sexta-feira, maio 20, 2005

A revolução do método e a perturbação das certezas

(reflexões sobre um trabalho GENEROSO)*

Por Armando Luís de Carvalho Homem **

Não será por certo um exagero afirmar que a edição do Método de Guitarra Portuguesa de Paulo Jorge Soares representa um ponto de não-retorno na didáctica do instrumento; e, consequentemente, nas condições culturais da execução do mesmo e da criação de temas nele executandos.
Talvez seja hoje relativamente pacífico designar o género musical Fado de Coimbra (ou, se preferirmos, e com mais rigor, Guitarra e Canto de Coimbra) como «folclore urbano»; e até aqui tudo bem. 'Reino', portanto, prosseguirão alguns, da transmissão oral, do 'amadorismo', da não-'codificação' de 'normas', da simplicidade dos processos de execução (presumida consequência da 'imaturidade' musical, cultural e pessoal dos «vinte anos»), etc., etc. E eis que, chegados que somos a este ponto, o 'cenário' já mudou: singular concepção agora do que seja folclore… Duvido que um antropólogo a assuma como sua. No fundo, um género musical como o que está em questão pressuporá necessariamente o tocar-se «de ouvido» ? Como funcionavam tradicionalmente as tunas, estudantis ou não ? (E eu saliento o tradicionalmente para me demarcar das discutíveis 'aculturações' da música estudantil espanhola que entre nós têm pululado nos últimos anos). Um estudante fica 'proibido' de continuar a criar musicalmente quando deixa de o ser? Ou quando entra na casa dos 30? Ou quando, porventura, evolui musical/culturalmente? Não representarão algumas concepções 'folcloristas' mais uma das manifestações da incapacidade de conceber o Canto e a Guitarra de Coimbra noutros moldes que não os da sua prática nos tempos (áureos?) das décadas de 20 e de 30 do nosso século?
Tomemos o problema da transmissão inter-geracional do reportório guitarrístico. Oralidade? Sim, e durante muito tempo até predominantemente. Mas de forma alguma exclusivamente. Do mesmo modo que não é a rua, o ar livre, a condição «sine qua non» do Canto e da Guitarra de (e em) Coimbra. Lembremos, em pleno século XIX, as récitas e saraus de fim de ano lectivo (de bastos traços, por exemplo, no In Illo Tempore). A Biblioteca-Geral da Universidade conserva um volumoso espólio de partituras de peças aí executadas, incluindo temas para guitarra. (Há 15 anos, um estudioso como Francisco Faria (1) e um executante como Jorge Gomes conheciam já esse espólio; para quando o seu estudo sistemático ?). Por alguma razão um Hermínio Menino gosta de insistir na circunstância de o género que é o nosso possuir (também) características de ópera académica. A rua e a oralidade, portanto e sem dúvida. Mas não só. Também o salão, o palco e (eventualmente) a partitura.
No nosso século, os registos discográficos poderão ter representado alguma coisa na aprendizagem dos jovens executantes. Mas, e durante muito tempo, o seu papel será forçosamente limitado. Aliás, seria interessante indagar até quando um gira-discos ou um gravador de fita terão sido, entre nós, «sinais exteriores de riqueza» avant-la-lettre… Por tudo isto, durante longas décadas a aprendizagem guitarrística terá sido algo 'sem rei nem roque' (nem método, por maioria de razão): um familiar mais idoso ou um colega mais velho que ensina 'as primeiras letras' do instrumento, a eventual observação de algum executante consagrado (neste caso já não será propriamente aprender 'de ouvido', mas antes 'à vista desarmada'), a intra-aprendizagem (quando não intra-emulação) no seio de um grupo instrumental, a pontual audição de algum registo gravado, etc., etc. Tudo, no fundo, precário e descontínuo. Tentativas de 'criar escola', de didacticizar o instrumento, não terão estado de todo ausentes, é certo (para alguns guitarristas poderia ser mesmo uma forma de aumentar a magra mesada estudantil); mas também não terão sido por demais numerosas. De algumas, inclusivamente, nos ficou memória:

