A Minha História de José Afonso
Havia um poema e um enigma disfarçado de canção, nessa voz atormentada e vagamente trémula que me dizia: “A toda a parte chegam os vampiros... “. Eu escutava-o, baixinho e às escondidas, algo ensimesmado pelo acto do meu próprio entendimento, esforçando-me por decorá-lo mas não o compreendia. Palavra!, não o entendia porque não aprendera ainda o segredo das suas palavras, nem isso a que hoje chamam o sentido figurado ou conotativo da linguagem que então se escondia por trás da sua música. Como compreender que o disco tivesse sido proibido (e creio preso ou desterrado o seu cantor, como na altura se dizia), só por dizer que eles os vampiros, pousavam nas tulhas, traziam no ventre despojos antigos e nada os prendia às vidas acabadas? Ou seria simplesmente por aquilo de eles comerem tudo, tudo, tudo...
e não deixarem nada?
Assim começa a minha história pessoal acerca do Zeca. Não é verdade que todos temos uma história pessoal acerca de um homem paradigmático e superior como o Zeca? Podem ser histórias de amor ou de ódio, ou mesmo constataçães da mais plana e turva indiferença, mas nunca de um desconhecimento diferente e distinto da pura e frívola ignorância. Por mim, que comecei por amá-lo antes mesmo de o entender, a história de José Afonso situa-se entre dois extremos opostos, os quais se tocam,de um lado, a minha inocência política, e do outro, a noção do tempo, da idade e da cultura. No extremo da inocência, começa a memória de “Os Vampiros” e da sua proibição; no outro, colhe-me a surpresa de ter sabido ler o oculto, a alegoria dessa “Grândola, Vila Morena “, que afinal era a profecia de um país, a sua esperança ou mesmo a sua identificação. Não tinha idade para decifrar a mensagem, vinda na denúncia encoberta do tal poema que dizia: “Enchem as tulhas, bebem vinho novo/ Dançam a ronda no pinhal do rei”. Muitos anos mais tarde, soube desde o primeiro momento que Grândola, na voz e na ideia do Zeca, não era apenas uma vila morena, muito plana, situada ao sul da cidade com um rio - mas a própria cidade branca e altiva da alma e da honra que muitos de nós conhecíamos...
Houve um tempo em que tínhamos apenas os nosso cantores. Hoje, temos a eternidade deles, que é feita à nossa medida. José Afonso continua fora do tempo e das geraçães porque nunca foi credo nem um mito, menos ainda uma lenda não comportada pelos sentidos da música. Ergueu em torno de si, sem nunca ter tido esse propósito, uma escola para a educação e para o sentimento do mundo. Da sua vida, é injusto dizer que passou. Seria aliás ofensivo recordá-la apenas como um caso de fé. A única coisa que dela sei é que pode hoje estar aqui e amanhã ter-se ido ao vento, porquanto nunca teve um destino. Por andar ao vento, lhe chamaram andarilho. Por ainda agora ela, a sua música, se fazer ouvir, trovador.
João de MeIo, Lisboa, 1 de Junho de 1992
Do site da AJA.
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