Na Passagem dos 50 anos da institucionalização do Traje Académico Feminino na Universidade de Coimbra, por António M. Nunes
No final da palestra proferida pelo Dr. Jorge Cravo sobre a Canção de Coimbra na década de 1980, no passado dia 28 de Junho, o ilustre advogado e guitarrista do grupo Toada Coimbrã, Dr. João Paulo Sousa, lamentou que em 2004 ninguém se lembrou de assinalar em Coimbra os 50 anos da oficialização do Trajo Estudantil Feminino.
Também eu lamento esta vergonhosa amnésia, meu caro João Paulo. Não caberia a instituições como a Direcção Geral da AAC, Conselho de Veteranos, Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra e suas delegações regionais, Museu Académico, Reitoria da UC (esta para mais a editar a aparatosa revista Rua Larga), comemorar condignamente tal acontecimento? E os docentes titulares da cadeira de História da Universidade de Coimbra, da FLUC estudaram ou publicaram alguma coisa?
Tanto património cultural e simbólico desperdiçado! Onde está a monografia? Onde está o catálogo ilustrado? Onde estão as entrevistas à protagonistas ainda vivas? Onde se fala dos organismos estudantis mistos que mais divulgaram esse trajo na década de 1950, particularmente TEUC, Coral das Letras e Coro Misto?
Não cabe seguramente a um antigo estudante de Coimbra, como eu, destituído de meios económicos, documentais e institucionais, suprir aquilo que é obrigação de quem gere os meios no próprio local. Mas, verdade seja dita, todas as santas vezes que alguém quer fazer alguma coisa com mais credibilidade sobre a História dos Costumes Estudantis de Coimbra, "aqui-del-rei quem tem o telefone do António Nunes". Quase apetece dizer, então as pessoas ocupam os cargos e depois não sabem fazer? "Coimbra, cidade do conhecimento" é só para figurar na placa da auto-estrada?
"Se bem me lembro", não falto à verdade se escrever que fui eu quem primeiramente por 1990 exarei em breve crónica notas sobre este esquecido assunto. Essas notas vinham na sequência de um projecto de Reconstuição/Exposição do Trajo Académico iniciado em 1987 pela Dra. Madalena Brás Teixeira, então Directora do Museu Nacional do Trajo. Este projecto falhou por falta de subsídios solicitados ao Secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, Pedro Santana Lopes. Tentei desesperadamente salvar o que se poderia salvar, sugerindo a transferência do projecto de reconstuição para o Museu Académico, com eventuais patrocínios da Comissão do 7º Centenário da Fundação da Universidade, presidida pelo Prof. Manuel Augusto Rodrigues. Também aqui tudo se gorou, tendo eu trabalhado inteiramente de graça entre 1987-1991 para o Museu Nacional do Traje e Museu Académico. Além do mais, ainda fui publicamente acusado no Diário de Coimbra de ter "roubado" tudo quanto penosamente investiguei a outro membro do grupo de trabalho. Compreenda-se que ainda hoje me custa falar do assunto "Trajo Académico".
De acordo com o levantamento documental que efectuei entre 1987-1990, apurou-se que entre a matrícula da 1ª aluna na UC em 1891 (Domitila de Carvalho) e o ano de 1954, não existiu na Academia de Coimbra qualquer uniforme estudantil feminino. De nada adiantou a publicação de legislação governamental republicana no Diário do Governo, de Novembro de 1924, tornando o uso da "Capa e Batina de modelo coimbrão" extensiva aos alunos e alunas de todos os liceus, escolas superiores e universidades. Aliás, o diploma governativo nem sequer especificava o que queria significar "modelo coimbrão tradicional", nem dizia se no caso das alunas estas usariam saia e batina, ou vestido e batina. Não dispomos, assim, de qualquer eco de um possível uso de trajo feminino em liceus ou universidades pelas décadas de 1920-1930.
Em Coimbra não foi usado seguramente, prevalecendo a "tradição" da colocação da Capa Académica preta sobre vestuário civil, eventualmente complementada por pasta com grelo/pasta com fitas (isto nada tem a ver com a tradição de as enfermeiras colocarem sobre a bata branca um capote escuro, argumento que foi usado pelas alunas da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra como factor de legitimação do uso do "trajo académico"). Entronca neste costume a tradição de as estudantes irem ao Baile de Gala das Faculdades com Capa sobre vestido de noite.
Só pelos finais da década de 1940 é que uma estudante de Letras, membro do TEUC, Ilda Pedrosa, apareceu na Imposição de Insígnias de Novembro de 1949 envergando Capa e Batina. Pedrosa vestia blusa branca, batina de modelo masculino, saia preta, capa talar, meias e sapatos pretos. Deu nas vistas, mas ninguém se escandalizou. Outras alunas envergaram o mesmo modelo entre 1949-1952, por aquilo que consegui apurar.
Contudo, não seria o conjunto descrito a ficar para a posteridade. Nas vésperas do Verão de 1951, as estudantes do TEUC começaram a preparar a digressão ao Brasil. Alguém alvitrou que era mais prático e barato levar um conjunto de tipo uniforme, por forma a evitar malas cheias de vestidos de gala. Ficou assente que o "uniforme", idêntico para todas, seria constituído por Capa preta talar, fato com casaco preto curto e cintado, saia de macho posterior, busa branca, laçarote preto, sapato preto e meia cor de carne (facultativo).