— Flávio Rodrigues, o inspirado barbeiro-guitarrista, chegou a ensinar a sua arte maior;
— em múltiplas passagens da Conta-Corrente, Vergílio Ferreira, para além de evocar a sua própria experiência de guitarrista e de violinista da Tuna Académica, refere um executante de guitarra de geração anterior à sua, ao tempo já finalista ou recém-formado em Medicina, que chegou a dar-lhe algumas lições (2);
— os anos 50 e 60 conheceram a prática didáctica de António Portugal (na circunstância «Portugal dos pequenitos», segundo expressão que fez época), e da sua 'Escola' saíram nomes como Eduardo de Melo, Manuel Borralho ou Francisco Martins (e isto para só citar alguns dos seus mais assíduos colaboradores em gravações);
— mas somente a partir dos anos 70, e pela mão de um Jorge Gomes ou de um Fernando Monteiro, se terá verdadeiramente assistido a experiências didácticas continuadas (e realce-se o pioneirismo da Escola do Chiado).

Ou seja: Uma situação como a hoje vigente, compreendendo a existência de uma Secção de Fado (com múltiplas classes escolares) na Associação Académica, bem como o ensino da guitarra nalguns dos Organismos Autónomos (Tuna Académica, Coro Misto), era a bem dizer impensável há 25/30 anos atrás. Gerações e gerações de guitarristas ter-se-ão formado, como tal, pura e simplesmente na 'Escola dos self-made men', ouvindo aqui, olhando ali, 'cheirando' além, pontualmente recebendo de algum Mestre de circunstância (3), etc.
Em tais condições, torna-se quase pleonástico realçar a precaridade das fontes - entendendo aqui o conceito no seu mais amplo sentido, o de criação cultural de uma época susceptível de facultar o conhecimento dessa época por outras (subsequentes, como é óbvio) (4) - e a escassa fidedignidade de que em muitos casos se revestiu a transmissão do reportório guitarrístico. É evidente que nada disto é propiciador da salubridade vivencial de uma micro-sociedade como a Academia de Coimbra: o esconder do que se sabe, o ocultar de registos que se possuam, a transmissão defeituosa de ensinamentos, as rivalidades por vezes doentias entre grupos e/ou executantes, tudo isto (naturalmente agravado a partir do momento em que o amadorismo puro e duro 'passou à História' e os grupos começaram a cobrar cachet) terá sido de molde a tornar o ambiente, em múltiplas circunstâncias, bom para cortar à faca.
Assim, pelo que poderá representar de ponto de partida para uma alteração de comportamentos, não tenho qualquer dúvida em qualificar o presente trabalho de revolucionário e generoso. Paulo J. Soares partilha o que sabe, nisso seguindo claramente a lição de um dos guitarristas que considera seus Mestres, concretamente Octávio Sérgio: partilha com os alunos; partilha com executantes mais avançados, quiçá consagrados; partilha com todo e qualquer interessado no universo musical coimbrão, executante ou não de guitarra; partilha, finalmente, com estudiosos e melómanos em geral, e estes talvez venham a achar na guitarra e nos seus temas uma até agora insuspeitada fonte de interesse.
Superando, por outro lado, uma didáctica do pouco-mais-ou-menos, Paulo J. Soares é rigoroso: nos preceitos didácticos; na indicação da cronologia de criação dos temas que seleccionou; na identificação das fontes, sejam elas registos discográficos, sejam, eventualmente, versões revistas e/ou corrigidas pelos próprios autores das peças; sem exagero, Paulo J. Soares pratica o equivalente à clássica nota de rodapé da erudição universitária; o que até nem está mal, atendendo à geografia e à sociologia do instrumento.
Não se depreenda de quanto venho dizendo uma adesão a concepções puristas da guitarra de Coimbra, estilo dar exactamente as mesmas notas que o (por hipótese) Paredes, e 'armar um drama' quando problemático se torne saber se a nota X era originalmente dada «para dentro» ou «para fora». Só que uma execução de cunho pessoal exige o conhecimento de uma fonte, se não primária, pelo menos o mais próxima desse OMEGA que possível for. Exemplificando com 2 temas celebrizados por Artur Paredes: considero geniais as reinterpretações da Rapsódia de Canções, do próprio A. Paredes (por Jorge Tuna/Jorge Godinho/D. Moreirinhas) e dos Bailados do Minho, de Antero da Veiga (quer a versão A. P. Brojo/A. Portugal/R. Pato, anos 60 - em EP que inclui também as Variações em Lá menor de Jorge Morais (Xabregas), a Marcha em Fá de Artur Paredes e a Valsa em Sol de Flávio Rodrigues -, quer a versão Ernesto de Melo/António Andias/D. Moreirinhas, também anos 60 - em EP que inclui ainda a Valsa em Fá de Flávio Rodrigues, a Chula (arr. A. Portugal) e Morena de A. Paredes. Só que essas reinterpretações, para além da genialidade dos protagonistas, pressupõem o conhecimento da criação e/ou de toda uma tradição interpretativa subsequente. Arqueologia? Sim, segundo o conceito de M. Foucault. Não, se com isso quisermos significar a obsessiva fixação em desinteressantes antiqualhas; mas não se afigura este o caminho do Autor do presente Método.
Dito isto, só me resta acrescentar que a Obra de que ora sai o 1º volume bem merecerá a cuidada atenção de diferenciados públicos:
a) Os jovens estudiosos da guitarra antes de mais, eles que são o primeiro e essencial horizonte de expectativas do Autor.
b) Guitarristas mais experientes, mesmo que veteranos: terão aqui uma oportunidade inédita de confrontar um saber empírico com um saber metódico.
c) Interessados na «galáxia sonora» coimbrã, ou, mais genericamente, no universo das Tradições Académicas.
d) Finalmente (the last but not the least), este Método de modo algum deverá deixar de ser atentamente percorrido pelos Velhos do Restelo, comadreiros e fofoqueiros de todos os tempos, lugares e situações: acharão aqui matéria de sobejo para exercitar as suas zelosas línguas-de-prata! Mas com esses pode bem o Jójó. E eu também.

