segunda-feira, dezembro 04, 2006

VITORINO NEMÉSIO
NO DIÁRIO DE BELISÁRIO PIMENTA
Páginas inéditas


Belisário Pimenta é, hoje, um desconhecido. Natural de Coimbra, onde nasceu em 1879, seguiu a carreira militar, ingressando na Arma de Infantaria em 1902, depois de cumprir o curso da Escola do Exército. Passou à reserva no posto de coronel em 1939. Faleceu em 1969.
A sua longa vida ficou marcada pela formação anarquista, adquirida na tipografia da família, localizada na Praça Velha, e por um inamovível anticlericalismo, que nem o Estado Novo refreou. Aos oitenta anos, considerou determinantes, ao longo da sua vida, a aprendizagem libertária no seio do operariado tipográfico, a «preocupação patriótica» e «a repulsa pelo ultramontanismo fosse ele religioso, civil ou militar», embora a Companhia de Jesus constituísse «o alvo principal de todos os ataques»[1]. Militou nas hostes republicanas, no partido de António José de Almeida, e foi comissário da polícia de Coimbra em 1910 e 1911. Nunca aderiu à situação política criada pelo 28 de Maio de 1926 e a essa circunstância atribuiu Belisário Pimenta o facto de não ter alcançado o posto de general.
Dedicou-se aos estudos de história militar, área em que a sua erudição e rigor lhe granjearam admiração, e de história local, publicando vários artigos sobre Miranda do Corvo. Foi um observador atento da vida política e social. E é esta última qualidade, plasmada num diário de mais de sete mil páginas, mantido durante sessenta anos, que o torna uma figura digna de atenção por quem se dedica ao estudo do século XX. Pelos dezanove volumes, cuidadosamente passados a limpo e providos de índices onomástico e analítico, passam inúmeras figuras da nossa história recente. Esperamos encetar a sua publicação, centrando-nos, para já, nos dois volumes iniciais, que não são de diário mas de memórias.
O espólio de Belisário Pimenta, constituído pelo diário e por epistolografia e documentos diversos (relacionados com o centenário de António Augusto Gonçalves, palestras, estudos, etc.) foi doado à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, tendo sido aberto à consulta há cerca de quatro anos.[2] Entre as inúmeras figuras de relevo nacional, sujeitas ao seu olhar atento, conta-se Vitorino Nemésio, que o coronel conheceu, muito jovem, em meados dos anos vinte, e cuja carreira seguiu, nem sempre com agrado. Os contactos pessoais resultaram das relações que Belisário Pimenta mantinha com o sogro do escritor, Francisco Gomes.
Nemésio instalou-se em Coimbra, em Outubro de 1921, para concluir os estudos secundários, aqui vivendo regularmente na década seguinte. No Verão de 1922, fez os exames do 7.º ano no Liceu José Falcão, tornando-se, nessa época, revisor da Imprensa da Universidade. Em Abril de 1923, foi admitido na loja maçónica A Revolta. No meio de grande actividade literária, frequentou os cursos de Direito e de História e Geografia, antes de enveredar, em Outubro de 1926, pelo de Filologia Românica. Entretanto, a 12 de Fevereiro deste último ano, casara com Gabriela Monjardino de Azevedo Gomes. Em Dezembro de 1927, foi eleito presidente do Centro Republicano Académico e no mês seguinte assumiu sozinho a direcção do periódico Gente Nova, órgão do Centro. Como líder dos estudantes democratas, entrou em polémica com o jornal Vanguarda e com Cabral Moncada, professor de Direito e monárquico. No paroxismo da sua actividade académica, foi, em final de 1928, candidato derrotado em eleições consideradas ilegais ao cargo de representante dos estudantes no Senado universitário. Por se considerar mal classificado em Coimbra, decidiu transferir-se para a Faculdade de Letras de Lisboa em 1929, aqui concluindo o curso dois anos depois.[3]
Vitorino Nemésio aparece pela primeira vez no espólio de Belisário Pimenta em 3 de Outubro de 1926, subscrevendo, com a esposa e os sogros, um postal de parabéns por um facto que desconhecemos, uma vez que o volume do diário correspondente aos anos de 1921 a 1928 não se encontra depositado na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Mas só três anos decorridos os contactos se estreitam, por causa das comemorações do primeiro centenário da vitória liberal na Ilha Terceira, em 11 de Agosto de 1829. Disso nos dá conta uma carta de Vitorino Nemésio de 1 de Agosto de 1929 e, sobretudo, as páginas do diário de Belisário Pimenta escritas em 10 de Setembro desse ano.
Vitorino Nemésio «regressa» ao diário em final de 1931, quando se preparava para estudar Alexandre Herculano, no âmbito da dissertação de doutoramento. Belisário Pimenta encontrava-se desagradado por ter tido conhecimento de que o escritor e a esposa debicavam, segundo as suas palavras, «na minha pobre pessoa fazendo, até, um pouco de troça do que eles chamam a minha cultura e a minha erudição». E resolveu responder ao pedido de elementos sobre Herculano, facultando uma soma de verbetes que terá deixado Nemésio surpreendido. Desta fase das relações dão conta várias passagens do diário e uma carta de Vitorino Nemésio de Abril de 1933.
As páginas mais significativas para o conhecimento da biografia do autor de Mau Tempo no Canal foram escritas por Belisário Pimenta em 5 de Junho de 1937, quando a vida de Vitorino Nemésio se encontrava num momento de indefinição, devido às dificuldades sentidas em ingressar na carreira universitária. E é desta circunstância que nasce a longa conversa entre os dois, na casa da Quinta das Albergarias, no Largo da Cruz de Celas. Belisário Pimenta fora ali falar com o seu velho amigo e é surpreendido por uma extensa confissão de Vitorino Nemésio, desiludido com os entraves que se lhe estavam antepondo. Belisário Pimenta, com o seu espírito metódico, registou minuciosamente o diálogo, à semelhança, aliás do que fizera em 19 de Agosto de 1937, ao visitar Afonso Lopes Vieira em S. Pedro de Muel.
Um dos traços mais distintivos do monumental diário de Belisário Pimenta é a tendência para realizar avaliações globais das personalidades com que se cruza. O outro, daqui decorrente, é a atitude, não diremos desconfiada, mas cautelosa, estabelecida nos primeiros contactos. Um terceiro é a rara admiração que vota a algumas pessoas, com destaque para a figura do artista e do republicano António Augusto Gonçalves. Assim, não surpreende a reserva com que acolhe a inesperada confissão de Vitorino Nemésio.
Belisário Pimenta tinha razões para nutrir simpatia pelo jovem Vitorino Nemésio. Como republicano convicto, não lhe era indiferente a actividade política do futuro estudioso de A Mocidade de Herculano. No entanto, vendo em algumas atitudes de Vitorino Nemésio oportunismo político, praticado com a intenção de penetrar na carreira universitária, Belisário Pimenta acaba por manifestar uma desconfiança crescente, traduzida em referências diarísticas mais ou menos duras ao escritor, apesar das relações epistolares amistosas.
A «conversão ao catolicismo», com estada num convento belga, e a multiplicação de contactos políticos com o regime, observadas em 1949, causam-lhe profunda decepção e levam-no, no meio de cartas protocolares, a desprezar a conduta e o carácter de Vitorino Nemésio. Que o escritor chegue, por fim, nos anos cinquenta, «a exaltar Santo Inácio de Loyola é», como escreve Belisário Pimenta, «um destes casos que se não comenta», vindo de alguém que conhecera «estudante em Coimbra há bons trinta anos, revolucionário ou coisa parecida». Não obstante, na carta de Abril de 1933, Nemésio escrevera: «Sou cristão, e talvez seja católico-apostólico, mas cada vez mais entranhada e figadalmente anti-romano.»
Aparentemente, foi por volta deste ano que Belisário Pimenta deixou de ler Vitorino Nemésio. Homem sumamente organizado e minucioso, anotou todas as leituras realizadas durante mais de sessenta anos, entre 1898 e c. 1959: 3462 livros, lidos em português, castelhano e francês. Através dessa extensa lista, ficamos a saber que leu Camilo em 1925, Varanda de Pilatos (1926) em 1927, Paço do Milhafre (1924) e A Terceira Durante a Regência em 1929, Sob os Signos de Agora em 1932, no ano da sua publicação, A Mocidade de Herculano em 1934, igualmente assim que foi publicado, Isabel de Aragão em 1936, ano também da sua edição, A Casa Fechada (1937) em 1941, Gil Vicente, Floresta de Enganos (1941) em 1942, Ondas Médias em 1945, ano do seu aparecimento, Exilados em 1946 e Mau Tempo no Canal em 1948, quatro anos depois de ter sido editado. Assim se vê que Belisário Pimenta leu assiduamente os estudos biográficos e críticos, toda a ficção publicada até Mau Tempo no Canal e nenhuma poesia. Por aqui se observa, também, que entre 1948 e 1959, data em que a lista foi elaborada, não leu qualquer outro livro de Vitorino Nemésio. Dos últimos dez anos de vida, ainda não encontrámos notícia.
Em Novembro de 1954, foi ouvir uma conferência de Vitorino Nemésio sobre Garrett no Instituto Inglês e gostou da conversa variada que o escritor teceu, embora «sem dar novidades ou apresentar aspectos novos». Mas, não pôde deixar de registar a sua «péssima reputação como professor», que teria já dado origem a reclamações, resolvidas com discrição.
Nos últimos anos do diário, a «aventura» como toureiro numa corrida em Angra do Heroísmo, em Setembro de 1956, tratada com ironia num suelto do jornal A República, levou Belisário Pimenta a exarar epigramaticamente: «O Nemésio está colhendo os frutos da sua falta de carácter.» E com este assunto, conversado em Mafra com o professor Rebelo Gonçalves e o conselheiro Nunes da Rica, terminam as referências a Vitorino Nemésio.
É notório, neste conjunto de registos, o respeito e, mesmo, a admiração pelas qualidades intelectuais de Nemésio e o desgosto, volvido quase desprezo, pelo transcurso político e ideológico do escritor, desde a juventude maçónica e republicana até à maturidade católica e «salazarista».
A menos de dois anos de falecer, tendo já 88 anos de idade, Belisário Pimenta recebeu, em Janeiro de 1968, os votos de Ano Bom de Vitorino Nemésio e da filha do seu saudoso amigo Francisco Gomes. O que pensou do bilhete-postal, não sabemos. Há oito anos que abandonara a escrita do diário.
É este conjunto significativo de cartas e de referências diarísticas que agora publicamos. Na transcrição, procedemos à actualização da ortografia, mas respeitámos integralmente a pontuação, o uso de maiúsculas e minúsculas, as variações na utilização dos sublinhados (que convertemos em itálicos) e das aspas, e as opções de hifenação dos autores. As interpolações e o desdobramento das abreviaturas encontram-se entre parênteses rectos.


