciou as suas “serenatas” públicas por volta de Junho de 1978 e o meu baptismo foi no dia 8 de Julho, em Coimbra, na Ladeira das Alpenduradas. Logo no dia seguinte, rumámos para outra serenata, em Mata, Torres Novas, promovida pela Filarmónica local e onde aconteceu um episódio à boa maneira de Coimbra. Viajámos de comboio, de Coimbra até à estação de Paialvo e fizémos o resto do trajecto em viaturas dos elementos da organização. Só que à entrada da povoação, esperáva-nos uma recepção “oficial” digna de Primeiro Ministro. Cumprimentos feitos, lá prosseguimos em procissão até ao centro da povoação, trajados a rigor, instrumentos às costas, e com a Banda Filarmónica da Mata, alto e bom som, na rectaguarda. O melhor estava para vir! Quando nos aproximámos do largo principal, onde estava a maioria da população e que nos aplaudia entusiasticamente, estava um outro grupo de fados de Coimbra que também nos aplaudia e que era constituído por nomes bem conhecidos da Canção Coimbrã: António Portugal, Pinho Brojo, Aurélio dos Reis, Luís Filipe, José Mesquita, Alfredo da Glória Correia e Pedro Natal da Luz.
Para nós era uma situação extremamente embaraçosa pois não nos revíamos nesta ascenção súbita ao estrelato, tanto mais que à nossa frente estavam aqueles, que por direito próprio, eram os mestres do "Fado de Coimbra". O embaraço deu lugar a um pedido de desculpas da nossa parte ao que nos foi prontamente respondido que nada de anormal existia, e a recepção era mesmo para nós já que éramos o primeiro grupo de fados de Coimbra, nascido no seio da Academia após o 25 de Abril de 1974. Mais, sendo um grupo de estudantes, tínhamos sobre os ombros a responsabilidade de restaurar as tradições académicas, em particular, a Canção de Coimbra. Nem mais! Foi uma noite de convívio, memorável, que se repetiu ao longo dos anos noutras situações e que serviu para criar laços fortes com os mestres.
Em 1978 e 1979 o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra realizou dezenas de serenatas, a maioria delas, em Coimbra. Embora na cidade, por vezes surgissem problemas com estudantes mais radicais, sentíamos um grande apoio por parte de muitos estudantes e da população, o que constituía para nós um grande incentivo. O grupo começou a ser conhecido na Academia sendo frequentemente convidado para realizar serenatas de rua e em festas de vilas e cidades e para participar nas iniciativas culturais de algumas secções da A.A.C. Recordo, entre outras, as serenatas em Seixas, Caminha, em Oliveira de Azeméis, em Pinhel e em Lisboa, no Pavilhão dos Desportos.
De Capa e Batina, os estudantes voltavam a cantar o fado...
O grupo participou em 1979, a convite da Direcção Geral da A.A.C., na Serenata Monumental da Semana Académica que teve lugar no dia 2 de Junho, sábado, na Sé Velha. A organização foi da responsabilidade dos Antigos Orfeonistas tendo participado, de entre outros, Augusto Camacho, António Portugal, Almeida Santos, Amândio de Azevedo, Cardoso e Cunha, Mário Medeiros, Jorge Biscaia e Higino Faria. Ao estrear-se na Sé, o nosso grupo interpretou o "Fado Corrido de Coimbra" (Vitor Baltasar) e "Adeus Minho Encantador" (Carlos Caiado).
O Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, desde a sua fundação até 1987, representou a Academia em diversas ocasiões nomeadamente, nas Serenatas Monumentais, por ocasião da Queima das Fitas e Recepção ao Caloiro (ininterruptamente, desde 1979 até 1987), nas festas de cidades, nas semanas académicas de outras universidades, nas digressões ao estrangeiro integrado em embaixadas académicas, nas inúmeras intervenções na televisão, contabilizando-se em centenas de intervenções musicais.
No dia 19 de Maio de 1979 ocorreu o II Seminário sobre o Fado de Coimbra que teve o seu ponto alto na Serenata Monumental na Sé Velha e onde estiveram presentes inúmeros cultores do "Fado de Coimbra", com destaque para o grupo de alunos da “Escola de Fado”, que funcionava no Edificio Chiado e era dirigida por Jorge Gomes. Nesta Serenata, o António Nogueira teve a sua estreia na Sé Velha.
A Academia encontrava-se dividida. Paralelamente à Semana Académica, decorreu o “Dia da Flor”, uma actividade organizada pelas estruturas ligadas à Direcção Geral anterior, e onde foram comemorados os dez anos sobre os acontecimentos de 1969. Na sessão de “canto livre”, que teve lugar nos jardins da A.A.C., na mesma noite da Serenata, participaram entre outros, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Manuel Freire e Paulo Vaz de Carvalho.
A primeira Queima das Fitas após 1969…
1980 foi um ano ímpar para a Universidade de Coimbra. A realização da primeira Queima das Fitas após o 25 de Abril de 1974 e o início da actividade do “Grupo Dinamizador” que veio a dar origem à Secção de Fado, no edifício da A.A.C., contribuíram decisivamente para o ressurgimento das tradições académicas e para o "Fado de Coimbra" em particular.
As serenatas monumentais de 1978 e 1979, a propósito da realização dos seminários sobre o Fado de Coimbra e da Semana Académica, tiveram uma grande adesão dos estudantes e da população, enchendo por completo o largo da Sé. Ocorreram algumas tentativas de perturbação da ordem por parte de grupos radicais que foram prontamente anuladas. A serenata monumental de 1980, a 22 de Maio, excedeu todas as expectativas. Às 23 horas já todo o largo da Sé e as ruas limítrofes estavam repletas de estudantes que, nalguns casos, permaneciam no local desde as 20 horas.
Para além do nosso grupo, constituído pelo Francisco Alte da Veiga (guitarra), Carlos Caiado e José António (violas), Vítor Baltasar, José Neves e Luís Cartario (vozes), participou outro grupo constituído por Luiz Goes e Augusto Camacho (vozes), João Bagão e Aires de Aguilar (guitarras) e João Gomes e António Toscano (violas). A noite acabou com uma grande confraternização em casa do Dr. Alfredo da Glória Correia, a quem muito devemos pois sempre apoiou o grupo desde o início participando connosco em inúmeros ensaios e actuações.
É por esta altura que recebo o convite do Prof. Pinho Brojo para alguns valiosos ensinamentos, tendo frequentado a sua casa durante cerca de dois anos. Esta situação repetiu-se com o Dr. António Portugal e foi graças a estes dois mestres e a Jorge Gomes, com quem me iniciei, que desenvolvi a técnica da guitarra.
O nascimento da Secção de Fado…
Em 1980 foi dado o primeiro passo para o nascimento da Secção de Fado da A.A.C. No início desse ano, fui contactado pelo Mário Afonso e pelo Joaquim (Quim) Reis para integrar um movimento cuja finalidade seria “restituir” o "Fado de Coimbra" à Academia e à cidade. Havia a consciência, no seio do grupo, que era urgente agir propondo a criação de uma nova Secção na A.A.C. onde se promovesse o culto do "Fado de Coimbra", em todas as suas vertentes. Seria imprescindível a criação simultânea, no seio dessa Secção, de uma escola de fado onde se ensinasse a guitarra portuguesa, a viola e o canto. Só assim poderiam emergir novos cultores do "Fado de Coimbra" e manter vivas as tradições.
A Direcção Geral da A.A.C., presidida por Luís Teixeira e que apoiava de uma forma clara a criação de uma estrutura relacionada com o culto do fado, aprovou em reunião de direcção de 25 de Junho de 1980, a cedência da sala 3-18 para a futura Secção de Fado, atribuindo ao “Grupo Dinamizador” a responsabilidade de levar por diante esta tarefa que culminaria com a realização de eleições no início de 1981. Deste grupo faziam parte inúmeros estudantes que mais tarde vieram a integrar os corpos gerentes da Secção e os diversos grupos que nasceram no seu seio. Destaco dois deles, o Quim Reis e o Mário Afonso, pela mobilização que conseguiram da Academia, em suma, pela paixão à causa do ressurgimento das tradições.