N O T A S

* A presente nótula pressupõe, da parte do seu autor, um posicionamento de certo modo dúplice relativamente ao universo estético-cultural tido em conta. Expliquemo-nos: filho que sou de Armando de Carvalho Homem (1923-1991), posso dizer que nasci e cresci a ouvir tocar guitarra; e desde os 13 anos que sou executante de viola de acompanhamento. Mas a minha participação pessoal em grupos acaba por ser não só temporalmente limitada, como descontínua: 1 ano, apenas, de passagem por Coimbra (1967/68), alguns anos de pertença ao Orfeão Universitário do Porto (1968/73); em momentos diversos, a colaboração e o convívio com guitarristas ou violas como, além de meu Pai, Octávio Sérgio, Manuel Antunes Guimarães ou Paulo Alão (sem esquecer os portuenses Alexandre Brandão, Mário Freitas, António Cunha Pereira ou Carlos Teixeira); e sem esquecer também uma atenção permanente a tudo quanto sejam registos discográficos ou fonográficos, ou a transmissões radiofónicas ou televisivas. O que isto possa comportar de enriquecimento em termos de intelecção é contrabalançado pela inevitável limitação vivencial, até porque há cerca de 8 anos que me encontro afastado de qualquer actividade musical regular. É pois a esta dupla luz que as linhas que se seguem deverão ser lidas, linhas saídas que são da pena de alguém ligado à galáxia musical coimbrã desde a mais remota infância, mas ao mesmo tempo crendo-se capaz de a encarar numa perspectiva distanciada que uma vivência mais longa e contínua forçosamente inviabilizaria.

** Professor de História Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto; professor convidado da Universidade Autónoma de Lisboa. Executante de viola de acompanhamento.

(1) Cf., de sua autoria, Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã ?, Coimbra, Comissão Municipal de Turismo, 1980. Cf. também Vera Lúcia Vouga, «Na Galáxia Sonora: Sobre o Fado de Coimbra», in Miscelânea de Estudos Lingüísticos, Filológicos e Literários in Memoriam Celso Cunha, ed. Cilene da Cunha Pereira e Paulo Roberto Dias Pereira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, pp. 751-62, e a bibliografia aí citada (também publ. em Revista da Faculdade de Letras (da Universidade do Porto). Línguas e Literaturas, II sér., VIII (1991), pp. 47-62).
(2) Pela cronologia poderá tratar-se de Abílio Moura. Armando de Carvalho Homem conheceu-o em meados dos anos 40, como médico interno dos Hospitais da Universidade. Era um bom executante de peças de Artur Paredes.
(3) Note-se que a muitos executantes nunca passou (nem passa) pela cabeça partilhar o seu saber (ou, em não poucos casos, aquilo que julgam saber). E não faltaram já também os intencionais transmissores de lapsos ou inexactidões; para depois poderem 'cortar na casaca', como é evidente.
(4) Os leitores do presente texto relevar-me-ão aqui a deformação profissional.

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