DOCUMENTOS

1
Postal de Vitorino Nemésio (3-10-1926)

Coimbra 3-10-926
Um grande abraço do seu amigo
--Francisco Gomes
--Georgina Gomes
Afectuosos parabéns.
--Vitorino Nemésio.
--Gabriela Nemésio.

2
Carta de Vitorino Nemésio (1-8-1929)
Cruz de Celas, 1.8.29
Meu querido Am.º

Perdoe o papel, primeiro q[ue] encontro à mão.
Também ontem recebi ultimatum… Aí vão os livros. Dentro dos Quadros Açóricos vai a fotogr[afi]a do monumento, q[ue] me é pedida com instância. Quanto à estampa do Duque, mandá-la hei entre papelões, à parte, p[ar]a não desacomodar o seu embrulho. Irá o exemplar p[ar]a o Presidente da República, visto q[ue] aquilo não é meu, mas da Câmara. Também…
E m[ui]to obrigado.
Seu ad.dor e am.º
Vitorino Nemésio.

3
Diário de Belisário Pimenta (10-9-1929)

Setembro: 10.
Em fins de Dezembro do ano passado vieram a m[inha]a casa, uma noite, o coronel Franc[isc]o Gomes e o genro, o Vitorino Nemésio.
Conversa para aqui, conversa para acolá, o Nemésio veio a dizer que da Ilha Terceira lhe escreveram lembrando a conveniência de celebrar o 1.º Centenário da acção de 11 de Agosto de 1829 e insinuando-lhe que se poderia fazer um livro em que resumidam[en]te se falasse da história do concelho da Praia e em especial da acção militar que ali se deu.
O Nemésio, depois de me expor o seu plano da publicação de um Memorial, aludiu à dificuld[dad]e da monografia militar e ao facto de não ver quem fosse capaz de a fazer com êxito; de subtileza em subtileza, veio a descobrir o jogo que, com franqueza, eu já pressentira: – o de ser eu o autor almejado para a monografia da acção memorável.
Fez porém esses «approches» com tal habilidade e tal finura que eu estava quase encantado de o ouvir…
Se bem que me agradasse a incumbência e, até certo ponto, me lisonjeasse o convite por vir de quem, segundo julgo, me costuma desdenhar e possivelmente diminuir, cortei cerce e disse que não.
À minha recusa, vi que ficou contrariado; fez um gesto de desolação e disse vagamente:
– Então terei eu de a fazer… Vai ficar uma banalidade… Paciência.
Eu então expliquei: via adiante de mim pouco tempo, uns 4 ou 5 meses; conhecia ligeiramente os acontecimentos; necessitava de uma investigação minuciosa e isso levaria muito tempo; eu não trabalho depressa nestes assuntos; só dispunha das noites e dos domingos; – o encargo era, pois, de responsabilid[dad]e e eu não queria sujeitar o meu nome a um desaire (o que seria pouco) e a comemoração a um desastre (o que era tudo).
O Nemésio, com o seu ar acanhado, parecia resignar-se; olhava p[ar]a o chão e p[ar]a os lados sem destruir os meus argumentos ou as m[inh]as desculpas. O coronel Francisco Gomes, porém, mais positivo e mais Portugal-Velho, calado até aí, ouvindo apenas os dois, nesta altura tomou a palavra, quase bruscamente, e com a franqueza que lhe é peculiar diz-me:
– Ora adeus!... Tudo isso tem remédio. O Pimenta pode muito bem fazer a memória. É querer!
Achei graça ao tom de sinceridade e boa amizade com que o coronel cortou a discussão. Eu quis então explicar melhor as m[inh]as dúvidas, mas ele atalhou logo, ao fazer menção de se levantar:
– Você faz isso com uma perna às costas!
E voltando-se para o genro:
– Deixa-o falar. Ele vai fazer o capítulo que tu queres… O Pimenta faz isso num instante.
Rimo-nos todos. Eu, de momento, não encontrei mais objecções. Tive de transigir porque compreendi então que coronel acompanhara o genro para o apoiar em caso de recusa.
Para dar, porém, tempo, disse-lhes:
– Desejo provar que não é por não querer fazer a memória que me estou a recusar; vou ver o que tenho aí sobre o acontecimento, o que há na biblioteca da Universid[ad]e e na da Câmara; escrevo para o Arquivo Militar para saber o que lá há – e depois direi de minha justiça.
O coronel ficou radiante. Apertou-me a mão com as duas dele e disse-me:
– Pois é claro, homem! Você vai fazer isso num instante!
O Nemésio teve uma expressão de alívio e prometeu fotografias da baía da Vila da Praia, dos fortes da vila, etc. para eu fazer alguma ideia do cenário da acção; prometeu também deixar-me em casa com autorização do director da Biblioteca universitária, todos os livros que lá houvesse sobre o assunto; e tendo a delicadeza de me não insinuar qualquer espécie de plano, agradeceu muito – e saiu com o sogro visivelm[ent]e satisfeito.
Fiquei, pois, investido no cargo de cronista da acção da Vila da Praia da Terceira em 11 de Agosto de 1829 – e devo confessar com certa satisfação.
Comecei, pois, por percorrer os meus verbetes e trazer p[ar]a cima da mesa de trabalho toda a livraria e notas que encontrei; daí a dias o Nemésio trouxe-me os livros da Universid[ad]e onde li o que se passou nesse dia notável; e quando recebi resposta do Ferreira Lima em que me diz haver coisas inéditas no Arquivo acerca da acção[,] especialmente o diário de bordo da esquadra miguelista e o registo da correspond[ênci]a do almirante – então mergulhei de cabeça e corri a dizer ao Nemésio:
– Aceito a incumbência. Vou trabalhar na memória. Pode contar com ela até Abril.[4]
E nisto entrou este ano de 1929 que para mim começou bem mas está correndo o pior possível.
Aí por Janeiro vieram fotografias da Terceira e em especial da V[il]a da Praia; com elas e com cartas topográficas que encontrei em livro, comecei a fazer ideia do terreno em que se passou a acção. E depois de ler a documentação arranjada, lancei-me ao trabalho com certa vontade de fazer alguma coisa com jeito.
De vez em quando, o Nemésio aparecia por m[inh]a casa e eu tinha a impressão de que vinha cheirar, isto é, vinha ver se podia perceber como ia a obra.
É claro que falávamos no assunto mas eu nunca lhe mostrei o que estava feito: não admiti a hipótese duma fiscalização. E com o andar do tempo eu divisava nele certa inquietação pelo resultado, uma vaga dúvida sobre o valor do capítulo que me confiou… E eu, francamente, deixei correr.
Depois, fins de Março, o Ferreira Lima levou a amabilid[ad]e ao ponto de me trazer a Coimbra (numa vinda por conta da Assoc[iaç]ão dos Arqueólogos) os dois volumes inéditos do Arquivo além de cópias de documentos soltos que ele mandou tirar.
A pequena monografia crescia a olhos vistos e, contra o que normalmente me acontece, não desgostava do trabalho.
Foi feito aos poucos, pois só depois das 9 h[oras] da noite é que me podia dedicar a isso; excepcionalm[en]te, aos domingos à tarde, alguma coisa escrevia; e à noite o trabalho não ia m[ui]to adiante da meia-noite[5] porq[ue] me tinha de levantar cedo para ir para a Tipografia.
Na verdade, foi uma lança em África o eu conseguir, com a m[inh]a preguiça intelectual, completar a obra dentro do prazo marcado.
E não foi sem alegria que eu, em 8 de Maio, escrevi a última linha.
Era tempo. O Nemésio anunciou-me que era a altura de o original ir para a Imprensa; e a doença de meu Pai agravando-se e obrigando-me a perder noites, ia talvez impossibilitar o cumprimento da promessa. Mas, enfim, tudo se conseguiu e num dia de Maio dei o original ao Nemésio; deixei-o em casa de meu Pai onde ele o foi pedir, numa manhã.
Contou-me ele depois que foi, ansioso, direito ao Jardim Botânico e sentou-se na alameda a ler; e contou-me o Sogro, passado certo tempo, que nesse dia, ao almoço o Nemésio chegou radiante e dissera que o meu trabalho «estava uma beleza!»[,] que eu fizera uma descrição da Vila da Praia e da baía como se lá tivesse ido!... Etc. etc.
Ainda bem.
Foi depois disto que ele escreveu a carta com que abriu o Memorial e na qual me chamava mestre de historiografia local e militar.
E é curioso que estranhando-lhe eu o louvor quando li umas provas q[ue] me mostrou em m[inh]a casa, ele fez um gesto vago que poderia ter várias interpretações e respondeu com ar desprendido e a olhar para o ar sem fixar os olhos:
– Também… repare que lhe não chamo grandes cousas…
Eu ri-me porq[ue], na verdade, achei-lhe graça. Entendia ele, por consequência, que a historiografia local e a militar eram coisas de tão somenos importância que ser-se mestre nelas não constituía motivo p[ar]a sobressalto.
Estes homens de letras têm a sua graça…

