terça-feira, novembro 21, 2006

Cidade Universitária de Coimbra é símbolo arquitectónico do Estado Novo
Alta era parte fundamental da cidade
Por Paula Alexandra Almeida

A construção da Cidade Universitária de Coimbra, levada a cabo entre 1941 e 1975, supôs uma intervenção urbana profunda e afirmou-se claramente como uma obra de regime, constituindo, a par dos tribunais, uma das melhores expressões da arquitectura de poder do Estado Novo. Isto mesmo afirma Nuno Rosmaninho no seu mais recente livro, “O poder da Arte”, precisamente quando se comemoram os 50 anos dos “novos” edifícios.
A Cidade Universitária de Coimbra é a intervenção urbanística mais significativa do regime salazarista. Quem o afirma é o historiador Nuno Rosmaninho, opinião na qual é secundado pelo arquitecto Nuno Portas. Apesar de o caso das demolições da Alta de Coimbra ter algum paralelo com intervenções feitas, por exemplo, em Vila Viçosa, a sua dimensão é tão grande que não pode ser comparada.“Não tem paralelo pela dimensão do trabalho feito, pelas dimensões da obra e pela arquitectura que daqui resultou. Não se tratou apenas de demolir. Se fizermos as contas à população de Coimbra de 1940 e virmos a quantidade de pessoas que foram realojadas, estamos a falar de cerca de 8 ou 9% da população. Isso é muito”, afirma Nuno Rosmaninho. “Hoje olhamos para a Alta e temos uma ideia que talvez não seja a exacta. Se virmos fotografias dos anos 40 percebemos que a Alta era muito mais importante do que é hoje. E fazer aquela demolição ali era implicar com uma parte muito mais importante da cidade do que nós hoje imaginamos”. Mas a obra é muito importante também pelo tempo que demorou – praticamente todo o Estado Novo, já que o último edifício foi aberto em 1975. As próprias alterações urbanas foram substanciais, incluindo nalguns casos desaterros de cerca de cinco metros e totalizando cerca de duzentos prédios demolidos. “Duzentos prédios é um número muito significativo. Quando percebemos o que eram aquelas ruas antes e o que é agora, a diferença é extraordinária”. Nuno Rosmaninho acredita que, “na altura das obras, quando a população começou a ficar um pouco preocupada, ninguém podia imaginar a verdadeira dimensão. Era impossível. Foi de tal modo brutal que era impossível ter essa percepção”.

Arquitectura do poder
A própria arquitectura que resultou da construção da Cidade Universitária é muito específica e pode considerar-se uma arquitectura de poder. E no contexto do Estado Novo, além dos maiores tribunais, é precisamente a Cidade Universitária de Coimbra que melhor representa esse tipo de arquitectura, permitindo mesmo estabelecer um paralelo com obras de arte de outros regimes autoritários e totalitários. Mas será que houve mesmo uma arquitectura do Estado Novo? A discussão mantém-se entre os estudiosos da época, e Nuno Rosmaninho salienta dois modelos que tendem comummente a serem apresentados como a arquitectura do Estado Novo: “por um lado esta arquitectura (tribunais e Cidade Universitária de Coimbra) e por outro a famosa casa portuguesa. Na realidade não temos que escolher nem uma nem outra. O Estado Novo apresenta, como é comum noutros regimes, várias linguagens arquitectónicas que como que exprimem diferentes ideologias que são inerentes ao regime”. Assim, continua, “a casa portuguesa exprime o ideário ruralista, bucólico, utilizado em edifícios como estações dos CTT, nalgumas Caixas Geral de Depósitos... mas nas obras em que o regime se apresenta no seu poder, onde a sua imagem está em causa, então o que pondera é este classicismo monumental totalitário”. Tal como aconteceu na Alemanha nazi ou na União Soviética, também em Portugal não houve uma única linguagem do regime, mas tendencialmente quando aquilo que está em causa é o poder, assumiu-se o classicismo monumental.