Após a instalação na sala 3-18, o “Grupo Dinamizador” iniciou de imediato a sua actividade tendo em vista o arranque das aulas de música nas classes de guitarra portuguesa, viola e canto, logo a partir de Outubro, coincidindo assim com o início do ano lectivo na Universidade. Se dúvidas existiam quanto à adesão dos estudantes, cedo foram desfeitas pois o número de inscritos para cada classe ultrapassou largamente o previsto. O número de sócios da Secção de Fado rapidamente atingiu os duzentos. A ajuda pronta da Direcção Geral, que cedeu uma das suas salas para a audição prévia das dezenas de estudantes inscritos, permitiu a seriação e distribuição dos melhores pelas várias valências.
A Fundação Calouste Gulbenkian apadrinhou o projecto e atribuiu um subsídio de 50.000$00 para aquisição de guitarras portuguesas e violas. O F.A.O.J. (Instituto Português da Juventude)também ofereceu alguns instrumentos. As aulas começaram em Novembro de 1980 e eu tive a meu cargo o ensino da guitarra portuguesa, acumulado com a classe de canto e que se prolongou até 1984. Os primeiros meses foram marcados por uma actividade frenética na Secção, que era procurada diariamente por muitos estudantes que queriam aderir e tomar parte activa no projecto de restauração das tradições que ocorria na Academia e que era promovido pela Secção de Fado.
Muitos estudantes revelavam não possuir aptidões para tocar guitarra, viola ou cantar o fado, mas mesmo assim permaneciam sócios da Secção. Sentíamos a necessidade de expandir e diversificar o leque de opções dentro da Secção, não limitando a actividade ao "Fado de Coimbra". Assim nasceram, nos dois anos seguintes, a Orxestra Pitagórica, o Grupo de Cordas, a Orquestra Típica e Rancho e mais tarde, a Estudantina. Foram três anos “loucos” vividos intensamente em que alguns de nós tiveram de abraçar muitos projectos simultaneamente. Além da actividade de gestão na Secção, fazíamos parte de todos os grupos da Secção.
Em apenas dois anos, a Secção de Fado, devido ao seu trabalho, conseguiu atingir uma grande notoriedade no seio da Academia passando a ser um parceiro privilegiado da Direcção Geral e das várias Comissões da Queima das Fitas na organização de eventos aquando das festas académicas, com destaque para o Sarau Académico. Esta parceria forte com a Direcção Geral só foi possível devido ao entusiasmo do Luís Pais de Sousa (Presidente), do António Marques, do Jorge Costa, do José Américo e do Carlos Andrade, tendo os três últimos sido seccionistas activos da Secção de Fado.
A primeira direcção da Secção de Fado foi eleita em 24 de Fevereiro de 1981, sendo seu presidente o Mário Afonso, que fez mais um mandato. Foram vice-presidentes o Quim Reis e o José Seco tendo eu sido secretário nas duas primeiras direcções. Muitos outros fizeram parte da direcção nos dois primeiros anos: Artur Ribeiro, Carlos Delfim, Mário Toste, José Carlos Amaral, Carlos Andrade, Luís Serra e Silva, Paulo Serra e Silva, Carlos Caiado, Filipe Almeida, Fátima Canelas e Joaquim Diogo.
A Semana Académica de 1979 marcou o início do ressurgimento das tradições cujo processo foi consolidado com as Queimas das Fitas de 1980 e seguintes. Paralelamente, ocorreram outros eventos importantes em prol das tradições. Em 1981 teve lugar outra actividade, a Recepção ao Caloiro, que se iniciou com uma Serenata Monumental no dia 9 de Janeiro. Participaram para além do nosso grupo (Carlos Caiado, José António, Nuno Maia Grego, Luís Cartario, Vítor Baltasar e José Neves), o grupo do Prof. Pinho Brojo e do Dr. António Portugal, e o Grupo de Guitarras de Henrique Ferrão (Henrique Ferrão, Rijo Madeira, Arsénio Carvalho, Jorge Cravo e António Nogueira), que teve a sua estreia nas festas da Academia. Nos anos seguintes, estes dois grupos de estudantes participaram em todas as Serenatas Monumentais realizadas na Sé Velha aquando dos festejos académicos.
A 15 de Março de 1981, o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, representando a Secção de Fado da A.A.C., realizou a sua primeira actuação na TV, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, integrado no espectáculo “Censos 81”. O Mário Afonso, Presidente da Secção de Fado, acompanhou o grupo e teve a seu cargo a negociação do contrato. O cachet de 18.000$00 reverteu para a compra de instrumentos da Secção. Nessa altura, chegámos a ir a Salamanca comprar violas, por serem mais baratas do que em Coimbra.
Dois meses depois, nos dias 2 e 3 de Maio, teve lugar o IV Seminário sobre o Fado de Coimbra, organizado pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra e com o patrocínio da Reitoria e da Comissão Municipal de Turismo de Coimbra. O Seminário, à semelhança dos anteriores, foi muito participado e culminou com a realização de uma Serenata Monumental na Sé Velha.
Poucos dias depois, a 14 de Maio, iniciava-se a Queima das Fitas com a realização de mais uma Serenata Monumental na Sé Velha e que contou com a participação dos dois grupos de estudantes. No nosso grupo, participaram o António Pimentel (estreia na Sé) e o António Nogueira.
A Secção de Fado teve uma grande participação em vários eventos da Queima nomeadamente na Tarde de Arte e no Sarau, através da participação do grupo de Fados, da Orquestra Típica e Rancho, do Aurelino Costa (poesia) e da Orxestra Pitagórica, que fez a sua estreia. Integrado nas festividades da Queima, o nosso grupo fez a segunda intervenção em directo na TV, no átrio do auditório da Reitoria.
A Tomada da Bastilha foi comemorada em 1981, com a realização de uma Serenata Monumental no dia 24 de Novembro em que participaram os dois grupos de estudantes da Academia. Estes dois grupos participaram, durante vários anos, nas Serenatas Monumentais na Sé Velha, garantindo assim o culto e divulgação do Fado de Coimbra.
No ano de 1981 participei, enquanto discípulo do Prof. Pinho Brojo, nas gravações para a televisão, em Dezembro desse ano, de um programa sobre a sua vida e obra. Este convite, que muito me honrou, e em que interpretei uma variação da sua autoria, veio no seguimento das aulas de guitarra que eu há muito tinha com o mestre.
O ano de 1982 foi também marcado por uma actividade intensa do grupo de fados, no âmbito da Secção de Fado. Foram largas dezenas de actuações por todo o país, representando a Academia, e que contribuíram para divulgar o Fado e a Canção de Coimbra. Nesse ano, o Instituto Superior Técnico iniciava também as suas festas académicas e realizámos duas Serenatas de Coimbra nas escadarias do IST, a 15 de Janeiro e a 30 de Abril, por ocasião da Recepção ao Caloiro e da Quinzena do Técnico, respectivamente. Participámos também na Semana Académica do Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa, a 28 de Maio, com a realização de uma Serenata de Coimbra.
O grupo de fados da Secção de Fados da A.A.C. integrou, em 1982, uma embaixada académica numa digressão a França e Itália, de 30 de Março a 9 de Abril, com actuações em Toulose, Montpellier, Aix-en-Provence, Veneza, Bolonha, Pádua e Roma. O grupo de fados que integrava a comitiva resultou da fusão do nosso grupo (Tó Nogueira e Carlos Caiado) com a Tertúlia do Fado de Coimbra (José Carlos Teixeira, Eduardo Aroso, José Miguel Baptista, Nuno Carvalho e Joaquim Matos).
Em Coimbra, ocorreram as Serenatas Monumentais da Recepção ao Caloiro e da Queima das Fitas, a 8 de Janeiro e a 13 de Maio, respectivamente. Nesta última, estrearam-se, pelo nosso grupo, o Filipe Almeida (guitarra) e o Fernando Castro (voz). Mais uma vez, a Secção de Fado e em particular, o grupo de fados, participou em diversas actividades da Queima: Tarde de Arte, Tarde da Terceira Idade, Sarau e Inauguração da exposição “Coimbra Antiga-Museu Académico”, no Museu Machado de Castro. No Sarau, estreou-se o Grupo de Cordas da Secção de Fado da A.A.C., que integrava os instrumentistas do grupo de fados da Secção de Fado (João Moura, Filipe Almeida e Carlos Caiado).