Em fins de Julho o volume estava pronto e lá foi para a Terceira no paquete a tempo de assistir à comemoração.
Ficou volume curioso e que não destoa do facto comemorado; eu recebi um exemplar em papel de linho com amável dedicatória e o brinde de 25 exemplares da separata da m[inh]a monografia: 20 em papel de algodão e 5 em linho.
Depois, a imprensa deu sinal.
Começou, em 10 de Agosto, pelo Diário de Lisboa em cujo n.º 2558, na pág[in]a da frente, o Nemésio deixou um artigo ligeiro sobre o acontecim[e]to.
Em 11 de Agosto o Diário de Notícias, de Lisboa[6], publicou uma ligeira notícia com o título A derrota da esquadra miguelista, com o retrato do Duque da Terceira; transcreve um período de Oliveira Martins e nada diz acerca da comemoração…
O Século, porém, é que deitou página comemorativa com gravuras e louvores, da autoria de Jaime Brasil, natural da Vila da Praia. Lá vem uma notícia circunstanciada sobre o Memorial em que eu sou tratado com muita amabilidade.
A 12 de Agosto é que o Diário de Notícias, na secção Bibliografia, dá conta da saída do Memorial, mas laconicamente.
Creio que entre os dois jornais houve rivalidades suscitadas por o Jaime Brasil tomar a iniciativa, anteriormente, da página comemorativa.
Porcarias da nossa imprensa.
Paralelam[en]te em Ponta Delgada o Correio dos Açores publicou em 9 de Agosto, no n.º 2667, um artigo do Luís da Silva Ribeiro em que eu sou excelentemente tratado.
E em 13 do mesmo mês, o Ferreira Lima conseguiu inaugurar uma exposição bibliográfica relativa à acção de 11 de Agosto numa das salas do Museu de Artilharia.
Da comemoração foi esta exposição o que mais conhecido se tornou e isto porque o Ferreira Lima sabe mexer os cordelinhos da Imprensa, dessa grande Alavanca do Progresso e da Civilização, etc. etc.
De mais… creio que ninguém deu por tal.
O Nemésio ainda publicou em 16 de Agosto, no n.º 88 da Ilustração, de Lisboa, um artigo de 2 pág[in]as, com gravuras, relativo à acção; mas é interessante que nem uma citação à m[inh]a monografia apesar de se apoiar nela…
Lapsos dos homens de letras.
[…]

4
Diário de Belisário Pimenta (20-12-1931)

Dezembro: 20.
Há tempo, o Vitorino Nemésio que se prepara para o doutoramento em Letras, disse-me que estava a preparar a sua dissertação acerca de Alexandre Herculano e pediu-me para eu lhe dar uma ou outra indicação de fontes onde estudar o assunto.
Disse-lhe que sim – e fui ver os verbetes respectivos: havia neles grande quantid[ad]e de fontes. E como ele, Nemésio e a mulher têm debicado na minha pobre pessoa fazendo, até, um pouco de troça do que eles chamam a m[inh]a cultura e a minha erudição – resolvi dar-lhe todas as notas que tinha pois o obrigaria assim, naturalmente, a dar a saber e possivelmente a consignar na obra o auxílio que lhe dera.[7]
Meu dito, meu feito.
Ontem esteve cá em casa. Mostrei-lhe os verbetes e desenrolei-lhe a série de nomes: Camilo, Fialho, Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Oliv[eir]a Martins, Antero, etc. etc.; revistas, as melhores de há 50 anos para cá; estrangeiros como Cossío, Menendez y Pelaio, Gonçalves Dias, etc. etc. – tudo com as indicações de páginas e capítulos, edições, etc. bem explicado.
Ele, ao começo interessado, deixou escapar a sua admiração e por fim, com gesto desalentado chegou a dizer:
– Não tenho direito a aceitar tanta coisa!
– Porquê? perguntei eu.
– Porque esses elementos são de tal modo importantes que chegam a ser colaboração íntima… E eu não quero abusar da sua franqueza e da sua generosidade.
Tive a impressão de que ele recuava para me não ligar muito intimamente à sua obra; e isso seria um pouco desairoso para os seus brios de homem de letras e de futuro professor universitário. Pensei rapidamente que seriam estes escrúpulos que o fariam hesitar – e então resolvi tirar uma vingançazinha e disse-lhe muito naturalmente mas a rir:
– O sr. Nemésio leva tudo isto e eu prometo guardar segredo…
Ele compreendeu muito bem a ironia e talvez percebesse a intenção de vingança; mas respondeu com ar calmo:
– Pois bem!... mas o sr. fica ligado à dissertação e eu tenho obrigação de o deixar consignado.
– Não é necessário, observei. Creia que não tenho ambições e muito menos literárias. Pode levar tudo e aproveitar o que lhe parecer.
Ele, depois de ver com atenção as indicações dos verbetes, disse com pausa:
– Isto altera-me um pouco o plano, vai até dar-me mais um capítulo que não entrava nele, o relativo às opiniões dos homens de letras contemporâneos e posteriores a Herculano.[8]
– Ainda bem!... respondi. Para alguma coisa serviram as minhas leituras e o trabalho de compilar…
E com estes cumprimentos e ironias prometi a cópia de todas as referências e a de dois originais: uma carta de Herculano (autógrafa) e outra de Paulo de Morais p[ar]a ele (cópia).
Amanhã ou depois levar-lhe-ei tudo; e aqui está como ele se enganou e veio a cair na esparrela.
Vamos a ver o que ele fará depois.

