Duas historietas para férias
Por António M. Nunes
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Os Três Estudantes e o Juiz
Era uma vez três estudantes que iam para as casas das suas famílias passar férias. No caminho encontraram um lobo morto. Pararam, e mirando a carcassa disse um deles:
-Este lobo merece um necrológio a preceito!
-Ó se merece! Aquele que fizer o verso mais bem feito a este lobo finado não pagará o jantar na estalagem - disse outro.
-Mãos à obra, acrecentou o terceiro, e logo declamou:
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Aquele lobo
Por onde andou
Quanto comeu
Nada pagou!
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Saiu-se o condiscípulo prontamente:
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Este lobo
Quando era vivo
Tudo comeu cru
E nada cozido!
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Acrescentou o terceiro estudante (que fora o autor da graçola):
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Quando este lobo
Dormia a sesta
Não dormiu nunca
Uma como esta!
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E remataram os três em coro:
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Eis aqui um lobo
Pelo que manifesta
Das suas jornadas
A pior foi esta!
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Depois de improvisarem as coplas, os três estudantes enredaram-se em questiúnculas, pois cada um pretendia que os seus versos fossem considerados os melhores. Afastada qualquer possibilidade de acordo, os estudantes foram procurar o Juiz da terra e expuseram-lhe o pleito.
-O Meretíssimo há-de dizer-nos qual dos versos é melhor, para sabermos qual dos três comerá o jantar de graça.
Ouvidas as coplas, respondeu o Juiz:
-Estão todas as quadras bem feitas, com pilhas de graça.
E recitou o esperto Juiz:
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Pelo que os senhores dizem
E eu vejo nos autos
Os três paguem o jantar
E comeremos quatro.
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Os estudantes fingiram aceitar a sentença. Mas sentindo-se ludibriados pelo artilheiro Juiz, combinaram entre si enganá-lo. Chegados à estalagem encomendaram um jantar para quatro e em segredo pediram à cozinheira que cozesse um paio e o pusesse na mesa cortado em três pedaços iguais.
Sentados os três estudantes e o Juiz à volta da mesa, um dos estudantes espetou o garfo num dos nacos do paio e declamou:
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Em nome do Padre
Este me cabe!
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O segundo estudante fez o mesmo, dizendo:
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Em nome do Filho
Este seja comigo!
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O Juiz vendo no prato só um naco de paio, agarrou-se a ele gritando:
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Em nome do Espírito Santo
Antes que fique em branco!
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Com esta rápida "acção executiva" o esperto Juiz lembrou-se dos tempos em que também fora estudante.
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Este conto popular foi recolhido da tradição oral por Francisco Adolfo Coelho, "Contos Populares Portugueses" (1ª edição de 1879), 6ª edição, Lisboa, 2001, págs. 263-264 ("Os três estudantes e o soldado"). A versão Afolfo Coelho foi recolhida junto de uma pessoa oriunda de Almeida, então a viver em Lisboa. Contracena com os três estudantes um magala espertalhão. A versão que apresentamos resultou de um cruzamento com outra mais completa e verosímil, recolhida por Teófilo Braga, "Contos Tradicionais do Povo Português", Volume I, 6ª edição, Lisboa, Dom Quixote, 2002, págs. 340-341 ("A graça estudantesca"), cuja primeira edição ocorreu em 1883.
Esta saborosa historieta, cuja linguagem foi alvo de actualização, deve remontar aos séculos XVII/XVIII.
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Os Estudantes e o Burro do Azeiteiro
Dois estudantes encontraram numa estrada um humilde azeiteiro que guiava um burro carregado de bilhas de azeite.
Os estudantes, que estavam sem dinheiro no bolso, viram naquele inesperado encontro uma maneira fácil de gozarem o azeiteiro e de lhe furtarem o burro e o azeite para revenda.
Enquanto o pobre homem seguia sossegadamente seu caminho com o pachorrento burro pela arreata, um dos estudantes foi-se ao burro, tirou-lhe a cabeçada e enfiou-a na sua própria cabeça e pescoço, enquanto o companheiro fugia com o jumento sorrateiramente.
O estudante que tomara o lugar do jumento estacou a marcha, fazendo com que o azeiteiro olhasse para trás. Qual não foi o espanto do burriqueiro quando viu um homem no lugar do seu jumento.
Vendo-o confuso, o estudante encabeçado disse-lhe com voz doce e terna:
-Ah, senhor, quanto lhe agradeço ter-me dado uma cacetada na moleirinha! Quebrou-me o encanto que durante tantos anos me fez passar por burro!...
O azeiteiro, crente no logro do burro enfeitiçado, tirou o chapéu e cumprimentando o estudante disse-lhe muito humildemente:
-Perdi no senhor, como burro, o meu ganha-pão; mas, paciência! Como homem que agora é, peço-lhe muitos perdões pelas vergastadas no lombo, mas, que quer?! O senhor fazia-me às vezes desesperar com as suas birras, e eu não era senhor de mim!
-Está perdoado, bom homem!, respondeu o estudante. O que lhe peço agora é que me deixe em paz!
Vendo-se só, sem jumento nem carregamento, o azeiteiro lamentou-se da sua desgraça e tratou de pedir dinheiro emprestado a um compadre para ir no dia seguinte à feira comprar outro burro.
Chegado à feira, o azeiteiro viu à venda o animal que lhe fora roubado na véspera, ao cuidado do outro estudante cuja cara não chegara a ver. O ingénuo azeiteiro não percebeu logo que era o seu animal e crente que o Burro-Homem se tinha transformado novamente em jumento, chegou-se ao pé do estudante e pediu-lhe licença para dizer um segredo ao burro. O estudante aceitou e o azeiteiro, chegando a boca à orelha do animal, gritou com toda a força:
-Olhe, senhor burro, quem não o conhecer que o compre!
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Divertida historieta recolhida da tradição oral por Francisco Adolfo Coelho, "Contos Populares Portugues", 6ª edição, Lisboa, Dom Quixote, 2001, págs. 271-272 (1ª edição de 1879), cujo título é "O burro do azeiteiro". Relato fornecido por pessoa oriunda de Almeida, então a residir em Lisboa. Admitimos que existisse uma versão coimbrã mais completa. O relato original respeitará aos séculos XVII/XVIII.
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