Na Serenata Monumental comemorativa da Tomada da Bastilha, realizada a 24 de Novembro de 1982, estreou-se pelo grupo o José Morgado (voz).
Nesse ano de 1982, a Academia coimbrã viveu as tradições em toda a sua plenitude. O Fado de Coimbra, expoente máximo da tradição coimbrã, era cantado pelos estudantes e a Secção de Fado recebia inúmeros convites para realizar Serenatas de Coimbra por todo o país. Para a televisão, em 1982, realizámos sete intervenções, com destaque para a Gala da RTP, no Coliseu do Porto, em representação da Academia, e para a série de programas “Cantos e Contos de Coimbra”, da autoria de Sansão Coelho, e em que a Secção de Fado e o grupo de fados participaram várias vezes.
Até 1987, o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra manteve-se activo no seio da Academia, tendo participado nas Serenatas Monumentais das várias festas académicas e tendo representado a Secção de Fado, a A.A.C., a Universidade e a cidade de Coimbra em inúmeras ocasiões, no país e no estrangeiro. Em 1988 gravou um LP intitulado “10 anos...uma Serenata” onde, a par de temas inéditos, interpretou temas clássicos, procurando reproduzir o ambiente de uma Serenata Monumental ao vivo. Não cabe aqui fazer uma descrição pormenorizada da actividade do Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, que se mantém activo, mas tenho consciência do contributo que o grupo deu, quer através do culto e divulgação da Canção de Coimbra, quer através do envolvimento dos seus elementos em todo o processo de ressurgimento das tradições académicas e do "Fado de Coimbra" em particular.
Os responsáveis pelo ressurgimento das tradições…
Importa também sublinhar as entidades e individualidades que intervieram directamente no ressurgimento das tradições e que, nalguns casos, já foram referidas ao longo do texto. A Comissão Municipal de Turismo de Coimbra, o Governo Civil de Coimbra, a Reitoria da Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal, que deram todo o apoio à realização dos vários Seminários sobre o Fado de Coimbra, iniciados em 1978 e organizados pela Associação dos Antigos Estudantes da Universidade de Coimbra. A Rádio Renascença, através da voz de Armando Marques Ferreira, e o Diário de Coimbra, que desde o primeiro momento estiveram ao nosso lado na divulgação e no apoio à Canção de Coimbra.
Merece também grande destaque o Dr. Joaquim Teixeira Santos, pelo seu envolvimento nestes eventos que conduziram ao ressurgimento das tradições. A ideia dos Seminários surgiu na sequência de uma reunião em Lisboa, em Junho de 1977, onde estiveram presentes, entre outros, Teixeira Santos, Luiz Goes, Fernando Rolim, Machado Soares, Alexandre Herculano, Augusto Camacho, Pinho Brojo, António Portugal, Aurélio dos Reis, Florêncio de Carvalho, Tossan e Condorcet Pais Mamede, e onde foi decidido lutar pela defesa de uma das mais ricas tradições coimbrãs, o "Fado de Coimbra".
O trabalho das Direcções Gerais da Associação Académica de Coimbra, no período 1979-81 e presididas por Maló de Abreu, Luís Teixeira e Luís Pais de Sousa, a dedicação de Jorge Gomes, desde 1972, ao formar sucessivas gerações de guitarristas, a paixão do Quim Reis e o empenho do Mário Afonso que, com muitos estudantes anónimos ergueram a Secção de Fado da A.A.C., os movimentos para a restauração das tradições académicas e a adesão da população de Coimbra, foram outros factores decisivos que contribuíram para o ressurgimento das tradições, em particular, o Fado de Coimbra.
A título pessoal, destaco os meus mestres, Jorge Gomes, Pinho Brojo e António Portugal, que me apoiaram e transmitiram os seus conhecimentos da guitarra portuguesa, e Luiz Goes, pelo apoio, em dois momentos importantes para o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra: a sua participação, com Augusto Camacho, na Serenata Monumental de 1980, um ano nuclear para a Academia no processo de restauração das tradições, e o apoio incondicional ao grupo aquando do lançamento do trabalho discográfico “10 anos...uma Serenata”.
De Coimbra até ao Minho…
Março de 1984. Ingresso na Universidade do Minho iniciando a minha carreira profissional numa Universidade nova onde as festas académicas começavam a afirmar-se, à semelhança das Academias de outras Universidades. Através do António Mingocho, conheci uma tertúlia de "Fado de Coimbra" de que faziam parte, entre outros, o Manuel Borralho e o Luís Cerqueira, guitarristas que viveram Coimbra antes de mim e cujos ensinamentos foram muitos úteis para aperfeiçoar a técnica da guitarra.
É em Braga que reencontro o Nuno Carvalho, no âmbito da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Braga. Após um ano de preparação, participámos, com o Luís Veloso, na gravação de um LP de fados de Coimbra intitulado “De Coimbra...até ao Minho” (1989), onde seleccionámos alguns temas do folclore minhoto, e onde repusémos a versão original da "Balada de Coimbra", cantada, da autoria de José Elyseu e H. M. de Carvalho e imortalizada pela guitarra de Artur Paredes.
O Grupo de Guitarra, Flauta e Poesia…
É no ano de 1984, na altura como monitor de Guitarra de Coimbra na Casa da Cultura de Braga, que reencontro o Abel Gonçalves, instrumentista de flauta do grupo Raízes e que tinha conhecido no Coliseu do Porto, durante um espectáculo comemorativo dos 25 anos de emissões regulares da RTP-Porto, que foi transmitido em directo pela TV. Decidimos explorar novos sons na guitarra e na flauta, trabalho já iniciado por Carlos Paredes e Tiago Velez. Desde 1985 existe o grupo de flauta, guitarra e poesia, com o Luís Veloso na viola e o Aurelino Costa na voz. Este grupo está inserido na ARCUM (Associação Recreativa e Cultural Universitária do Minho); esporadicamente dá recitais de música e poesia. Participou na gravação de temas inéditos nos CD´s “Viagens” (1995), “Coimbra…enCanto e Poesia” (2000) e “Na Voz do Regresso” (2001).
Dos vários temas de autoria do grupo, seleccionámos três temas instrumentais: “Crepúsculo” e “Melodia nº 2” que se reportam ao início do grupo, ainda com o António Mingocho (viola) e o Quim Né (percurssão), e “Tributo a Carlos Paredes”, composição recente contando já com a colaboração de Luís Veloso.
Dos temas cantados, “Guitarra de Coimbra” e “História Encantada”, retirados do primeiro livro do Carlos Carranca, foram musicados por volta de 1982 e foram guardados na gaveta durante duas décadas.
Foram estes dois temas que um dia, numa tarde de Outono de 2001, tive a ousadia de mostrar a Luiz Goes e que despertaram a sua atenção. Esse dia ficará para sempre gravado na minha memória: O Fado, a Vida, Coimbra, o seu encanto e o seu desencanto, foram temas para uma tarde que entrou pela noite, ficando a disponibilidade para participarmos neste projecto, no domínio da música de matriz Coimbrã.
Nesse dia saí da casa de Goes com uma energia enorme para enfrentar este desafio e nessa noite pouco dormi. No dia seguinte, telefonei ao Carlos Carranca dando conta da conversa com Goes. Tinha umas músicas guardadas há muito tempo, algumas delas feitas em 1982-83, e queria, ou melhor, exigia a sua colaboração. Desta vez era ao contrário, a partir das minhas músicas, o Carlos teria que criar a letra! E assim foi, após alguns encontros, uns retiros no Prilhão, Lousã, surgiram os poemas que fomos trabalhando com Luiz Goes em ensaios, ou melhor, em convívios, que tinham lugar em Cascais, em sua casa, duas vezes por mês.