5
Diário de Belisário Pimenta (26-12-1931)

Dezembro: 26.
Fui entregar ao Vitorino Nemésio a série de notas bibliográficas que lhe prometera acerca de Alexandre Herculano. Agradeceu muito e depois de uns momentos de silêncio em q[ue] parecia pensar, disse-me que os elementos bibliográficos eram tantos que estava resolvido juntar ao livro um apêndice bibliográf[ic]o com as m[inh]as notas porque – acrescentou – embora se não utilize de todos os elementos dados, poderiam estes aproveitar a outros que se dedicassem ao estudo de Herculano.
Disse-lhe, de novo, que se não preocupasse comigo; que aproveitasse o que quisesse e rasgasse o resto. Quis-me parecer, pois, que, com o tempo, meditou sobre o caso e anda a procurar maneira de mostrar ao respeitável público que os meus elementos lhe serviram para pouco e simplesmente serve de intermediário para os estudiosos.
Será assim? Estes homens de letras valem um dinheirão.

6
Carta de Vitorino Nemésio (Abril de 1933)

Coimbra,
Cruz de Celas,
Abril de 1933.
Meu Ex.mo Amigo

Aproveito uma pausa na lavra do Herculano p[ar]a lhe agradecer vivamente a oferta do Nunálvares e a nova remessa de verbetes bibliográficos que me interessam.
A sua conferência, tanto quanto me é dado vê-la pelo lado técnico militar, pareceu-me cheia de solidez e de novidade. No resto, – no arranjo formal e na crítica histórica, – já mais facilmente pude ver que era excelente, e só lhe digo que é pena que não quebre mais vezes o seu silêncio para nos dar páginas como essas.
Mas esta carta não é de simples agradecimento ao que me deu agora. A bibliografia e o opúsculo foram apenas pretexto para lhe dizer que tenho sentido a sua ausência. Cada vez mais me confino, nesta Coimbra matriz de messias maiores e menores, ao meu esboroado e suave canto de Celas. A Baixa é para o Ponney; quando muito, para lá irmos pescar o jornal e alguns livros. Depois, pouco a pouco foram fugindo daqui os amigos com quem antigamente falava. Os rapazes vão-se formando enquanto a gente se reforma.
Quisera sobretudo tê-lo aqui para o maçar com a leitura dos capítulos já redigidos do Herculano, e que giram sobre eixos do nosso comum interesse: a emigração, o Mindelo e o cerco. Será mais tarde.
Desejo-lhe paz de espírito nessa Pena-Fidelis, que oxalá não desdiga de sua graça. Às vezes lamento que os fados me venham encaminhando para as pseudo-grandes cidades, e penso que a vida seria talvez menos perra se me decorresse por Angra, com pacatez, sargaços e uns chinelos. Mas eis que o meu saudosismo me levou por estes dias à leitura da União, diário dos meus sítios, e fiquei horrorizado com uma espécie de Voz para pior, para mais carregado… Imagine o que não seria se esta União tivesse de ser por força o meu Diário de Notícias, entre quatro paredes de lava e cagarros no ar e em terra, – em terra com as asas cortadas no alfaiate e sob o disfarce de batinas! Sou cristão, e talvez seja católico-apostólico, mas cada vez mais entranhada e figadalmente anti-romano.
Creia na muita consideração e estima
Do seu
Velho adm.dor e am.º

Vitorino Nemésio

7
Diário de Belisário Pimenta (1-1-1934)

Coimbra.
Janeiro: 1.
[…]
Agora, à noite, p[ar]a compensar, tive a visita do Vitorino Nemésio que me veio ler o prefácio do seu novo livro sobre Herculano (que será a dissertação p[ar]a o doutoramento) e o dum outro em que publica uns inéditos do historiador.
Pareceram-me bem feitos, tanto quanto a má leitura do autor me deixou compreender. O rapaz tem merecimentos; o retrato de Herculano feito através dos testemunhos coevos parece-me bem feito. E foi o que me valeu, neste começo de ano.
Posso ir dormir mais satisfeito embora sem Liberdade…[9]

8
Diário de Belisário Pimenta (20-6-1937)

Coimbra.
Junho: 20.
Fui hoje visitar o meu velho amigo Francisco Gomes. Não o encontrei em casa, mas em compensação topei com o genro, o Vitorino Nemésio que me fez entrar para o seu escritório e manteve, comigo, larga conversa de quase duas horas.
E pode dizer-se que, da conversa, saiu uma confissão geral…
Eu, é claro, fui ouvindo e registei. E aqui fica.
O Nemésio tem estado em Bruxelas, depois de dois anos em Montpellier; vem por consequência e justamente, com o arejamento que é natural em quem por lá anda e sabe ver. Ao voltar à terra, veio encontrar esta pequenez lusitana, com todas as mesquinhas questiúnculas de igrejas literárias e pedantismos catedráticos, sem contar com a actual feição política impeditiva p[ar]a cérebros de certo alcance. É pois lógico que se sinta irritado, tanto mais que andam, segundo diz, a jogar com o seu concurso p[ar]a a Faculd[ad]e de Letras de maneira esquisita e, por vezes, jesuítica.
E assim, a conversa, muito à vontade, foi caindo em desabafo; e do desabafo à confissão franca, sem rebuços – pois que, falando diante de mim, dizia ele, sabia que falava com segurança e era compreendido. O que ia dizendo, não o diria a duas ou três pessoas mais.
O Nemésio, mesmo nos seus primeiros tempos de estudante, e principiante nas Letras, não se conformava muito com a subalternidade a que era, naturalmente obrigado; debaixo da modéstia que apresentava, sentia-se que o rapaz tentava largar as asas para voos maiores. Soube, porém, sempre manter atitude concertada e cautelosa se bem que, na intimidade, rompessem as faúlhas facilmente.
Agora, porém, ao sentir-se preterido para a Faculdade, já homem feito e com certos triunfos lá fora, é natural que surja o azedume, como aliás é de razão. E desse azedume saíram apreciações e comentários, já eivados de certa vaidade ferida, tudo em conjunto que me não admirou (porque o conheço) mas que nunca imaginei concretizasse tão facilmente.
Assim, correndo as duas Faculd[ade]s de Letras, não poupou ninguém, até os seus amigos ou que eu julgava seus amigos, como o Hernâni Cidade, o João da Silva Correia, há dias falecido, e até o Carlos Simões Ventura a quem dedicou a sua dissertação de doutoramento.
É claro que teve para mentalidades inferiores como o Matos Romão, o José Simões Neves, o Providência e Costa, o Agostinho Fortes, o Ferrand de Almeida, comentários rudes embora de certa justiça que os colocaram no seu devido pé perante os problemas do ensino superior.
Mas o que eu estranhei foram as apreciações acerca dos outros, dos que eu imaginava amigos e que ele, se bem que debaixo de confidência, inferiorizou a ponto de quase lhes não dar a craveira necessária p[ar]a o cargo que exercem.
É certo que ele distingue nas Faculdades de Letras duas espécies de cadeiras: as que têm cunho científico e as que dependem da livre crítica e, por consequência, necessitam de temperamentos dotados de capacidade e sensibilidade literárias ou filosóficas para as ensinar.
Eu nada percebo do assunto mas confesso que, na generalid[ad]e, lhe achei certa razão.
E com esse critério diz o Nemésio que o Carlos Simões Ventura, capaz de ser profundo como é, na cadeira de latim e grego, é incapaz de compreender Cícero ou Hesíodo como homens de letras no seu tempo, no ambiente e nas intenções, saber colocá-los no ponto exacto da evolução, etc. O Hernâni Cidade e o Rodrigues Lapa capazes, como são, de produzirem obras valiosas sobre assuntos já arrumados (sic) e acerca dos quais já há ideias assentes ou até controversas, são incapazes de se revelarem ou compreenderem qualquer fenómeno literário ou artístico quando contemporâneos e quando saem fora das formas estabelecidas.[10]
Assim, o Simões Ventura apenas erudito, não tem capacid[ad]e para abranger uma história literária; os outros, embora tenham essa capacidade para a história literária passada, não têm qualidades para compreender os fenómenos apanhados na sua contemporaneidade (sic). Falta não só de certa cultura filosófica e geral para uns, falta de sensibilidade literária, receptividade perante os fenómenos recentes para outros.
É possível que isto não deixe de ter suas razões; mas eu sentia que, por debaixo destes argumentos inteligentes e com certa lógica, havia azedume mal contido e vaidade de certo modo irritada – o que é humano.
E em crescendo, e sempre num à vontade curioso, chegou a dizer que, perante as mediocridades que se assenhorearam dos lugares superiores do ensino, ficavam à espera aqueles que tinham valor como o Paulo Quintela em Coimbra e outros em Lisboa e até aqueles que se sentem com «o mínimo das qualidades para o ensino superior» (sic), com conhecimento das correntes modernas estrangeiras e o impulso íntimo que as provoca.
Aqui, evidentemente, classificou-se ele, quase sem rebuço… Não há dúvida que ele terá razões e as preterições têm-no irritado. Mas…
No final da conversa, confessou abertamente: vê-se obrigado a retrair-se; raramente comunica as suas ideias sobre o assunto tratado; não quer que o digam despeitado. De modo que, sem querer, ao falar livremente diante de mim, deixou-se levar pelas suas opiniões íntimas e… desabafou!
Eu fingi que não compreendi e melhor ou pior desviei a conversa para que ele se não aborrecesse de ter falado tão claro. E aqui está como eu, sem esperar, ouvi falar um homem de letras, no seu natural reservado – mas a quem o espinho do azedume obrigou a falar à solta como qualquer ingénuo.
Por onde é certo dizer-se que os homens, afinal, são todos pequenos…

