sexta-feira, julho 14, 2006

CANÇÃO DA NOITE
(FADO DAS TRÊS HORAS)
Música: Reynaldo Augusto Álvares Pereira Leite da Silva Pinto Varella (1867-1940)
Letra: Bráulio Lauro Pereira da Silva Caldas
Incipit: Murmura, rio, murmura
Origem: Caldas de Vizela
Data: 1887





















Murmura, rio, murmura,
É doce o teu murmurar;
Que tristeza, que ternura,
Tu tens no teu soluçar.

Pela calada da noite,
Enquanto não surge a aurora,
Qu’esta minh’alma se afoite,
Suspira, guitarra, chora!

Voga, barco, mansamente,
Pelas águas prateadas,
Leva este canto dolente,
Aos peitos das namoradas!

Cada nota tão sentida,
Que a minha guitarra envia,
É uma canção dolorida,
D’amor e melancolia.

E estas canções eu trago-as
Presas nas asas da brisa,
Para espalhar sobre as águas,
Enquanto o barco desliza!...

Canta-se o 1º dístico, repete-se, canta-se o 2º dístico e repete-se.
Esquema de acompanhamento do registo Varella:
1º Dístico: Ré M, 2ªRé 2ªRé, Ré M;
2º Dístico: 2ªSi, Si m 2ªLá, Lá M; (1ª vez)
2º Dístico: Sol M, Ré M 2ªRé, Ré M; (2ª vez)

Informação complementar:
A notação musical e respectiva letra vêm transcritas no “Cancioneiro de Músicas Populares”, Porto, Typographia Occidental, 1893/1895/1898, de César das Neves (1841-1920) e Gualdino de Campos (1847-1919). É uma serenata e tem por título Canção da Noite.
Esta serenata, em compasso 2/4 e tom de Mi Bemol Maior, é vulgarmente designada por “Fado das Três Horas”, título com que os seus autores a baptizaram por ter sido àquela hora da noite que foi improvisada dentro de um barco, vogando no rio Vizela, numa noite de paródia e serenata nas Termas das Caldas de Vizela, em 1887 (Cf. Pinto de Carvalho, História do Fado, Lisboa, Dom Quixote, 1984, pág. 274).
Composição dolente, fruto dos sensibilidades estudantis e burguesas da Belle Époque, apresenta preocupações literárias, ao gosto do reportório habitualmente cultivado pelos modinheiros e serenateiros de Coimbra. A monotonia dada pela repetição da “silva de cantigas” (5 quadras) podia quebrar-se bisando os dísticos em coro logo após o desempenho do solista, e com a valorização dos separadores (ex: guitarra, violão, rabeca, flauta).
O “Fado das Três Horas” correu Portugal através dos fascículos “12 Cantos Populares”, 2ª Série, Porto, Casa Eduardo da Fonseca. Esta brochura impressa vendia-se a 500 réis nos primeiros anos do século XX e atingiu pelo menos uma 3ª edição antes de 1910. Nesta edição, as partituras vinham harmonizadas para piano, base utilizada pelos regentes das tunas e filarmónicas de província para adaptar reportório urbano em voga. Na década de 1940, o “Fado das Três Horas” ainda era prato forte de muitas filarmónicas, tunas, orquestras ligeiras e rapsódias interpretadas por bandas militares.
Bráulio Caldas, de seu nome completo Bráulio Lauro Pereira da Silva Caldas, então quartanista de Direito, era natural de Caldas de Vizela e foi o autor dos versos. No ano seguinte, o quintanista Bráulio Caldas assinou a letra Hino do Curso do V Ano Jurídico de 1887-1888, música de Augusto Matos, em cuja Récita de Despedida foi cantado. Esta Récita, que abriu com o Hino Académico, seguido do Hino do Curso, foi levada à cena na noite de 12 de no Teatro Circo Saraiva de Carvalho, da Figueira da Foz, e ali repetida na noite seguinte, por o Teatro Académico ter começado a ser demolido. A peça, "uma opereta em 3 actos e 6 quadros" intitulava-se "A Revolta dos Caloiros".
Serenata gravada primeiramente por Reynaldo Varella, com esta letra mas sob o título Fado das 3 Horas (Disque pour Gramophone, G.C. –62921, master 7513, de 78 rpm, disco de uma só face), no ano de 1904, sendo que o cantor também executa o acompanhamento elementar de guitarra em afinação natural. Varella omite na matriz fonográfica a última copla da letra original e protagoniza uma vocalização algo incaracterística. O mesmo cantor protagonizou uma 2ª gravação desta serenata em Lisboa, por volta de 1911, no 78 rpm Homokord 9232.
Esta serenata foi gravada na Primavera de 1928, sob o título Fado das Três Horas, por António Menano, com versos de Abílio Manuel Guerra Junqueiro (1850-1923), extraídos da popular obra “A Morte de D. João” (1874). Adoptando uma vocalização em tudo superior à protagonizada por Reynaldo Varella, António Menano torna a melodia mais apelativa: puxando pelos galões de tenor, canta o tema em Mi Maior com enorme à vontade (um tom acima de Varella), substitui o compasso 2/4 pelo 4/4 e incorpora na repetição dos dísticos ais neumáticos ao “estilo Manassés de Lacerda”.
O“Fado das Três Horas” já era conhecido e cantado em Coimbra muito antes do registo fonográfico de António Menano. Possivelmente foi trazido pelo próprio autor da letra original, Bráulio Caldas. Reynaldo Varella foi um compositor, guitarrista e cantor muito popular nos auditórios conimbricenses, graças à edição das suas obras em partitura impressa e às dezenas de discos que gravou entre 1904 e 1912.
Eis a letra gravada por António Menano:

Passei-te rente ao mirante,
(Ai) E dei de cara contigo,
E tu lançaste ao mendigo
O teu olhar - um diamante.