Recordo que a primeira reacção do Carlos ao repto que lhe lancei – de criar as letras para as músicas – foi de alguma surpresa. Perguntou-me se não seria melhor recorrer aos poetas ditos consagrados (os antigos) que passaram por Coimbra. Mereceu resposta pronta: eu quero cantar os poetas do meu tempo!
Igual reacção teve o Mário Afonso (primeiro presidente da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra) quando lhe pedi para captar imagens inéditas de Coimbra que iriam dar corpo a este projecto. Ainda tentou remeter o trabalho para os “grandes” fotógrafos de Coimbra. Também não lhe valeu de nada! É que este projecto é um projecto de afectos que teve início no tempo do ressurgimento das tradições académicas, no tempo em que todos nós estivemos profundamente envolvidos e alguns dos temas aqui incluídos foram produto desse período.
A este projecto, junta-se Luiz Goes, voz eterna por dentro de Coimbra, pessoa nuclear na sua concretização. A sua grandeza, a sua generosidade, a sua disponibilidade desde o primeiro momento, permitiram que o sonho se transformasse em realidade.
No percurso destes últimos vinte anos fica este registo que só foi possível dar a conhecer graças ao Carlos Carranca e à sua paixão por Coimbra e ao entusiasmo do José Santos, do Luís Veloso, do Abel Gonçalves e do Aurelino Costa.
Este é um testemunho muito resumido acerca do meu tempo de Coimbra, e que foca de um modo muito superficial, alguns aspectos de um período que foi vivido apaixonadamente. Assim, voltei a ser estudante na minha Coimbra, salpicando-a aqui e ali de alguns episódios originais. Tendo consciência das minhas próprias limitações e também de que muito ficou por contar, resta-me o desejo de que ao ouvirem este trabalho regressem, mesmo que lá não tenham estado, à Coimbra do meu tempo.
Nota prévia
Este texto foi originalmente preparado na sequência do convite que me foi feito pela Direcção Geral da A.A.C. para integrar uma antologia de textos sobre a Canção de Coimbra para ser reunida em livro a publicar no âmbito das comemorações do 115º aniversário da A.A.C. Na altura, para a preparação do texto, foram-me sugeridos diversos tópicos relacionados com os antecedentes à minha geração, com as influências recebidas de gerações anteriores, com as referências do meu tempo de estudante tais como o ambiente citadino e académico, o movimento associativo e a canção coimbrã.
Assim, este texto reporta-se essencialmente a uma década em que vivi intensamente Coimbra, o tempo do ressurgimento das tradições académicas e em que alguns dos temas agora apresentados foram criados.
Coimbra, Setembro de 1976. Iniciava o meu percurso pela Universidade de Coimbra que conduziria à obtenção do “canudo” em Farmácia, em 1982. Por influência familiar, cedo criei o gosto pela música, pela guitarra e pelas serenatas. O meu avô Daniel, alfaiate em Pombal, foi um cultor da guitarra portuguesa tendo participado em algumas serenatas na Sé Velha de Coimbra, e o meu pai, que cursou Medicina em Coimbra, foi quem me deu a conhecer o fado e a Canção Coimbrã. Recordo as manhãs de Domingo, ainda em criança, em que o meu pai tocando viola me deliciava cantando fados e baladas de Coimbra intervalados com histórias da boémia coimbrã.
Em 1967, com dez anos de idade, era já um adepto confesso da Académica de Coimbra sendo habitual deslocar-me com a família ao estádio municipal de Coimbra, nas tardes de Domingo. Tenho gravado na minha memória algumas imagens desses momentos inesquecíveis: a entrada em campo da Briosa ao som da "Balada de Coimbra", as capas negras espalhadas pelas bancadas, o Formidável, e os meus ídolos, os manos Campos, o Artur Jorge, o Toni, o Rocha, o Crispim e o Rui Rodrigues, entre outros. E o meu desespero quando assisti à derrota da Académica na final da Taça de Portugal, em 1967, frente ao Vitória de Setúbal. Salvou-se, nesse episódio, a visita tradicional dos estudantes de Coimbra ao cavalo de D. José, na Praça do Comércio.
Foi meu pai quem me iniciou na viola e o pouco que aprendi servia perfeitamente para trautear alguns fados e baladas de Coimbra. Na aldeia de Febres (hoje vila), Concelho de Cantanhede, onde residi até aos dezoito anos, existia uma tertúlia de cultores deste género musical e era frequente ser requisitado para animar o grupo nas noites quentes de verão. Fados, baladas, trovas e, sempre que o Manuel Rocha estava presente, poesia da boa e da melhor, eram os ingredientes para um serão bem passado. Havia um núcleo duro, o meu irmão Carlos, o Manuel e o Fernando da farmácia, o Fresco e o Miraldo, que providenciavam o repasto pois às duas da manhã sabia sempre bem uma bucha regada com vinho caseiro. Esta actividade tinha o seu ponto alto na Praia de Mira, em Agosto, onde o meu irmão me mobilizava para as serenatas frequentes que o grupo realizava. As noites acabavam invariavelmente com fados e baladas de Coimbra, no café Mirassol.
Com quinze anos, já tinha criado o gosto pela Canção Coimbrã e, por influência familiar, tirar um curso em Coimbra fazia parte dos meus planos. Mais, alimentava o sonho de vir a tocar guitarra portuguesa, o instrumento nuclear para acompanhar o fado e que apenas conheci quando cheguei a Coimbra. A sua sonoridade já me tinha tocado quando ouvi pela primeira vez Artur e Carlos Paredes num álbum conjunto (editora Alvorada, temas gravados em 1957, 1962 e 1963) em que deixaram bem expresso as potencialidades da guitarra portuguesa como instrumento de solo. O génio da composição, da execução e da interpretação das guitarradas, e que se repetiram em trabalhos posteriores, marcaram-me profundamente.
Foi por essa altura que conheci a voz de Luiz Goes através de um trabalho discográfico intitulado “Serenata de Coimbra” (editora Philips) com a participação do Quinteto de Coimbra, e que considero um ex-libris da Canção de Coimbra, quer do ponto de vista musical quer do ponto de vista técnico. Este intérprete já fazia parte do meu imaginário quer através de meu pai, que referenciava Goes como um dos grandes, senão o maior cantor de Coimbra, quer através de minha mãe, que cursou Farmácia e que, tendo sido sua vizinha, ouvia-o frequentemente durante os ensaios do grupo.
Quando chegou a hora de frequentar o ensino superior, de entre as universidades existentes, Coimbra foi a única opção que considerei. A minha determinação em aprender a guitarra portuguesa era grande, o fado, a canção dos estudantes, tinha aqui a sua expressão máxima e Coimbra era a única cidade que me permitiria atingir, naturalmente, esse objectivo.
Na época, Coimbra era uma cidade onde não se ouvia o "Fado de Coimbra" e a Academia estava adormecida quanto às suas tradições. A Crise Académica de 1969, o luto académico e a proibição da praxe tiveram reflexos negativos após o 25 de Abril de 1974 pois qualquer actividade relacionada com a praxe era reprimida no seio da Academia pelos movimentos mais radicais e que lideravam as Direcções Gerais da Associação Académica de Coimbra (A.A.C.).
Na minha opinião, as Direcções Gerais da A.A.C., até 1978, cometeram um erro político enorme ao reprimirem o ressurgimento das tradições, em todas as suas vertentes. Não souberam (ou não quiseram) distinguir entre o que havia de positivo e de negativo nas praxes colocando no mesmo saco o "Fado de Coimbra" e o que havia de mais retrógrado na praxe académica. Recordo, nesse período conturbado da Academia, os debates nas “Engenharias” e as opiniões favoráveis de nomes insuspeitos tais como José Carlos Vasconcelos e Fernando Assis Pacheco àcerca do ressurgimento das Tradições Académicas.