9
Diário de Belisário Pimenta (20-11-1939)

Coimbra.
Novembro: 20.
O Vitorino Nemésio lá foi nomeado professor da Faculd[ad]e de Letras de Lisboa. Não sei se ele entraria com a espinha direita e pela porta principal. Há certo tempo para cá ando a desconfiar dele.
Mas, vá lá! Como os meus juízos podem não ser certos, escrevi-lhe uma carta sóbria e protocolar de parabéns.
Carta que pode dar p[ar]a as duas hipóteses…

10
Carta de Vitorino Nemésio (24-2-1940)[11]

Av.da Ten[en]te Valadim, 357, 4.º D.to
24 de Fevereiro de 1940.

Ex.mo Senhor Coronel Belisário Pimenta,
Meu ilustre Amigo,

Só a sua muita benevolência lhe ditaria uma carta de parabéns pela minha nomeação quando abalei daí sem me despedir. Não me despedi de ninguém expressamente. Preferi correr riscos de ingratidão a aumentar a mágoa de me separar de Coimbra. E, como lá deixo meu sogro e até trastes e papéis meus no Tovim, iludo-me. Tencionamos lá ir passar a Páscoa.
Mas, mesmo desta maneira fria que é a carta, tenho muito empenho em dizer que V. Ex.ª é das raras pessoas de Coimbra que traduziam para mim a gentileza da terra. Do bicho lente, como é de supor, não trago muito boas recordações. O bicho lente rói e estraga isso. Bem bom, que lhe dá pitoresco.
Nunca me esquecerei dos nossos agradáveis verões de Celas e da rua Venâncio Rodrigues, no clássico cenário de meu sogro (espigas de milho e sonolência) ou no repouso e na ordem do escritório de V. Ex.ª Isso e todas as finezas que recebi de si.
Minha Mulher, que estima V. Ex.ª como eu mesmo, pede-me muitos cumprimentos para V. Ex.ª Cumprimentos a sua Ex.ma Família.
Amigo m.to grato
Vitorino Nemésio.

11
Diário de Belisário Pimenta (8-9-1942)

Caldelas:
Setembro: 8.
Como vem nos jornais a notícia da nomeação de Vitorino Nemésio para professor da Faculd[ad]e de Letras de Lisboa, mandei-lhe uma carta de felicitações, mas carta quase cerimoniosa, por causa das dúvidas.
O homem subiu; é capaz de, agora, já não olhar m[ui]to para baixo.
Vamos a ver. Tudo pode ser.

12
Carta de Vitorino Nemésio (12-4-1944)

FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA[12]
(R. Sociedade Farmacêutica, 56, 4.º).
12.IV.1944.

Ex.mo Senhor Coronel Belisário Pimenta,
meu prezado Amigo

Por estarmos em férias, não costumo ir à Faculdade; de modo que só agora recebi a carta de V. Ex.ª datada de 28 de Março! V. Ex.ª desculpe-me pelo tempo que retive o Dicionário[13], que, embora me tenha prestado inestimáveis serviços nas minhas devassas herculanianas, há muito ali estava intacto. O exemplar, creio que vinha um pouco descosido. Com o manusear, ficou ainda mais. Ainda pensei em mandá-lo, pelo menos, brochar; mas, para não o demorar mais, agora vai assim.
Não tenho ideia das Curiosidades do Dr. Moreira de Azevedo; mas é possível que as tenha. Sou infelizmente bastante descuidado nisto de livros e papéis. Darei uma volta ao meu caos e, se encontrar esse livro, enviá-lo-ei a V. Ex.ª
A Georgina e o Manuel estão para Coimbra; os outros dois connosco[14]. Bastante cábulas, vamos… Mas crescidos e não de todo maus rapazes.
Espero passar Junho em Coimbra, antes das licenciaturas. Então nos veremos finalmente com o vagar devido a uma velha amizade que me apraz que V. Ex.ª recorde, que me honra muito e me lembra tempos e pessoas que não voltam.
Minha Mulher pede-me que a recomende afectuosamente e, desculpando-me, creia V. Ex.ª no respeito e consideração
Do seu velho
Amigo grato
Vitorino Nemésio
P.S. Dentro de poucas semanas terei o prazer de lhe mandar a edição crítica do Eurico.