População cedeu silenciosamente
No seu trabalho agora publicado, Nuno Rosmaninho desmistifica um pouco a ideia comum de que a Cidade Universitária era uma obra de Salazar assente nas figuras mais importantes de Coimbra, acima de tudo na de Bissaya-Barreto, e que, portanto, a população não podia protestar. As suas conclusões mostram que a realidade é muito mais complexa e rica do que estas suposições. “Aquilo que se verificou, se virmos os jornais de Coimbra da época – e eu li-os todos, referentes ao período dos quarenta anos das obras –, é que nos anos 40, de uma forma geral, toda a cidade apoiava as obras”, revela. Para já porque a maioria das pessoas tinha alguma dificuldade em abarcar a dimensão do plano. Depois porque nos anos 40 não existiam mecanismos para defesa do património e a própria imprensa “alinhava” com o Estado. “Por paradoxal que pareça, as pessoas mais «progressistas» apoiavam as obras. Aliás, quando o Diário de Coimbra está sob o domínio do PCP, há um editorial em dois números seguidos que é um apoio incondicional às obras”. Quem é que, então, estava contra? Para Rosmaninho é interessante verificar que a pessoa que mais protestou publicamente contra as obras foi Bissaya-Barreto. “Indiscutivelmente”, assegura. “De todas as maneiras. Campanhas na imprensa, no Diário de Coimbra, e subscrevendo abaixo-assinados significativos”. Até aos anos 50 não há praticamente ninguém a protestar. As coisas mudam no início dos anos 60 quando há uma exposição fotográfica da Alta que é uma espécie de rebate de consciência. Mas, recorda o historiador, “no final dos anos 40, inícios de 50, todos os jornais de Coimbra anunciam tranquilamente que vão ser demolidos cinco arcos do Aqueduto para desafrontar o Colégio de São Bento. Tranquilamente”.

Expropriações indignas
O protesto mais forte surgiu por parte dos expropriados. “Esses sim, fizeram vários abaixo-assinados de uma dureza extraordinária”, afirma Nuno Rosmaninho. “Num deles, o advogado que faz o texto, que penso que é subscrito em primeiro lugar por Bissaya-Barreto, por palavras do Direito, acusa o Estado de estar a roubar os expropriados. Critica o Estado por “indevido locupletamento repelido pela moral e pelo direito”. Isto é chamar ladrão ao Estado”. Não aconteceu nada a estas pessoas, embora tenha havido algumas movimentações, o que mostra que as pessoas podiam realmente protestar. “Se não protestaram é porque acharam que não deviam”. Para o historiador, “as expropriações foram, aliás, uma das maiores indignidades do Estado Novo neste caso. As pessoas foram expropriadas por valores inadmissíveis numa atitude muito pouco digna por parte dos responsáveis. Os valores pagos ficaram, muitas vezes, abaixo do valor da matriz”. Alguns protestos surgiram também de antigos estudantes que não se reviam já na ‘sua’ universidade. Nuno Rosmaninho recorda que “a ideia da defesa de um conjunto patrimonial enquanto um todo é algo que apenas foi defendido com mais intensidade depois da Guerra Mundial. Por isso, a única forma de defender o património da Alta era mesmo o critério simbólico”.

Arquitectos dos edifícios clássicos monumentais foram os mesmos da AAC
A influência do poder
Que mecanismos é que, afinal, o Estado pode usar para influenciar a arte e, neste caso, a arte arquitectónica? Para Nuno Rosmaninho esta é, sem dúvida, a questão mais difícil de perceber. “Porque a primeira tendência é para se ser mecanicista”, afirma. “Aquela arquitectura existe porque o poder a impôs”. Mas o poder não desenhava os edifícios... Há, por isso, várias circunstâncias. Por exemplo, recorda Nuno Rosmaninho, “temos a noção que Hitler quase desenhava. Porque ele gostava de arquitectura. Alguns dos edifícios desenvolvidos por Albert Spier resultaram de esboços de Hitler. Portanto aí havia influência directa”. Mas não era esse o caso de Salazar. “Há outros casos de pessoas que trabalharam no regime hitleriano como o escultor Arno Breker que dizia ‘mas a mim nunca me influenciaram. Eu fiz sempre o que quis’. E no entanto, é o escultor mais exemplar de Hitler”, refere o historiador. O Estado condiciona a mensagem artística de vários modos. Em primeiro lugar, e no caso hitleriano, considerando que a arte moderna é um crime contra o Estado e proibindo a acção dos arquitectos modernos. “E passa-se a mesma coisa no caso soviético, em que a arte moderna era burguesa e, portanto, também contra o regime”. Mas nos casos totalitários a questão era menos clara. No caso italiano há mesmo um momento em que parece que a arte moderna pode ser a arte do regime. No caso português a questão é mais complicada. “Depende muito do ministro que tutela as obras”, revela Nuno Rosmaninho. Duarte Pacheco, recorde-se, gostava de riscar os desenhos dos arquitectos e, portanto, determinar de alguma forma o projecto. “Mas a verdadeira escolha faz-se seleccionando os arquitectos. Essa é a questão fundamental”, assegura. E, no caso de Coimbra, “condicionando esses arquitectos por um arquitecto geral”. Houve vários arquitectos, mas o arquitecto chefe era Cottinelli Telmo, e depois Cristino da Silva. “Os outros eram quase desenhadores, quase ajudantes, o que levou um dos arquitectos convidados a rejeitar a proposta. E quem estudou os tribunais chegou à mesma conclusão”. Mas há um outro aspecto importante que Nuno Rosmaninho salienta. É que quando um escultor, um arquitecto, aceitava trabalhar para o Estado, já sabia ao que ia e, portanto, antecipava as exigências, procurando responder a elas.