A questão para mim era básica: se a Canção de Coimbra (o fado, a balada, a trova, a canção de intervenção) constituiu uma forma de resistência à ditadura, tendo a Academia banido o seu culto público, na sequência da Crise Académica de 1969 em sinal de protesto contra o regime, não seria normal que, após o 25 de Abril de 1974, esse culto fosse retomado em toda a sua plenitude? O "Fado de Coimbra", a canção dos estudantes, arma de arremesso contra um regime ditatorial, património ímpar da Universidade e da cidade, podia ser hostilizado e conotado politicamente como fascista por um grupo de estudantes radicais?
A Academia tardava em acordar...
Quando cheguei a Coimbra, em 1976, a minha determinação em aprender a guitarra portuguesa e em envolver-me no "Fado de Coimbra", levou-me a procurar os locais de ensino deste instrumento. Percorri a Associação Académica e não encontrei uma única referência ao fado ou à guitarra. Procurei informar-me junto de outros organismos universitários e a resposta foi sempre negativa. Já quase em desespero, indicaram-me que na A.C.M. (Associação Cristã da Mocidade), à rua Alexandre Herculano, havia uma classe de guitarra portuguesa dirigida por Jorge Gomes, a única existente em Coimbra. Este professor já tinha iniciado a classe de guitarra em 1972, nas Piscinas Municipais, por iniciativa do Dr. Mendes Silva, tendo transitado em 1974 para a A.C.M. A partir de 1978, esta actividade continuou no Edifício Chiado. Assim iniciei a aprendizagem deste instrumento tendo como colegas o Tó Zé Moreira, o Henrique Ferrão e o António Nogueira.
Coimbra e a Universidade têm uma dívida enorme para com o mestre Jorge Gomes pois com a sua dedicação interveio directamente no ressurgimento da guitarra portuguesa e do "Fado de Coimbra" ao ensinar ao longo de três décadas as sucessivas gerações de estudantes que frequentaram (e frequentam) as suas aulas.
Neste período, na cidade de Coimbra, o culto público do fado não existia. Excepcionalmente, em Junho de 1976, Coimbra assistiu a uma Serenata de Coimbra, nos claustros da Igreja de Santa Cruz e integrada nas festas da cidade e onde participaram, de entre outros, Pinho Brojo, Jorge Gomes, Manuel Dourado, Aurélio dos Reis, Alfredo da Glória Correia, Amândio Marques, José Mesquita e António Nogueira. Este último, proveniente da escola de Jorge Gomes, fazia a sua estreia em serenatas públicas com dezoito anos de idade.
Fui Pyn-Guyn de 1976 a 1978 e era frequente ser mobilizado para tocar guitarra e acompanhar o fado nos serões da República dos Pyn-Guyns. E alguns antigos repúblicos tornaram-se visitas frequentes fazendo questão de cantar um fado ou uma balada. Tomei então consciência de que algo estava errado pois a grande maioria dos repúblicos estavam fortemente conotados com os sectores mais esquerdistas da Academia e no entanto reviam-se no culto da guitarra e do fado. Muitos serões eram passados com debates acalorados sobre este tema e era opinião dominante que a guitarra, a Canção de Coimbra e dos estudantes, deveria estar acima de qualquer tentativa de instrumentalização e das guerras políticas entre os vários sectores da Academia.
O ressurgimento das tradições académicas…
1978 e 1979 foram anos nucleares pois começaram a surgir, no seio da Academia, diversos grupos de estudantes que usavam Capa e Batina e a ideia do ressurgimento das tradições começou a ganhar corpo. Outros grupos defendiam uma posição mais radical, isto é, o ressurgimento da praxe académica em todas as suas vertentes. O assunto era polémico criando conflitos frequentes entre as diversas facções a favor e contra as tradições.
Em Maio de 1978 realizou-se o I Seminário sobre o Fado de Coimbra onde estiveram presentes inúmeros cultores da guitarra e do "Fado de Coimbra" e que culminou com uma Serenata Monumental na Sé Velha, no dia 20 de Maio. Esta iniciativa da Associação dos Antigos Estudantes da Universidade de Coimbra contou com o apoio da Comissão Municipal de Turismo de Coimbra, da Universidade de Coimbra, do Governo Civil e da Câmara Municipal.
As eleições para a Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra, em 1979, ficaram marcadas por uma viragem histórica pois a lista vencedora, liderada por Maló de Abreu, propôs-se apoiar o ressurgimento das tradições e promover a realização de uma Semana Académica que deveria dar corpo, nos anos subsequentes, à realização da Queima das Fitas.
É também em 1979 que aparecem ao público os trabalhos discográficos do Prof. José Mesquita intitulados “Canções de Coimbra” e “Fados e Baladas de Coimbra” (editora Vadeca) em que colaboram Pinho Brojo e Jorge Gomes, nas guitarras, e Aurélio dos Reis e Manuel Dourado, nas violas.
O Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra nasce em 1978. Encontrava-me no segundo ano de Farmácia, com quarto na República dos Pyn-Guyns, e fui contactado pelo Vítor Baltasar e pelo Carlos Caiado para fazer parte, como guitarrista, de um grupo de fados de Coimbra, recém-criado e constituído maioritariamente por estudantes da Universidade. Dele faziam parte o António Pedroso (guitarra), o José António Nobre e o Rui Figueiredo (violas) e o Vítor Baltasar e o Carlos Caiado (vozes). Por este grupo, que se mantém activo, passaram inúmeros estudantes de Coimbra: no canto, Luís Cartario, José Morgado, José Neves, Fernando Castro, António Pimentel, Rui Lucas, Fernando Silva e António Nogueira; na guitarra, Francisco Alte da Veiga, Nuno Maia Grego e Filipe Almeida. Actualmente, o grupo é constituído por João Moura, Domingos Mateus (guitarra), José Santos e Luís Veloso (viola), Vítor Barreto e Jaime Leite (vozes).
No início, o ponto de encontro do grupo era o café Moçambique, na Praça da República e, por diversas vezes, houve “problemas” com estudantes mais radicais opositores ao "Fado de Coimbra". Naquele tempo a Academia estava fortemente dividida e era arriscado atravessar a Praça da República com a guitarra debaixo do braço. Com o passar do tempo, tornámo-nos familiares do Moçambique e chegámos a fechar o café com fados e baladas de Coimbra.
O grupo iniciou as suas “serenatas” públicas por volta de Junho de 1978 e o meu baptismo foi no dia 8 de Julho, em Coimbra, na Ladeira das Alpenduradas. Logo no dia seguinte, rumámos para outra serenata, em Mata, Torres Novas, promovida pela Filarmónica local e onde aconteceu um episódio à boa maneira de Coimbra. Viajámos de comboio, de Coimbra até à estação de Paialvo e fizémos o resto do trajecto em viaturas dos elementos da organização. Só que à entrada da povoação, esperáva-nos uma recepção “oficial” digna de Primeiro Ministro. Cumprimentos feitos, lá prosseguimos em procissão até ao centro da povoação, trajados a rigor, instrumentos às costas, e com a Banda Filarmónica da Mata, alto e bom som, na rectaguarda. O melhor estava para vir! Quando nos aproximámos do largo principal, onde estava a maioria da população e que nos aplaudia entusiasticamente, estava um outro grupo de fados de Coimbra que também nos aplaudia e que era constituído por nomes bem conhecidos da Canção Coimbrã: António Portugal, Pinho Brojo, Aurélio dos Reis, Luís Filipe, José Mesquita, Alfredo da Glória Correia e Pedro Natal da Luz.
Para nós era uma situação extremamente embaraçosa pois não nos revíamos nesta ascenção súbita ao estrelato, tanto mais que à nossa frente estavam aqueles, que por direito próprio, eram os mestres do "Fado de Coimbra". O embaraço deu lugar a um pedido de desculpas da nossa parte ao que nos foi prontamente respondido que nada de anormal existia, e a recepção era mesmo para nós já que éramos o primeiro grupo de fados de Coimbra, nascido no seio da Academia após o 25 de Abril de 1974. Mais, sendo um grupo de estudantes, tínhamos sobre os ombros a responsabilidade de restaurar as tradições académicas, em particular, a Canção de Coimbra. Nem mais! Foi uma noite de convívio, memorável, que se repetiu ao longo dos anos noutras situações e que serviu para criar laços fortes com os mestres.