13
Diário de Belisário Pimenta (13-7-1949)

Paz: Mafra.
Julho: 13.
Aqui estou, outra vez, nesta incomparável pasmaceira e, neste momento, a pensar nas novidades colhidas há dias em Coimbra.
Trata-se, nem mais nem menos, do que da conversão ao catolicismo do Vitorino Nemésio, da retractação do Sílvio Lima e da possível evolução num ou noutro sentido do Paulo Quintela.
Três novidades que me deixaram abalado e, verdade, verdadinha, um bocadinho admirado. Com franqueza, estava longe destes desenlaces…
Ingenuidade minha?
Boa-fé?
Talvez um pouco de tudo.
Mas vamos lá resumir o que apreendi, de origem séria e bem informada.
O Vitorino Nemésio, há anos, depois do seu doutoramento, vendo que não ia a professor da Faculd[ad]e de Letras e aproveitando a estada na Bélgica como leitor, internou-se num convento e fez a sua conversão à Igreja Católica, Apostólica, etc. Durante esse tempo de recolhimento escrevia para Lisboa, para o Ministério, para a Junta da Educação e para conhecidos, em papel com timbre do convento para mostrar bem onde estava residindo e dar sinal da sua reviravolta.
Um amigo, ou pelo menos indivíduo com quem mantinha as melhores relações literárias, procurou, ainda na Bélgica onde se encontrava, evitar o acto. Fez-lhe ver o que esse acto tinha de desagradável; chegou a dizer-lhe que se realmente ele, Nemésio, encontrou a sua estrada de Damasco, evitasse os intermediários p[ar]a a reconciliação, que se dirigisse a Deus directamente, que não profanasse essa reconciliação com intervenções de gente que poderia não compreender o que havia de sério no seu intuito nem desse espectáculo externo que redundaria em gáudio para os malévolos.
Estas solicitações feitas afinal por um livre-pensador[15] não deram efeito. O Nemésio fez a abjuração solene dos seus erros e converteu-se à Fé Católica.
Foi então, depois disto, que veio a nomeação para professor da Faculd[ad]e creio até que logo para catedrático.
O bom do coronel Francisco Gomes, sogro do convertido, não sei se teria conhecimento de tudo isto; era, porém, naturalíssimo que o soubesse. Lembro-me de que um dia, ele me disse que o Nemésio ao ver a preterição em que estava, escrevera uma carta ao Salazar a expor a situação em que o colocaram com a ilegalid[ad]e de certas medidas; nessa carta fazia ver a verdade e reclamava o cumprimento da Lei. E o bom do cor[on]el Gomes terminava dizendo que o Salazar não respondera mas mandara fazer o despacho, dando assim razão à reclamação.
Pobre cor[on]el Francisco Gomes!
A carta dirigida ao Salazar vejo agora o que seria. O bom do sogro ou quis explicar honestamente o acto p[ar]a que eu não ficasse fazendo a má ideia que naturalmente faria do genro ou acreditou q[ue] a nomeação fosse resultante da atitude justiceira do sombrio ditador jesuíta.
O certo é que o Nemésio foi nomeado. E como professor já mostrou que sabia pagar a nomeação… O Magalhães Godinho, por ex[empl]o, foi afastado da Faculd[ad]e por ele e um outro cujo nome me não ocorre, foi igualmente afastado.
Vê-se ao menos q[ue] é agradecido.
Agora o Sílvio Lima.
Este, por várias vezes já (sei-o eu) tentou ser readmitido na Faculdade de Letras de Coimbra. Quis meter nisso, como era natural, o cunhado ministro, Adriano Vaz Serra – mas nada!
Lastimava-se, carpia-se, mas não conseguia coisa que se visse. Até que um dia…
Esse dia chega sempre.
O sogro, o velho José Antunes Vaz Serra, impôs-lhe a assinatura num largo estendal de papel selado, nem mais nem menos do q[ue] uma retractação formal de tudo quanto dissera contra a Igreja Católica e em especial contra o cardeal Cerejeira. A prosa[,] segundo parece, era tão dura de roer que o Sílvio teve um assomo de pudor…
Não! não assinava tanto! Com modificações, vá lá! talvez…
Porém o sogro, com intimativa:
– Assine, já lhe disse! O que é necessário é que o sr. tenha, no fim do mês, com que mandar comprar couves para a mulher e para os filhos.
O Sílvio, então, sucumbido, assinou o papel que foi, por causa das dúvidas, reconhecido devidam[ent]e pelo notário.
A nomeação veio pouco depois; e o Sílvio Lima lá está professor, vai vulgarmente à missa, há até quem diga que vai muito regularmente, e nesta última Semana Santa andou a visitar as igrejas com a esposa e os filhos, às claras, com solenidade…
Quanto ao Paulo Quintela…
Com este há dúvidas, ainda, e poderá ser que tudo não passe de suspeitas e possivelmente um pouco de má língua.
É certo que tenho notado não sei o quê, há algum tempo p[ar]a cá, certa frieza na maneira de me falar e constante companhia com o Manuel Lopes de Almeida. Isto depois do doutoramento – o que pode ser explicado pelo facto do capelo lhe subir à cabeça…
Contudo, já me disseram que alguma coisa há desde então: é que se afirma que a nomeação p[ar]a professor efectivo não se faria sem condições.
Será?... Não será?
Fica em suspenso, honestamente, o julgamento. Até ver.
Mas que tristeza isto causa!
É claro que não acredito na sinceridade dos dois primeiramente apontados: nem o Nemésio se converteu nem o Sílvio Lima se desconvenceu… Simplesmente o interesse, a falta de firmeza de carácter, os levaram àqueles actos falsos e bem degradantes.
Uma tristeza!

14
Diário de Belisário Pimenta (9-8-1949)

Paz: Mafra.
Agosto: 9.
Hoje, duas cartas, nem mais nem menos. A primeira é p[ar]a o Vitorino Nemésio do qual quero provocar uma resposta qualquer… É madureza como outra qualquer mas não ofende ninguém
«…. Li há dias no Diário de Notícias o seu artigo acerca do Turismo interno. A leitura fez-me lembrar o nosso encontro em Serpins, em Abril, e a promessa de V… em falar da desconhecida Miranda do Corvo em outro artigo de uma série q[ue], se me não engano, intitularia Itinerários obscuros.
«Mas as recordações também são como as cerejas. Atrás do artigo lido veio sem querer e agradavelmente, a lembrança do mês de Agosto de há 20 anos, época em q[ue] V… andava alvoroçado com o centenário do desembarque miguelista na Vila da Praia e a organização do Memorial.
«Depois de amanhã passam 20 anos – quase uma vida!
«Tudo isto me fez escrever esta carta como desabafo de velho.
«Vinte anos! Vinte anos!... Desculpe o tempo que lhe tomo, etc. etc.»
[…]


15
Carta de Vitorino Nemésio (11-8-1949)[16]

Lisboa, 11 de Ag[os]to 1949.
56, 4.º, Soc.de Farmacêutica.

Meu querido Amigo e Exm.º Senhor
Coronel Belisário Pimenta

Segundos depois de ter lido a sua carta respondo-lhe do coração. Gestos de pura amizade, como esse, só com outros gestos assim espontâneos se podem de algum modo pagar.
Eu nunca esqueci o nosso convívio de tantos anos, começado à sombra daquele pardieiro da Cruz de Celas, sob os gestos tão lhanos e os cabelos brancos do Coronel Gomes – tudo já sombras que só a saudade prende. Daí para cá tenho semeado muita cinza e colhido outra tanto (da que semeio e da que não semeio, claro!...). E, talvez por isso, também pela minha invencível inibição para pontualidades, o certo é que nos temos mantido ao longe – mas pelo que se vê e eu já sabia, perto do pensamento.
Não imagina como a sua carta veio a tempo! O que eu preciso de amizades dessas, em que já se medem as coisas a galgões de vinte anos! Pois parece que foi ontem, o tal centenário da Vitória da Vila da Praia… Vejo ainda a minúcia, o saber, a intuição com que o Senhor Coronel pôs de pé aquelas horas de combate, os fortes, os comandos, as intrigas. Santos tempos em que eu folgava e me entregava à vida com confiança!
Pois deixe estar que um dia destes meto à máquina uma folha sobre Miranda do Corvo – e com que gosto! Assim encontre o apontamento que de lá trouxe com as coisas que mais me impressionaram.
Agora, sabe o Senhor Coronel uma novidade?[17] Sou sogro há quase 15 dias! Confesso que, apesar de longamente preparado p[ar]a esta mudança de estado, estremeci perante o facto consumado. Daqui a avô são dois passos. Como vê, expressões como a sua – «desabafos de velho» – já me não são de todo estranhas, embora o físico teime em me inculcar juvanceau. Questão de pigmentação capila[r]: Tenho uma linha ascendente de cabelos pretos – o que não impediu que três fiapos teimosamente argênteos viessem acidentar a minha marrafa esquerda…
Bem haja uma vez mais, meu querido Amigo, pelo seu gesto tão espontâneo e indulgente. Repito que considero heróicos aqueles recuados tempos da azinhaga de Vale Meão, em que os filhos ainda eram implumes e o cinzeiral não começara a invadir as terras cultas. Mas também há flores na cinza, ao que parece, e nisso estou fiado.
A Gabriela está um pouco triste com a saída da morgadita, mas ao mesmo tempo contente com o motivo, pois o rapaz é simpático e sério – e é quanto basta.
Os meus respeitos a sua Ex.ma Esposa. Um vivo abraço do velho Amigo m.to grato
Vitorino Nemésio

