segunda-feira, janeiro 22, 2007

O Cerimonial Fúnebre Académico

Apontamentos e Interrogações

Armando Luís de Carvalho HOMEM

A participação no funeral do Doutor Ruy Manuel Côrte-Real de Albuquerque (1933-2007) – ontem à tarde – é a motivação imediata para este breve texto, com alguns dados e bastantes mais questionamentos.

Como é sabido, situações de luto – pessoal, institucional, académico… – traduzem-se imediatamente no quomodo do uso do traje estudantil: a capa passa a ser usada completamente desenrolada, eventualmente fechada com colchete – quando este aí exista [1] – e a batina (casaco de «tailleur» para as Senhoras) será igualmente fechada, encobrindo as bandas de cetim, e presa em cima com um colchete que suponho que aí continua a existir. Ou seja: um estudante trajando enlutadamente não fica muito diferente de um lente em hábito talar (ainda ontem me pude reaperceber disso): como antes de 1910…
Um lente coimbrão de luto enverga pois a sua farpela sem mais adornos; festivas que são, as insígnias não entram aqui [2], como não entram, em geral, em cerimónias religiosas [3]. E se usar luvas, estas podem passar do branco para o preto, como aquando do uso de fraque em cerimónias fúnebres [4]; mas podem manter-se brancas, se o paralelo se fizer em relação à casaca [5].
Lentes de outras U's portuguesas usarão então a toga / beca / hábito / batina / etc. que lhes competir, sem aquilo que normalmente é tido por insígnia e, como tal, festivo: uma medalha pendente de epitógio na cor da especialidade científica. É claro que o traje-base pode ter cores outras: o castanho de Évora; o azul-celeste dos canhões das mangas da U. Beira Interior e da U. Autónoma de Lisboa (UAL); o verde da U. Aveiro; as cores das especialidades científicas do capelo – indissociável aqui do traje-base – do ISCTE; o vermelho dos debruns do traje da U. Portucalense e dos canhões das mangas da U. Moderna, etc. Sem falar no caso dos lentes que usem polícromos hábitos de U's de outros Países, onde se tenham doutorado…

Um lente de Coimbra cujo funeral parta da capela de S. Miguel será aí velado por Colegas em «hábito talar sem insígnias» – com os necessários mutatis mutandis's relativamente aos Mestres de outras Escolas que presentes estejam; terá junto do caixão a sua borla, colocada sobre uma almofada; será esta transportada no saimento pelo dr. mais recente da s. especialidade; e no percurso até ao – e no – cemitério terá acompanhamento de archeiros e possivelmente do bedel da sua Faculdade; e poderá haver oração fúnebre, proferida por um Colega, aqui o mais antigo, o representante institucional da Escola, etc.
De tudo isto, o meu conhecimento directo é limitado: em Janeiro de 1992, em representação do Dep. de História da UAL, a que presidia, pude assistir ao saimento, do Arsenal da Marinha (ao Terreiro do Paço), do Doutor Luís Guilherme Mendonça de Albuquerque (n. 1916); na circunstância – e para além de numerosas individualidades dos meios políticos, culturais e militares – estavam presentes, em hábito talar, o Director da Biblioteca-Geral da UC – Doutor Aníbal Pinto de Castro, que em 1986 sucedera no cargo ao próprio Doutor Albuquerque – e dois ou três lentes de Matemática da FCT/UC, o mais novo dos quais transportou a borla no breve trajecto da capela do Arsenal à viatura funerária. Sei que depois, no cemitério de Sangalhos, estiveram numerosos lentes e estudantes, bem como a guarda de honra dos archeiros; mas isso já não presenciei.
Imagens televisivas retenho ainda de funerais de outros lentes e drs. da UC:

§ Salazar (1970), funeral de Estado com componente académica, sendo orador no cemitério de Vimieiro (Santa Comba Dão) o Doutor Afonso Queiró, Director da FD/UC;
§ Carlos Alberto da Mota Pinto (1985);
§ Paulo Quintela (1987), com oração fúnebre da Doutora Maria Helena Rocha Pereira;
§ Azeredo Perdigão e Vergílio Ferreira (1993 e 1996, respectivamente), drs. h.c. pela UC;
§ Francisco Lucas Pires (1998)…