Em 1978 e 1979 o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra realizou dezenas de serenatas, a maioria delas, em Coimbra. Embora na cidade, por vezes surgissem problemas com estudantes mais radicais, sentíamos um grande apoio por parte de muitos estudantes e da população, o que constituía para nós um grande incentivo. O grupo começou a ser conhecido na Academia sendo frequentemente convidado para realizar serenatas de rua e em festas de vilas e cidades e para participar nas iniciativas culturais de algumas secções da A.A.C. Recordo, entre outras, as serenatas em Seixas, Caminha, em Oliveira de Azeméis, em Pinhel e em Lisboa, no Pavilhão dos Desportos.
De Capa e Batina, os estudantes voltavam a cantar o fado...
O grupo participou em 1979, a convite da Direcção Geral da A.A.C., na Serenata Monumental da Semana Académica que teve lugar no dia 2 de Junho, sábado, na Sé Velha. A organização foi da responsabilidade dos Antigos Orfeonistas tendo participado, de entre outros, Augusto Camacho, António Portugal, Almeida Santos, Amândio de Azevedo, Cardoso e Cunha, Mário Medeiros, Jorge Biscaia e Higino Faria. Ao estrear-se na Sé, o nosso grupo interpretou o "Fado Corrido de Coimbra" (Vitor Baltasar) e "Adeus Minho Encantador" (Carlos Caiado).
O Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, desde a sua fundação até 1987, representou a Academia em diversas ocasiões nomeadamente, nas Serenatas Monumentais, por ocasião da Queima das Fitas e Recepção ao Caloiro (ininterruptamente, desde 1979 até 1987), nas festas de cidades, nas semanas académicas de outras universidades, nas digressões ao estrangeiro integrado em embaixadas académicas, nas inúmeras intervenções na televisão, contabilizando-se em centenas de intervenções musicais.
No dia 19 de Maio de 1979 ocorreu o II Seminário sobre o Fado de Coimbra que teve o seu ponto alto na Serenata Monumental na Sé Velha e onde estiveram presentes inúmeros cultores do "Fado de Coimbra", com destaque para o grupo de alunos da “Escola de Fado”, que funcionava no Edificio Chiado e era dirigida por Jorge Gomes. Nesta Serenata, o António Nogueira teve a sua estreia na Sé Velha.
A Academia encontrava-se dividida. Paralelamente à Semana Académica, decorreu o “Dia da Flor”, uma actividade organizada pelas estruturas ligadas à Direcção Geral anterior, e onde foram comemorados os dez anos sobre os acontecimentos de 1969. Na sessão de “canto livre”, que teve lugar nos jardins da A.A.C., na mesma noite da Serenata, participaram entre outros, Sérgio Godinho, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Manuel Freire e Paulo Vaz de Carvalho.
A primeira Queima das Fitas após 1969…
1980 foi um ano ímpar para a Universidade de Coimbra. A realização da primeira Queima das Fitas após o 25 de Abril de 1974 e o início da actividade do “Grupo Dinamizador” que veio a dar origem à Secção de Fado, no edifício da A.A.C., contribuíram decisivamente para o ressurgimento das tradições académicas e para o "Fado de Coimbra" em particular.
As serenatas monumentais de 1978 e 1979, a propósito da realização dos seminários sobre o Fado de Coimbra e da Semana Académica, tiveram uma grande adesão dos estudantes e da população, enchendo por completo o largo da Sé. Ocorreram algumas tentativas de perturbação da ordem por parte de grupos radicais que foram prontamente anuladas. A serenata monumental de 1980, a 22 de Maio, excedeu todas as expectativas. Às 23 horas já todo o largo da Sé e as ruas limítrofes estavam repletas de estudantes que, nalguns casos, permaneciam no local desde as 20 horas.
Para além do nosso grupo, constituído pelo Francisco Alte da Veiga (guitarra), Carlos Caiado e José António (violas), Vítor Baltasar, José Neves e Luís Cartario (vozes), participou outro grupo constituído por Luiz Goes e Augusto Camacho (vozes), João Bagão e Aires de Aguilar (guitarras) e João Gomes e António Toscano (violas). A noite acabou com uma grande confraternização em casa do Dr. Alfredo da Glória Correia, a quem muito devemos pois sempre apoiou o grupo desde o início participando connosco em inúmeros ensaios e actuações.
É por esta altura que recebo o convite do Prof. Pinho Brojo para alguns valiosos ensinamentos, tendo frequentado a sua casa durante cerca de dois anos. Esta situação repetiu-se com o Dr. António Portugal e foi graças a estes dois mestres e a Jorge Gomes, com quem me iniciei, que desenvolvi a técnica da guitarra.
O nascimento da Secção de Fado…
Em 1980 foi dado o primeiro passo para o nascimento da Secção de Fado da A.A.C. No início desse ano, fui contactado pelo Mário Afonso e pelo Joaquim (Quim) Reis para integrar um movimento cuja finalidade seria “restituir” o "Fado de Coimbra" à Academia e à cidade. Havia a consciência, no seio do grupo, que era urgente agir propondo a criação de uma nova Secção na A.A.C. onde se promovesse o culto do "Fado de Coimbra", em todas as suas vertentes. Seria imprescindível a criação simultânea, no seio dessa Secção, de uma escola de fado onde se ensinasse a guitarra portuguesa, a viola e o canto. Só assim poderiam emergir novos cultores do "Fado de Coimbra" e manter vivas as tradições.
A Direcção Geral da A.A.C., presidida por Luís Teixeira e que apoiava de uma forma clara a criação de uma estrutura relacionada com o culto do fado, aprovou em reunião de direcção de 25 de Junho de 1980, a cedência da sala 3-18 para a futura Secção de Fado, atribuindo ao “Grupo Dinamizador” a responsabilidade de levar por diante esta tarefa que culminaria com a realização de eleições no início de 1981. Deste grupo faziam parte inúmeros estudantes que mais tarde vieram a integrar os corpos gerentes da Secção e os diversos grupos que nasceram no seu seio. Destaco dois deles, o Quim Reis e o Mário Afonso, pela mobilização que conseguiram da Academia, em suma, pela paixão à causa do ressurgimento das tradições.
Após a instalação na sala 3-18, o “Grupo Dinamizador” iniciou de imediato a sua actividade tendo em vista o arranque das aulas de música nas classes de guitarra portuguesa, viola e canto, logo a partir de Outubro, coincidindo assim com o início do ano lectivo na Universidade. Se dúvidas existiam quanto à adesão dos estudantes, cedo foram desfeitas pois o número de inscritos para cada classe ultrapassou largamente o previsto. O número de sócios da Secção de Fado rapidamente atingiu os duzentos. A ajuda pronta da Direcção Geral, que cedeu uma das suas salas para a audição prévia das dezenas de estudantes inscritos, permitiu a seriação e distribuição dos melhores pelas várias valências.
A Fundação Calouste Gulbenkian apadrinhou o projecto e atribuiu um subsídio de 50.000$00 para aquisição de guitarras portuguesas e violas. O F.A.O.J. (Instituto Português da Juventude)também ofereceu alguns instrumentos. As aulas começaram em Novembro de 1980 e eu tive a meu cargo o ensino da guitarra portuguesa, acumulado com a classe de canto e que se prolongou até 1984. Os primeiros meses foram marcados por uma actividade frenética na Secção, que era procurada diariamente por muitos estudantes que queriam aderir e tomar parte activa no projecto de restauração das tradições que ocorria na Academia e que era promovido pela Secção de Fado.
Muitos estudantes revelavam não possuir aptidões para tocar guitarra, viola ou cantar o fado, mas mesmo assim permaneciam sócios da Secção. Sentíamos a necessidade de expandir e diversificar o leque de opções dentro da Secção, não limitando a actividade ao "Fado de Coimbra". Assim nasceram, nos dois anos seguintes, a Orxestra Pitagórica, o Grupo de Cordas, a Orquestra Típica e Rancho e mais tarde, a Estudantina. Foram três anos “loucos” vividos intensamente em que alguns de nós tiveram de abraçar muitos projectos simultaneamente. Além da actividade de gestão na Secção, fazíamos parte de todos os grupos da Secção.