A lua, pastor bendito,
(Ai) Com seu rebanho de estrelas,
Vai vendo se alguma delas
Se perde pelo infinito.
Esquema do acompanhamento do registo Menano:
1º Dístico: Mi M, 2ªMi 2ªMi, Lá m, Lá7ªdim, Mi M;
2º Dístico: 2ªDó#, Dó# m 2ªSi, Si M; (1ª vez)
2º Dístico: Lá M, Mi M 2ªMi, Mi M; (2ª vez)

A variante conimbricense foi gravada por António Menano na Primavera de 1928, em Lisboa, versão que viria a prevalecer sobre a original: discos ODEON, 136.820 e A136.820 – Og 693. Nos dois discos não figura qualquer indicação quanto a autorias. O acompanhamento de guitarra, em afinação natural, é muito rudimentar, desconhecendo-se o nome do tocador.
Discos provenientes da mesma gravação:
Fonograms vinil: “Album de Fados de Coimbra – António Menano”, Lisboa, EMI-Valentim de Carvalho 2612281, Volume II, ano de 1986, LP 1, Lado 2, Faixa nº 2, com singela indicação de "popular".
Compact disc: CD “António Menano – Fados”, Vol. II, Lisboa, EMI-VC 7243 8 36445 2 0, editado em 1995, Faixa nº 4, com transcrição da letra cantada e correcta identificação das autorias.
A letra da versão Menano, cantada e mesmo escrita, nem sempre está correcta, estropiamento esse devido à aprendizagem de outiva. O erro mais comum costuma ocorrer no 4º verso da 1ª quadra de Guerra Junqueiro, prevalecendo “O teu olhar de amante” sobre o original “O teu olhar – um diamante”.
Gravações de outros cantores:
- CD “Balada das Capas Negras”, Espacial 3200097, ano de 1995, faixa nº 12. Canta José Horácio Miranda, acompanhado por Fernando Monteiro/António Lopes (gg) e Nuno Figueiredo/Luís Santos (vv). Indicação singela de “tradicional”;
- LP “Cantar à Lua”, Edisom 606576, ano de 1990, Lado 1, faixa nº 4. Canta Janita Salomé, acompanhado por António Portugal/António Brojo (gg) e Luís Filipe/Humberto Matias (vv). Na ficha técnica consta erradamente “Popular. António Menano”. Remasterização no CD “Serenata Monumental”, Lisboa, Movieplay Portuguesa, MOV 30.487 A-B, ano de 2003, Cd nº 2, faixa nº 4;
- CD “Quinteto de Coimbra. Guitarra e Canção de Coimbra”, Coimbra, Quinteto de Coimbra/Casa de Fados, Lda., ano de 2001, faixa nº 10, grupo formado por Patrick Mendes/António Ataíde (vozes), Ricardo Jorge Dias (g), Nuno Botelho/Pedro Lopes (vv). Não especifica quem faz a interpretação vocal, estando correctas as autorias.
Esta serenata correu em solfa manuscrita, com o título modificado para “Novo Fado da Beira”, com outra letra:

Nasci nas praias do mar,
Embalaram-me ondas mil;
Foi meu berço o barco leve,
Foi meu manto o céu d’anil.”
(popular)

“Vão as nuvens pelo céu,
Vão as aves pelo ar;
Vai na dança, junto ao meu,
O coração do meu par!”
(autor desconhecido)

“Por te amar perdi Deus,
Por teu amor me perdi,
Agora, vejo-me só…
Sem Deus, sem amor, sem ti!”
(popular)

“Os olhos d’Inês são pretos,
Os de Júlia cor do céu;
Dizer quais são mais formosos
Decerto não posso eu…”
(José da Cunha e Costa Vasconcelos Delgado).

A quadra “Os olhos d’Inês” pertencia a uma modinha coimbrã feita em 1862 pelo compositor José Vasconcelos Delgado, cujo título era “Os Olhos Negros e os Azues. Modinha para canto e Viollão”, autor estudado por Francisco Faria (1980) para sustentar que as modinhas tiveram papel de relevo na génese e consolidação da Canção de Coimbra.
A versão original e integral de 1887 foi apresentada pelo Grupo Folclórico de Coimbra na serenata popular anual de Junho de 2004, ao lado de recolhas como Moreninha (Chamaste-me moreninha), Minha Teresa (Acorda, minha Teresa), Balada da Beira (Lá vai o combóio à ponte), e Fado João de Deus (Quando vejo a minha amada).

Transcrição: Octávio Sérgio (2006)
Textos: José Anjos de Carvalho e António M. Nunes
Agradecimentos: José Moças (Tradisom), Alexandre Bateiras

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