E nas outras Instituições universitárias ?
Não tenho informações a este respeito no que concerne as U's nascidas no último quartel do século XX. Ainda que pequenas-médias urbes pudessem ser palco de cerimoniais com modelo na UC. Um exemplo vindo de uma outra área profissional mas, para o que aqui interessa, com pontos de contacto: em Viseu, há já algumas décadas, advogados houve acompanhados na sua última viagem pelos Colegas envergando toga… Mas no que às U's diz respeito nada sei de concreto.
Relativamente às U's da primeira metade do século XX:

§ Nada sei relativamente à U. Técnica de Lisboa (1930 ss.) e às Escolas que a precederam e nela se federaram;

§ Na UP, poucos funerais académicos terá havido; ainda assim recordo que os lentes Jayme Rios de Souza (1907-1971) – morto no exercício das funções de Director da FC/UP – e Ruy Luís Gomes (1905-1984) – antigo Reitor e portador do título honorífico de Reitor vitalício – foram velados na Fac. Ciências, no segundo caso em circunstâncias pura e simplesmente laicas; das circunstâncias do primeiro destes casos já não me recordo. Ulteriores tentativas de realização de funerais académicos geraram alguma controvérsia, com resultados particularmente revoltantes em 1989, aquando da morte do Doutor António Cruz (n. 1911), que muito deveria representar para os historiadores portuenses; particularmente polémica foi a posição de um ao tempo ex-Reitor com ALMA MATER na FL/UL, que se opôs frontalmente, com argumentos do tipo:
- Aqui não estamos em Coimbra !...
- Pois não, santinho ! Mas talvez alguma coisa vá mudar num futuro de curto ou médio prazo…

§ Pelo que nos resta a UL.

a) As Facs. Letras e Ciências (1911 ss.), com o 'laicismo' que enformava os preexistentes Curso Superior de Letras e Escola Politécnica, pouco ou nada terão praticado do estilo; e só tardiamente (anos 40 / 50) lá se usarão hábitos talares.

b) Nada sei das Facs. Medicina e Farmácia (1911 ss., a segunda como Escola anexa – 1911/1915 –, Escola Superior – 1915/1921 e 1928/1968 – e Faculdade – 1921/ 1928 e 1968 ss.) .

c) Resta-nos a Fac. Direito. Escola formada com diplomados pela UC, em múltiplos casos por lentes com formatura, licenciatura, doutoramento e concursos até ao topo da carreira, só com lentes inteiramente formados intra-muros a partir do início dos anos 20 (Armindo Monteiro e Marcello Caetano foram os primeiros), natural será que esta Escola tenha mantido múltiplas práticas da ALMA MATER, v.g., e ainda hoje, o uso de hábito talar com borla-e-capelo por parte significativa dos lentes, alguns dos quais de gerações jovens.

E aqui se enquadra o problema dos funerais académicos, e particularmente o do Doutor Ruy de Albuquerque, ontem ocorrido.
Um antecedente particularmente visível ocorrera em 2004, com o funeral do Doutor António Luciano de Sousa Franco, na sequência de um episódio surrealista na lota de Matosinhos, no decurso da campanha eleitoral para as eleições europeias desse ano. O funeral saiu da Basílica da Estrela para o Cemitério dos Prazeres, com transmissão televisiva; acompanhamento a pé por uma multidão onde se destacavam lentes da FD/UL (e, mais pontualmente, de outras U's e Escolas), em traje académico. No cemitério usaram da palavra um representante da Família e o então Reitor da UL, Doutor José Barata Moura. A organização coube ao Presidente interino do CD da FD/UL, o lente de História do Direito Doutor Eduardo Vera-Cruz-Pinto.
O mesmo lente, agora Vice-Presidente do mesmo órgão, repetiu a função. E foi assim:

§ Nos Jerónimos, lugares marcados para: Autoridades (destaque para o PGR, Conselheiro Pinto Monteiro); Familiares; Lentes (peso, naturalmente, da FD/UL e da FD/UC, com presenças pontuais da FL/UL, da FL/UC e da FL/UP; destaque ainda para a presença: dos antigos Reitores da UC e da UL, Doutor Rui de Alarcão e Doutor José Barata Moura, respectivamente; de membros de anteriores equipas reitorais da UL; e do antigo Director da Biblioteca-Geral da UC, Doutor Aníbal Pinto de Castro); Estudantes; junto do féretro a borla doutoral do extinto.