Em apenas dois anos, a Secção de Fado, devido ao seu trabalho, conseguiu atingir uma grande notoriedade no seio da Academia passando a ser um parceiro privilegiado da Direcção Geral e das várias Comissões da Queima das Fitas na organização de eventos aquando das festas académicas, com destaque para o Sarau Académico. Esta parceria forte com a Direcção Geral só foi possível devido ao entusiasmo do Luís Pais de Sousa (Presidente), do António Marques, do Jorge Costa, do José Américo e do Carlos Andrade, tendo os três últimos sido seccionistas activos da Secção de Fado.
A primeira direcção da Secção de Fado foi eleita em 24 de Fevereiro de 1981, sendo seu presidente o Mário Afonso, que fez mais um mandato. Foram vice-presidentes o Quim Reis e o José Seco tendo eu sido secretário nas duas primeiras direcções. Muitos outros fizeram parte da direcção nos dois primeiros anos: Artur Ribeiro, Carlos Delfim, Mário Toste, José Carlos Amaral, Carlos Andrade, Luís Serra e Silva, Paulo Serra e Silva, Carlos Caiado, Filipe Almeida, Fátima Canelas e Joaquim Diogo.
A Semana Académica de 1979 marcou o início do ressurgimento das tradições cujo processo foi consolidado com as Queimas das Fitas de 1980 e seguintes. Paralelamente, ocorreram outros eventos importantes em prol das tradições. Em 1981 teve lugar outra actividade, a Recepção ao Caloiro, que se iniciou com uma Serenata Monumental no dia 9 de Janeiro. Participaram para além do nosso grupo (Carlos Caiado, José António, Nuno Maia Grego, Luís Cartario, Vítor Baltasar e José Neves), o grupo do Prof. Pinho Brojo e do Dr. António Portugal, e o Grupo de Guitarras de Henrique Ferrão (Henrique Ferrão, Rijo Madeira, Arsénio Carvalho, Jorge Cravo e António Nogueira), que teve a sua estreia nas festas da Academia. Nos anos seguintes, estes dois grupos de estudantes participaram em todas as Serenatas Monumentais realizadas na Sé Velha aquando dos festejos académicos.
A 15 de Março de 1981, o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, representando a Secção de Fado da A.A.C., realizou a sua primeira actuação na TV, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, integrado no espectáculo “Censos 81”. O Mário Afonso, Presidente da Secção de Fado, acompanhou o grupo e teve a seu cargo a negociação do contrato. O cachet de 18.000$00 reverteu para a compra de instrumentos da Secção. Nessa altura, chegámos a ir a Salamanca comprar violas, por serem mais baratas do que em Coimbra.
Dois meses depois, nos dias 2 e 3 de Maio, teve lugar o IV Seminário sobre o Fado de Coimbra, organizado pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra e com o patrocínio da Reitoria e da Comissão Municipal de Turismo de Coimbra. O Seminário, à semelhança dos anteriores, foi muito participado e culminou com a realização de uma Serenata Monumental na Sé Velha.
Poucos dias depois, a 14 de Maio, iniciava-se a Queima das Fitas com a realização de mais uma Serenata Monumental na Sé Velha e que contou com a participação dos dois grupos de estudantes. No nosso grupo, participaram o António Pimentel (estreia na Sé) e o António Nogueira.
A Secção de Fado teve uma grande participação em vários eventos da Queima nomeadamente na Tarde de Arte e no Sarau, através da participação do grupo de Fados, da Orquestra Típica e Rancho, do Aurelino Costa (poesia) e da Orxestra Pitagórica, que fez a sua estreia. Integrado nas festividades da Queima, o nosso grupo fez a segunda intervenção em directo na TV, no átrio do auditório da Reitoria.
A Tomada da Bastilha foi comemorada em 1981, com a realização de uma Serenata Monumental no dia 24 de Novembro em que participaram os dois grupos de estudantes da Academia. Estes dois grupos participaram, durante vários anos, nas Serenatas Monumentais na Sé Velha, garantindo assim o culto e divulgação do Fado de Coimbra.
No ano de 1981 participei, enquanto discípulo do Prof. Pinho Brojo, nas gravações para a televisão, em Dezembro desse ano, de um programa sobre a sua vida e obra. Este convite, que muito me honrou, e em que interpretei uma variação da sua autoria, veio no seguimento das aulas de guitarra que eu há muito tinha com o mestre.
O ano de 1982 foi também marcado por uma actividade intensa do grupo de fados, no âmbito da Secção de Fado. Foram largas dezenas de actuações por todo o país, representando a Academia, e que contribuíram para divulgar o Fado e a Canção de Coimbra. Nesse ano, o Instituto Superior Técnico iniciava também as suas festas académicas e realizámos duas Serenatas de Coimbra nas escadarias do IST, a 15 de Janeiro e a 30 de Abril, por ocasião da Recepção ao Caloiro e da Quinzena do Técnico, respectivamente. Participámos também na Semana Académica do Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa, a 28 de Maio, com a realização de uma Serenata de Coimbra.
O grupo de fados da Secção de Fados da A.A.C. integrou, em 1982, uma embaixada académica numa digressão a França e Itália, de 30 de Março a 9 de Abril, com actuações em Toulose, Montpellier, Aix-en-Provence, Veneza, Bolonha, Pádua e Roma. O grupo de fados que integrava a comitiva resultou da fusão do nosso grupo (Tó Nogueira e Carlos Caiado) com a Tertúlia do Fado de Coimbra (José Carlos Teixeira, Eduardo Aroso, José Miguel Baptista, Nuno Carvalho e Joaquim Matos).
Em Coimbra, ocorreram as Serenatas Monumentais da Recepção ao Caloiro e da Queima das Fitas, a 8 de Janeiro e a 13 de Maio, respectivamente. Nesta última, estrearam-se, pelo nosso grupo, o Filipe Almeida (guitarra) e o Fernando Castro (voz). Mais uma vez, a Secção de Fado e em particular, o grupo de fados, participou em diversas actividades da Queima: Tarde de Arte, Tarde da Terceira Idade, Sarau e Inauguração da exposição “Coimbra Antiga-Museu Académico”, no Museu Machado de Castro. No Sarau, estreou-se o Grupo de Cordas da Secção de Fado da A.A.C., que integrava os instrumentistas do grupo de fados da Secção de Fado (João Moura, Filipe Almeida e Carlos Caiado).
Na Serenata Monumental comemorativa da Tomada da Bastilha, realizada a 24 de Novembro de 1982, estreou-se pelo grupo o José Morgado (voz).
Nesse ano de 1982, a Academia coimbrã viveu as tradições em toda a sua plenitude. O Fado de Coimbra, expoente máximo da tradição coimbrã, era cantado pelos estudantes e a Secção de Fado recebia inúmeros convites para realizar Serenatas de Coimbra por todo o país. Para a televisão, em 1982, realizámos sete intervenções, com destaque para a Gala da RTP, no Coliseu do Porto, em representação da Academia, e para a série de programas “Cantos e Contos de Coimbra”, da autoria de Sansão Coelho, e em que a Secção de Fado e o grupo de fados participaram várias vezes.
Até 1987, o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra manteve-se activo no seio da Academia, tendo participado nas Serenatas Monumentais das várias festas académicas e tendo representado a Secção de Fado, a A.A.C., a Universidade e a cidade de Coimbra em inúmeras ocasiões, no país e no estrangeiro. Em 1988 gravou um LP intitulado “10 anos...uma Serenata” onde, a par de temas inéditos, interpretou temas clássicos, procurando reproduzir o ambiente de uma Serenata Monumental ao vivo. Não cabe aqui fazer uma descrição pormenorizada da actividade do Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, que se mantém activo, mas tenho consciência do contributo que o grupo deu, quer através do culto e divulgação da Canção de Coimbra, quer através do envolvimento dos seus elementos em todo o processo de ressurgimento das tradições académicas e do "Fado de Coimbra" em particular.