“Havia à partida uma predisposição”.
No entanto “não podemos pensar que essa imposição era absoluta e o caso de Coimbra é exemplar”. Se na Cidade Universitária da Alta temos aqueles edifícios,os mesmos arquitectos, Cristino da Silva, que tutelava, e Alberto José Pessoa, que fez a Faculdade de Letras, foram os que riscaram a Associação Académica “que é uma óptima obra do modernismo”. Aqui, acrescenta Nuno Rosmaninho, entra outro aspecto que é “a perfeita noção, que nesta altura se tinha de que o edifício se devia ajustar à sua função, até social e simbólica. Na Alta tinha que ser aquilo, fora da Alta até podia ser outra coisa”. Porque fora da Alta já não era a tal arquitectura de poder. Mas de todos os edifícios construídos talvez o mais simbólico seja a Faculdade de Letras, segundo o historiador. “É o mais simbólico porque, tirando o Arquivo, foi o primeiro a ser feito de raiz e, portanto, tem aquelas características mais próximas do classicismo que os arquitectos viram em viagens a Roma, por exemplo. Está mais próximo desse modelo”. Por outro lado, conclui, “está integrado na Praça da Porta Férrea que é também, em termos de arquitectura, o lugar mais emblemático”. E o edifício da Faculdade de Letras acaba por ser de todos o mais emblemático “até pelas esculturas que tem em frente”.

Simbolismo da localização da Universidade pesou na demolição
Destruição do Observatório é caso único
Uma das questões que naturalmente surgem no âmbito da investigação de Nuno Rosmaninho é o porquê de, em vez de demolir, não se ter aproveitado para mudar a Universidade de local. “Ninguém pensou nisso. Essa nem sequer foi uma oportunidade real porque nunca foi considerada”, assegura o historiador. “Essa é uma coisa que ninguém aceitaria na altura. O projecto começou como um projecto de remodelação. E eu não vi nunca essa questão colocada”, afirma Nuno Rosmaninho. Durante a investigação, apenas uma vez recolheu uma informação de um professor que esteve presente numa das visitas de Duarte Pacheco em que ele terá pensado transferir a Universidade para o local onde está hoje o Estádio. Mas em termos de documentos, não há nada que faça pensar nisso. Nuno Rosmaninho é peremptório. “Desde o primeiro momento nunca se pensou nisso. Ninguém, nenhum professor iria aceitar a ideia, nenhum aluno, julgo eu. A força simbólica daquele lugar não podia ser ultrapassada. Isso levava-nos a outros aspectos que se prendem com o imaginário de Coimbra, mas a verdade é que isso não passava pela cabeça de ninguém”. Aliás, o historiador recorda que quando há o arranque político do projecto, Salazar faz um prefácio que é todo ele uma alusão ao imaginário bucólico de Coimbra. “Este é o único caso que eu conheço de um edifício ter sido demolido para libertar as vistas – refiro-me ao Observatório Astronómico que estava no pátio”. Efectivamente, a única razão para a demolição foi o facto de o edifício impedir que as pessoas vissem as encostas de Coimbra e o rio Mondego. “Isto é curioso e paradoxal”, constata ainda Nuno Rosmaninho. “Porque, de um lado há uma insensibilidade total para com aquele património que ali estava, e depois valoriza-se o património que hoje se designa por ambiental, mas que é apenas simbólico naquela altura”.
[artigo publicado em 14 de Novembro de 2006 no "Campeão das Províncias" on line, extraído do endereço «http://www.campeaoprovincias.com/». AMNunes]

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