§ Pequenos cortejos dos lentes se formaram à entrada e à saída do templo; no da saída foi a borla transportada pelo decano dos drs. em Direito da UL (e não pelo benjamim, como em Coimbra), Doutor Pedro Soares Martínez.

§ Um dos concelebrantes foi o lente de Filologia Clássica da FL/UL Rev. Doutor Aires Augusto Nascimento.

§ Nos Jerónimos, no termo da missa, um breve elogio académico foi proferido pelo Doutor Jorge Miranda, Presidente do CC da FD/UL.

§ À entrada dos Prazeres, junto à capela central do largo de entrada, intervenção do Reitor da UL, Doutor António Sampaio de Nóvoa.

§ A borla doutoral continuou bem visível, no percurso até ao jazigo da Família.

O que aqui fica – já o disse e repito – é muito mais um conjunto de reflexões, partidas do que tenho observado ao longo de anos, e ontem muito directamente, do que um fazer História ou um ditar de normas protocolares. Outros mais informados do que eu aqui poderão deixar os seus contributos enriquecedores.

NOTAS:

[1] O Código da Praxe da Academia do Porto aboliu há anos os colchetes das capas portuenses. – Má estreia ! – como diria o sr. Afonso da Maia. Imagine-se alguém num funeral em dia de chuva e vento: a ausência de colchetes é um despoletador do voo da capa para longe dos ombros… - Mas está no Código !... – dizia-me há anos um aluno. – Ó homem, nem que estivesse na Constituição ! Os Códigos podem ser alterados de acordo com regras que eles próprios, ou a legislação geral, prevejam. Mais complicado era se estivesse na Bíblia… - redargui eu.
[2] Os convites para celebrações religiosas, fúnebres ou não, na Capela de S. Miguel referem explicitamente: «Hábito: talar sem insígnias». Há uma excepção histórica: o funeral de Sidónio Pais (1918), onde nos surgem imagens de lentes trajando hábito talar com borla-e-capelo. Há quem pense – caso do Doutor Luís Reis Torgal, e com toda a pertinência – que não se trata de lentes de Coimbra – onde trajes e insígnias, suspensos em 1910, só retomarão ca. 1920 –, mas de lentes de Direito da UL, com carreira iniciada (e por vezes levada ao topo) na UC. Mas, e a ser de facto assim, uma interrogação cobra pertinência: será que antes de 1910 se usavam insígnias nos funerais dos lentes da UC (coisa que Sidónio também fora) ?
[3] Não seria coisa algo profana o uso de insígnias doutorais ('laicas') num espaço religioso, de algum modo concorrenciando as alfaias e o vestuário litúrgicos ?
[4] Estou a pensar no funeral de Franco (1975) e no uso de fraque com gravata e luvas pretas pelos dignitários civis do Estado espanhol, imagens essas patentes na série televisiva A Transição (TVE, 1993, com transmissão em Portugal no Canal História da TVCABO em 1999); sobre esta série cf. Armando Luís de Carvalho HOMEM; Maria Isabel N. Miguéns de Carvalho HOMEM, «Utilização (A) de registos fílmicos e testemunhos orais em História do tempo presente. Algumas considerações em torno da série televisiva “A transição” (TVE, 1993)», Anais da UAL/série História, V-VI (2000-2001), pp. 389-404.
[5] Vejam-se as imagens do funeral de Carmona (1951) patentes em [Alberto] Franco NOGUEIRA, História de Portugal – 1933:1974 [vol. apresentado como II Suplemento à História de Portugal, dir. Damião PERES, qualificativo este desaparecido das reeds.], Porto, Livraria Civilização, 1981, p. 160; os civis ostentam condecorações; os oficiais do Exército, de farda cinzenta, também, ainda que com um «fumo» preto no braço esquerdo…

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