P.S. Ando empenhado (aqui p[ar]a nós) numa… utopia. Gostava de arranjar um casinhoto, quintarola ou como se lhe queira chamar, não longe de Lisboa, coisa no género fim de semana, mas onde um maduro semi-solitário pudesse eventualmente instalar-se com um mínimo de conforto e uma criada velha, ao menos por temporadas. Coisa que me não levasse mais de uns 400$00 por mês, pouco mais ou menos.
O meu querido amigo, que conhece tão bem esses alfozes de Mafra e Ericeira, não poderá descobrir-me ou sugerir-me algo assim? Basta que tenha camionete p[ar]a Lisboa e um quarto de hora de pé…

16
Diário de Belisário Pimenta (15-8-1949)

Paz: Mafra.
Agosto: 15.
O Nemésio respondeu logo à m[inh]a carta de 9 do corrente que atrás deixei copiada. E depois de cumprimentos não sei se sinceros e agradecimentos pela m[inh]a lembrança, pede-me que lhe arranje por aqui algures um «casinhoto» onde se refugie nalgum fim de semana, com «uma criada velha.»
Ora nos últimos tempos, toda a gente que o conhece sabe das suas aventuras com uma prima da esposa, com quem viaja e quase vive diariamente. Este «casinhoto» que ele me solicita não será antes um ninho para o qual leve a amante por 24 ou 48 horas?
Lembrou-se ele de mim para ajudar a encobrir a maroteira?
Pode bem ser que não; mas também pode ser que sim.
Por causa das dúvidas respondi-lhe com a seguinte carta que me parece modesto modelo para quem se quer livrar de velhacadas.
Quis provocar-lhe uma resposta que valesse e afinal fiquei comido…
Aqui vai a carta:

«…. Não respondi logo à sua tão bela carta porque me quis informar acerca do seu pedido do Post-scriptum; e quer por causa do calor quer por não passar ultimam[ent]e muito bem de saúde, não tenho saído daqui há bastante tempo.
«Nestes arredores mais próximos não há casinhoto nos termos desejados nem noutros termos porque está tudo ocupado; e numa área mais afastada, dizem-me que igualmente não há. Contudo, informam-me de que na estrada de Pinheiro de Loures a Lousa, já no concelho de Loures, vizinho de L[isbo]a, nos aglomerados novos de Boticas e Guerreiros poderá haver uma ou outra habitação moderna alugável com a vantagem de ter à porta algumas dezenas de caminhetas de carreira e ficar a escassos quilómetros da capital. Lembro-me de há tempo lá passar e notar escritos numa ou noutra.
«V… num salto, poderá daí ir verificar ou informar-se com a secção de turismo da Câmara de Loures que julgo atender tais solicitações.
«Já sabia, por indiscrição dos jornais que era sogro e, muito naturalmente, com o andar dos tempos, a caminho de avô. Mas que quer? é assim mesmo… Aqui, onde me vê, chego dentro de pouco àquele limite que o Estado impõe a todo o funcionário, limite além do qual vem o esquecimento oficial e, muitas vezes, o extra-oficial.
«Não sentirei diferença porque há muitos anos estou nesse esquecimento; mas sempre a Ordem do Exército dá a conhecer urbi et orbi que entro definitivam[ent]e na Reforma.
«Pois sr. Dr. creia, etc. etc.»

Uf!... Que vá para o Diabo… O que aí fica é tudo forçado e é possível q[ue] o destinatário perceba o que está por debaixo das amabilidades. Mas não importa.
O principal é eu não estar disposto para ajudar a tratantada.

17
Diário de Belisário Pimenta (10-9-1952)

Paz. Mafra.
Setembro: 10.
Já por várias vezes aqui tenho falado no Vitorino Nemésio, actualmente convertido à boa doutrina e entrado no bom caminho.
Ora hoje, no Diário de Notícias, vem um artigo de fundo da sua autoria em que fala do Brasil onde agora gozou uns meses de regabofe. Descreve paisagens e refere-se a várias coisas q[ue] não vêm para aqui; a razão desta nota é o seguinte passo do artigo: «…Quando, à hora de laudes, no claustro de S. Bento do Rio, saindo com os monges do coro, ouvíamos um passaredo que se abatia nas amendoeiras, etc. etc.»
Por este passo vê-se que o cavalheiro esteve no mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, e acompanhou os monges ao coro à hora de laudes… Quero crer, mesmo, que seria no mosteiro beneditino que ele se hospedou p[ar]a economia da bolsa e edificação da alma – pois ainda deve andar muito sarro de heresia no interior daquelas magras aduelas…
Enfim, não tenho nada com o que faz o Vitorino Nemésio. Tenho, porém, o direito de deixar aqui esta simples nota.
E cá fica.

18
Diário de Belisário Pimenta (4-12-1953)

Lisboa
Dezembro: 4
[…] Ontem, às 21,5 horas, o Nemésio lançou pela Emissora Nacional, a sua costumada palestra das 5.as feiras. Às vezes oiço com interesse, outras vezes aborrece-me o tom monótono com q[ue] fala e mudo de estação.
Mas ontem, casualmente, em casa de m[inh]a Filha, ouvi a locutora anunciar a palestra e o Vitorino Nemésio começar… E começar como? A propósito de ser dia de S. Franc[isc]o Xavier, começou por evocar Inácio de Loiola[18], um dos grandes homens do séc.º XVI; e dispôs-se a biografar e enaltecer o fundador da Companhia…
Se estivesse em m[inh]a casa ou fechava o rádio ou mudava de estação; felizmente a conversa da família cortava a parlenda e só de vez em quando se ouvia a voz monótona do Nemésio repisando as excelências do solitário de Manresa. E eu, para comigo, ia pensando nas voltas do Mundo…
O Nemésio que eu conheci estudante em Coimbra há bons 30 anos, revolucionário, ateu ou coisa parecida, não encontrou assunto melhor para a palestra de ontem além de Inácio de Loiola – que pareceu-me merecer-lhe certos encómios.
O Vitorino Nemésio a exaltar S.to Inácio de Loiola é um destes casos que se não comenta. Apenas se regista p[ar]a acrescentar a notas que aqui deixei há tempos e que agora infelizmente recordo.
Muito se aprende com o tempo e com a idade! E eu já tenho certa conta de anos que dá direito a saber alguma coisa.

19
Diário de Belisário Pimenta (10-9-1954)

Paz (Mafra)
Setembro: 10
O Vitorino Nemésio publicou agora um livro com o título O Campo de S. Paulo que é trabalho histórico relativo à fundação da cidade de S. Paulo, do Brasil.
Tive conhecim[ent]o disso pela página Das Artes. Das Letras do n[úmer]o de anteontem do Primeiro de Janeiro organizada pelo Jaime Brasil, conterrâneo e antigo amigo do Nemésio. E digo «antigo amigo» porque não [conheço] as relações q[ue] actualmente mantêm.
Ora pela crítica à obra que parece querer ser amável, conclui-se que o autor[,] «que não é um historiador profissional»[,] pois «outras musas o fadaram que não Clio»[,] quis apenas exaltar a acção da Companhia de Jesus não só através da acção do Padre Manuel da Nóbrega mas também a do próprio Inácio de Loiola com o qual gasta grande parte do volume.
O Nemésio, agora, inclina as suas simpatias para a Companhia de Jesus. Na crítica diz até: «Estudou com devoção a vida de Inácio de Loiola…»
Com devoção…
Que grande maroto!
[…]

