segunda-feira, janeiro 08, 2007

A respeito do “caso Cristina Cruz”.

Caros amigos,

Choca-me a falta de seriedade intelectual e artística com que a questão “Cristina Cruz”é levantada pelos seus promotores e apologistas. Parece não haver limites para a pura provocação, a libertinagem, o despudor, a desonestidade intelectual e a manipulação de consciências.
Há alguns anos num colóquio organizado pela “Associação Cultural Coimbra Menina e Moça”, tive ocasião de abordar com alguma sistematicidade a (pseudo-) questão das mulheres na Canção de Coimbra, não irei aqui reproduzir nem resumir essas análises e reflexões. Apenas direi o seguinte:
Sabemos que há tradições musicais exclusivamente masculinas e femininas um pouco por todo o mundo e Portugal não é excepção, e que essas tradições entendidas e vivenciadas na perspectiva dos seus próprios quadros sócio-históricos, axiológicos e simbólicos não são, de modo algum, atentatórias da dignidade e condição feminina ou masculina. A questão do “sexismo”, portanto, não se coloca.
Sabemos também que o Fado-Canção de Coimbra, por génese sócio-histórica, na sua definição etno-praxísitca e mais ainda, no seu carácter estético (poético e musical) é um género artístico que, sem denunciar marcas de “falocentrismo” extremado e discriminatório, tem um carácter masculino, sendo que toda a tentativa para veicular o contrário não passa de uma contrafacção cultural, um logro etno-musical.
O facto da minha estimada mãe, por vezes, cantar o “Menino de oiro” do A. Resende, com uma linda voz de soprano spinto nas vindimas ou nas desfolhadas, não faz dela uma representante da Canção de Coimbra. De igual modo, parece-me evidente que o facto de Maria Teresa de Noronha ter cantado uma versão do “Fado Hilário”, dito “moderno”, ou de ter gravado canções de temática coimbrã não significa que tivesse qualquer pretensão a reivindicar-se cantora de Fado-Canção de Coimbra, assim como tão pouco o facto de Armando Goes incluir no seu reportório “Sou ceguinho de nascença…” ter dele feito dele um cantor de Lisboa.
Para as consciências “modernas”, a “tradição” como herança espiritual colectiva, dádiva de sentido e mundividência axiológica, deixou de ser auto-legitimada e, desse modo soberanamente legitimadora das práticas individuais. Mas se o exercício da crítica se substituiu à obediência e confiança nos arcanos tradicionais, então que os apologistas da “modernização” da cultura académica e da subversão da legitimidade tradicional façam uso, pleno e honesto, de inteligência e bom gosto!
Num pais democrático onde prepondera a liberdade de expressão e de manifestação cultural, todos somos livres de cantar, tocar, fazer espectáculos e gravar o que bem entendermos… Cada um respeita a autenticidade cultural e promove a qualidade artísitca na medida exacta da sua inteligência, virtuosismo, sensibilidade e pudor estético, ou da sua respectiva ausência.
Nas sociedades pós-modernas do capitalismo tardio, nas quais, precisamente, a Modernidade é levada ao paroxismo, não se vive a ressacralização do mundo e a revalorização ritual dos microcosmos tradicionais, mas antes a dissolução dos valores identitários e dos seus produtos culturais e simbólicos, numa perspectiva de apropriação globalizante, em nome do livre arbítrio absolutizado e do valor de mercado.
Como tive ocasião de dizer num certo colóquio, radicalizando a hipótese do absurdo deste fenómeno poético-musical, vivemos a era do “Fim/morte do fado-canção de Coimbra”, mas há quem dispute entre si os despojos, as remanescências degeneradas, para arredondar o fim do mês ou sustentar o ego canoro.

Saudações cordiais,

José Manuel Beato

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