Os responsáveis pelo ressurgimento das tradições…
Importa também sublinhar as entidades e individualidades que intervieram directamente no ressurgimento das tradições e que, nalguns casos, já foram referidas ao longo do texto. A Comissão Municipal de Turismo de Coimbra, o Governo Civil de Coimbra, a Reitoria da Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal, que deram todo o apoio à realização dos vários Seminários sobre o Fado de Coimbra, iniciados em 1978 e organizados pela Associação dos Antigos Estudantes da Universidade de Coimbra. A Rádio Renascença, através da voz de Armando Marques Ferreira, e o Diário de Coimbra, que desde o primeiro momento estiveram ao nosso lado na divulgação e no apoio à Canção de Coimbra.
Merece também grande destaque o Dr. Joaquim Teixeira Santos, pelo seu envolvimento nestes eventos que conduziram ao ressurgimento das tradições. A ideia dos Seminários surgiu na sequência de uma reunião em Lisboa, em Junho de 1977, onde estiveram presentes, entre outros, Teixeira Santos, Luiz Goes, Fernando Rolim, Machado Soares, Alexandre Herculano, Augusto Camacho, Pinho Brojo, António Portugal, Aurélio dos Reis, Florêncio de Carvalho, Tossan e Condorcet Pais Mamede, e onde foi decidido lutar pela defesa de uma das mais ricas tradições coimbrãs, o "Fado de Coimbra".
O trabalho das Direcções Gerais da Associação Académica de Coimbra, no período 1979-81 e presididas por Maló de Abreu, Luís Teixeira e Luís Pais de Sousa, a dedicação de Jorge Gomes, desde 1972, ao formar sucessivas gerações de guitarristas, a paixão do Quim Reis e o empenho do Mário Afonso que, com muitos estudantes anónimos ergueram a Secção de Fado da A.A.C., os movimentos para a restauração das tradições académicas e a adesão da população de Coimbra, foram outros factores decisivos que contribuíram para o ressurgimento das tradições, em particular, o Fado de Coimbra.
A título pessoal, destaco os meus mestres, Jorge Gomes, Pinho Brojo e António Portugal, que me apoiaram e transmitiram os seus conhecimentos da guitarra portuguesa, e Luiz Goes, pelo apoio, em dois momentos importantes para o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra: a sua participação, com Augusto Camacho, na Serenata Monumental de 1980, um ano nuclear para a Academia no processo de restauração das tradições, e o apoio incondicional ao grupo aquando do lançamento do trabalho discográfico “10 anos...uma Serenata”.
De Coimbra até ao Minho…
Março de 1984. Ingresso na Universidade do Minho iniciando a minha carreira profissional numa Universidade nova onde as festas académicas começavam a afirmar-se, à semelhança das Academias de outras Universidades. Através do António Mingocho, conheci uma tertúlia de "Fado de Coimbra" de que faziam parte, entre outros, o Manuel Borralho e o Luís Cerqueira, guitarristas que viveram Coimbra antes de mim e cujos ensinamentos foram muitos úteis para aperfeiçoar a técnica da guitarra.
É em Braga que reencontro o Nuno Carvalho, no âmbito da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Braga. Após um ano de preparação, participámos, com o Luís Veloso, na gravação de um LP de fados de Coimbra intitulado “De Coimbra...até ao Minho” (1989), onde seleccionámos alguns temas do folclore minhoto, e onde repusémos a versão original da "Balada de Coimbra", cantada, da autoria de José Elyseu e H. M. de Carvalho e imortalizada pela guitarra de Artur Paredes.
O Grupo de Guitarra, Flauta e Poesia…
É no ano de 1984, na altura como monitor de Guitarra de Coimbra na Casa da Cultura de Braga, que reencontro o Abel Gonçalves, instrumentista de flauta do grupo Raízes e que tinha conhecido no Coliseu do Porto, durante um espectáculo comemorativo dos 25 anos de emissões regulares da RTP-Porto, que foi transmitido em directo pela TV. Decidimos explorar novos sons na guitarra e na flauta, trabalho já iniciado por Carlos Paredes e Tiago Velez. Desde 1985 existe o grupo de flauta, guitarra e poesia, com o Luís Veloso na viola e o Aurelino Costa na voz. Este grupo está inserido na ARCUM (Associação Recreativa e Cultural Universitária do Minho); esporadicamente dá recitais de música e poesia. Participou na gravação de temas inéditos nos CD´s “Viagens” (1995), “Coimbra…enCanto e Poesia” (2000) e “Na Voz do Regresso” (2001).
Dos vários temas de autoria do grupo, seleccionámos três temas instrumentais: “Crepúsculo” e “Melodia nº 2” que se reportam ao início do grupo, ainda com o António Mingocho (viola) e o Quim Né (percurssão), e “Tributo a Carlos Paredes”, composição recente contando já com a colaboração de Luís Veloso.
Dos temas cantados, “Guitarra de Coimbra” e “História Encantada”, retirados do primeiro livro do Carlos Carranca, foram musicados por volta de 1982 e foram guardados na gaveta durante duas décadas.
Foram estes dois temas que um dia, numa tarde de Outono de 2001, tive a ousadia de mostrar a Luiz Goes e que despertaram a sua atenção. Esse dia ficará para sempre gravado na minha memória: O Fado, a Vida, Coimbra, o seu encanto e o seu desencanto, foram temas para uma tarde que entrou pela noite, ficando a disponibilidade para participarmos neste projecto, no domínio da música de matriz Coimbrã.
Nesse dia saí da casa de Goes com uma energia enorme para enfrentar este desafio e nessa noite pouco dormi. No dia seguinte, telefonei ao Carlos Carranca dando conta da conversa com Goes. Tinha umas músicas guardadas há muito tempo, algumas delas feitas em 1982-83, e queria, ou melhor, exigia a sua colaboração. Desta vez era ao contrário, a partir das minhas músicas, o Carlos teria que criar a letra! E assim foi, após alguns encontros, uns retiros no Prilhão, Lousã, surgiram os poemas que fomos trabalhando com Luiz Goes em ensaios, ou melhor, em convívios, que tinham lugar em Cascais, em sua casa, duas vezes por mês.
Recordo que a primeira reacção do Carlos ao repto que lhe lancei – de criar as letras para as músicas – foi de alguma surpresa. Perguntou-me se não seria melhor recorrer aos poetas ditos consagrados (os antigos) que passaram por Coimbra. Mereceu resposta pronta: eu quero cantar os poetas do meu tempo!
Igual reacção teve o Mário Afonso (primeiro presidente da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra) quando lhe pedi para captar imagens inéditas de Coimbra que iriam dar corpo a este projecto. Ainda tentou remeter o trabalho para os “grandes” fotógrafos de Coimbra. Também não lhe valeu de nada! É que este projecto é um projecto de afectos que teve início no tempo do ressurgimento das tradições académicas, no tempo em que todos nós estivemos profundamente envolvidos e alguns dos temas aqui incluídos foram produto desse período.
A este projecto, junta-se Luiz Goes, voz eterna por dentro de Coimbra, pessoa nuclear na sua concretização. A sua grandeza, a sua generosidade, a sua disponibilidade desde o primeiro momento, permitiram que o sonho se transformasse em realidade.
No percurso destes últimos vinte anos fica este registo que só foi possível dar a conhecer graças ao Carlos Carranca e à sua paixão por Coimbra e ao entusiasmo do José Santos, do Luís Veloso, do Abel Gonçalves e do Aurelino Costa.
Este é um testemunho muito resumido acerca do meu tempo de Coimbra, e que foca de um modo muito superficial, alguns aspectos de um período que foi vivido apaixonadamente. Assim, voltei a ser estudante na minha Coimbra, salpicando-a aqui e ali de alguns episódios originais. Tendo consciência das minhas próprias limitações e também de que muito ficou por contar, resta-me o desejo de que ao ouvirem este trabalho regressem, mesmo que lá não tenham estado, à Coimbra do meu tempo.
(em nome do Blog "guitarradecoimbra" e dos seus leitores agradecemos ao Doutor João Moura a amabilidade havida na actualização e cedência deste texto para efeitos de edição on line. AMNunes)
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