20
Diário de Belisário Pimenta (25-11-1954)

Lisboa
Novembro: 25.
Ontem, no Instituto Inglês, o Nemésio fez uma conferência acerca de Garrett. Assistência numerosa, em especial de raparigas da Faculd[ad]e de Letras. Ambiente simpático.
A conferência foi uma conversa e devo dizer que agradável. O Nemésio tem sempre palestra agradável, variada, quando aborda assunto em que está à vontade; e neste caso pode dizer-se que fez variações sobre um tema conhecido e que, sem dar novidades ou apresentar aspectos novos, entreteve o auditório durante uma hora e tal sem cansaço ou bocejos. Pelo que me toca, devo dizer que gostei de o ouvir e que somente lastimei que as qualidades de carácter não correspondam ao seu valor intelectual. Mas, enfim, como diz o Povo: honra e proveito não cabem num saco.
E já que falo sempre do Nemésio sempre registarei que está, na Faculdade, com péssima reputação como professor. Pondo de lado a sua adaptação ou até adesão ao Estado Novo e a conversão à Igreja de Roma, o que o tem levado a actos que o não dignificam, parece que, como professor, é de extrema irregularidade, não liga a devida atenção às lições e nem lê os trabalhos dos alunos a ponto de argumentar nos exames de modo que se vê nitidamente que ignora o que está escrito.
Parece que tem havido reclamações bem fundamentadas; mas… em nome do prestígio universitário, tudo se encobre e se arruma sem escândalo.
Vantagens do regime em que vivemos. Com liberd[dad]e de Imprensa, onde estaria o trono do Nemésio?
E assim se vai vivendo.
Ora desta conferência ou conversa sobre Garrett, trago uma recordação curiosa: conheci pessoalmente o escritor Joaquim Paço de Arcos, o romancista da Ana Paula tão lido pelas mulheres.
Eu estava com o Pires Monteiro, na terceira fila de cadeiras; o Paço de Arcos, como genro do falecido comand[an]te Moura Braz é conhecido daquele e veio falar-lhe, afavelm[en]te, com deferências de pessoa educada. O Pires Monteiro apresentou-me e o Paço de Arcos desfez-se em atenções para comigo, lembrando a carta que eu escrevi à sogra quando lhe morreu o marido. Vejo que a minha carta deu no goto à família; possivelm[en]te seria o documento mais sincero que apareceu no momento do desgosto.
Achei o romancista pessoa fina, bem educada, com hábitos de sociedade; a voz um bocado fanhosa é que torna desagradável e lhe dá uma vaga impressão de maneiras efeminadas. Honny soit, porém, qui mal y pense.

21
Diário de Belisário Pimenta (27-9-1956)

Paz (Mafra):
Setembro: 27.
No jornal República de ontem, na secção Correio de ontem, vem a seguinte local que não posso deixar de arquivar:

Atenção, empresários de toiros!
Lemos nos jornais que o professor universitário dr. Vitorino Nemésio toireou numa «tente», em Angra do Heroísmo, de tal modo que o grande Carlos Arruza, que com ele alternou, exclamou, cheio de entusiasmo:
– Hombre, que bien torea el professor!
Alegra-nos a notícia. Já sabíamos que o professor Nemésio era aficionado dos toiros e tinha feito algumas «faenas», ainda que não do agrado total do público.
Vemos, porém, a julgar pela opinião de «El Ciclón», que as evoluções tauromáquicas do ilustre catedrático atingiram tal grau de depuração que não será de surpreender que o vejamos na próxima época no Campo Pequeno…
- Olé por los toreros de verguenza![19]

O Nemésio está colhendo os frutos da sua falta de carácter.

22
Diário de Belisário Pimenta (28-9-1956)

Paz (Mafra)
Setembro: 28:
O dr. Rebelo Gonçalves há m[uit]o que me convidou para uma tarde de palestra na sua casa do Pinheiro juntam[en]te com o conselheiro aposentado dr. Nunes da Rica, actualmente com residência fixa em Mafra. Calhou hoje e lá fui. Tarde bem passada. A casa está arranjada com m[ui]to gosto e no 1.º andar tem uma larga varanda voltada p[ar]a poente, coberta, onde se passou o resto da tarde perante um magnífico pôr-do-sol.
O dr. Rebelo Gonçalves[20] a quem contei a local na República relativa ao Nemésio ficou um tanto ou quanto aborrecido, segundo me pareceu. Tratava-se dum colega e por muito indiferente que se queira ser, sempre esses remoques lhe tocam um pouco pela porta, isto é, sempre vão ferir o prestígio do cargo e da própria faculd[ad]e. Em todo o caso… o Rebelo Gonçalves[21] confessou que não gostara da evolução nas ideias do colega e disse que, na verd[ad]e, se lembrava de ele lhe ter dito, em tempos, que na sua mocid[dad]e ainda na Vila da Praia muitas vezes ajudara à missa na freguesia. Voltara, pois, aos seus primeiros amores…
E não se falou mais no caso.
[…]

23
Bilhete-postal de Vitorino Nemésio (1-1-1968)

Lisboa, 1 de Janeiro de 1968.
Meu querido Amigo

Q[ue] ao menos num postal eu exprima os nossos sinceros desejos de Ano Bom (meus e da Gabriela)! O tempo das Pressas atómicas tudo tritura e leva; mas, apesar das minhas omissões, não esqueço (nem a Gabriela) a amizade antiga – a dos bons tempos, – e as suas gentilezas connosco[22].
Seu m.to grato amigo
Vitorino Nemésio

Anotações
[1] Belisário Pimenta, Memórias. I – 1879-1902, p. 19, manuscrito 3363 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
[2] O fundo de manuscritos do coronel Belisário Pimenta encontra-se arquivado com os números 3343 a 3365. As Memórias: diário ao correr da pena correspondem ao manuscrito 3363 e a correspondência recebida e enviada ao 3352.
[3] Críticas Sobre Vitorino Nemésio, Lisboa, Livraria Bertrand, 1974; José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, Lisboa, Vega, 1988 (copyright); Luís Reis Torgal, A Universidade e o Estado Novo. Coimbra, Livraria Minerva Coimbra, 1999, pp. 78, 80 e 84; Carlos Santarém Andrade, A Envolvência Coimbrã de Régio e Nemésio, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, 2001.
[4] No original: «abril».
[5] No original: «meia noite».
[6] Belisário Pimenta grafou «Lx.ª»
[7] Isso veio, efectivamente, a acontecer. No post-scriptum do prefácio, manifestou o seu débito de gratidão nos seguintes termos: «As indicações bibliográficas que me forneceu o meu respeitável amigo Sr. Tenente-Coronel Belisário Pimenta, bem como uma carta inédita e muitas outras achegas, foram inestimáveis.» (Vitorino Nemésio, A Mocidade de Herculano: 1810-1832. 2.ª ed. Amadora, Livraria Bertrand, 1978, p. 50.)
[8] O primeiro capítulo de A Mocidade de Herculano tem, efectivamente, esse teor.
[9] Neste contraponto, Belisário Pimenta alude à primeira parte do registo, onde refere os cortes censórios que o general Teixeira Botelho realizou num artigo para a Revista Militar, retirando duas vezes a palavra «Liberdade».
[10] Esta opinião encontra-se reiterada no diário escrito em Bruxelas, a 15 de Março de 1937: «O Lapa é um rapaz cultíssimo, um romanista inteligente e um historiador da literatura cheio de medida, mas vê tudo por um ângulo rigidamente formal, de gosto velho. Parece aplicar à literatura contemporânea a bitola dos refrãs e dos lais.» (Ver página facsimilada em Vitorino Nemésio Vinte Anos Depois, Lisboa, Edições Cosmos, 1998, ilustração 15.)
[11] Carta escrita em papel com o timbre da Faculdade de Letras de Lisboa.
[12] Timbre da Faculdade de Letras de Lisboa.
[13] No original: «Diccionário»
[14] No original: «conosco».
[15] No original: «livre pensador».
[16] Carta parcialmente dactilografada.
[17] Termina aqui a parte dactilografada da carta.
[18] Sic.
[19] Belisário Pimenta apresenta esta notícia através de um recorte colado no volume manuscrito do seu diário.
[20] Belisário Pimenta usa, neste ponto, a abreviatura «Glz.»
[21] Idem.
[22] Vitorino Nemésio grafa, como já fez em carta anterior, conosco.
Nuno Rosmaninho
Universidade de Aveiro
[artigo primeiramente publicado na "Revista da Universidade de Aveiro-Letras", 19/20 (2002-2003), pp. 317-343. A edição on line foi expressamente autorizada pelo autor, Prof. Doutor António Nuno Rosmaninho Rolo, cuja apresentação foi feita neste Blog em Novembro de 2006. AMNunes]

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