Estamos perante a invenção de uma tradição feminina, realizada à margem da Reitoria (lembre-se que o Reitor, Maximino Correia integrou a digressão ao Brasil e nada disse quanto à invenção) e do Conselho de Veteranos. Parece que o figurino que acabamos de descrever se foi usando espontaneamente até 1954. Logo a seguir à Queima das Fitas de Maio de 1954, o Conselho de Veteranos (integralmente masculino), presidido pelo Dux João Nata, deliberou por mais de 50% de votos a institucionalização do Trajo Académico Feminino, seguindo o figurino proposto em 1951 pelas associadas do TEUC. Que se saiba a deliberação não foi antecedida de qualquer debate. A normativização pegou e em Novembro seguinte, as alunas quartanistas e quintanistas apareceram esmagadoramente de Capa e Batina nas cerimónias de Imposição de Insígnias e latadas das Faculdades.
Não se tratava de uma deliberação pró-regime, pese embora o facto de ter sido tomada com larga margem de autonomia corporativa por um orgão que dentro em breve se veria confundido com o autoritarismo do regime.
A revista FLAMA, Ano XI, Nº 353, de 10 de Dezembro de 1954, transformou o assunto em motivo sensasionalista de capa, numa altura em que a feminilização da Academia de Coimbra se afirmava como tendência irreversível.
Nunca consegui obter o Decretus do Conselho de Veteranos, promulgado em 1954, mas o seu conteúdo foi positivado sem alterações de fundo no Código da Praxe de 1 de Março de 1957, Artigo 252º, supenso em 1969 e posto a vigorar "provisoriamente" durante as décadas de 1980-1990.
Há quem discuta se o figuro aqui referido teve a sua origem na Universidade de Coimbra, ou se terá surgido anteriormemte na Universidade do Porto, tendo em conta o facto de o Orfeon da UP ter sido transformado num organismo misto antes de 1950. Não disponho de informes sobre esta questão, que talvez possa ser esclarecida pelo Doutor Armando Luís de Carvalho Homem.
Posso dizer, sem com isto pretender ofender ninguém (aliás, o meu tempo já la vai), que não aprecio nem nunca apreciei o "Fato-Saia-Casaco" das estudantas tal qual o conheci a partir de Outubro de 1985. Cheguei mesmo a tentar por diversas ocasiões abrir o assunto a debate, tendo em conta que muitas colegas minhas gostariam de usar colete, pareciam dispostas a ponderar uma reforma estética a partir da Batina (que não do vulgar casaco preto) e muitíssimas reclamavam o direito ao uso da calça preta comprida no Inverno.
Claro que nada se discutiu e nada se permitiu reformar, a fazer fé na leitura do Código da Praxe, com data de 2001.
No final da palestra proferida pelo Dr. Jorge Cravo sobre a Canção de Coimbra na década de 1980, no passado dia 28 de Junho, o ilustre advogado e guitarrista do grupo Toada Coimbrã, Dr. João Paulo Sousa, lamentou que em 2004 ninguém se lembrou de assinalar em Coimbra os 50 anos da oficialização do Trajo Estudantil Feminino.
Também eu lamento esta vergonhosa amnésia, meu caro João Paulo. Não caberia a instituições como a Direcção Geral da AAC, Conselho de Veteranos, Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra e suas delegações regionais, Museu Académico, Reitoria da UC (esta para mais a editar a aparatosa revista Rua Larga), comemorar condignamente tal acontecimento? E os docentes titulares da cadeira de História da Universidade de Coimbra, da FLUC estudaram ou publicaram alguma coisa?
Tanto património cultural e simbólico desperdiçado! Onde está a monografia? Onde está o catálogo ilustrado? Onde estão as entrevistas à protagonistas ainda vivas? Onde se fala dos organismos estudantis mistos que mais divulgaram esse trajo na década de 1950, particularmente TEUC, Coral das Letras e Coro Misto?
Não cabe seguramente a um antigo estudante de Coimbra, como eu, destituído de meios económicos, documentais e institucionais, suprir aquilo que é obrigação de quem gere os meios no próprio local. Mas, verdade seja dita, todas as santas vezes que alguém quer fazer alguma coisa com mais credibilidade sobre a História dos Costumes Estudantis de Coimbra, "aqui-del-rei quem tem o telefone do António Nunes". Quase apetece dizer, então as pessoas ocupam os cargos e depois não sabem fazer? "Coimbra, cidade do conhecimento" é só para figurar na placa da auto-estrada?
"Se bem me lembro", não falto à verdade se escrever que fui eu quem primeiramente por 1990 exarei em breve crónica notas sobre este esquecido assunto. Essas notas vinham na sequência de um projecto de Reconstuição/Exposição do Trajo Académico iniciado em 1987 pela Dra. Madalena Brás Teixeira, então Directora do Museu Nacional do Trajo. Este projecto falhou por falta de subsídios solicitados ao Secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, Pedro Santana Lopes. Tentei desesperadamente salvar o que se poderia salvar, sugerindo a transferência do projecto de reconstuição para o Museu Académico, com eventuais patrocínios da Comissão do 7º Centenário da Fundação da Universidade, presidida pelo Prof. Manuel Augusto Rodrigues. Também aqui tudo se gorou, tendo eu trabalhado inteiramente de graça entre 1987-1991 para o Museu Nacional do Traje e Museu Académico. Além do mais, ainda fui publicamente acusado no Diário de Coimbra de ter "roubado" tudo quanto penosamente investiguei a outro membro do grupo de trabalho. Compreenda-se que ainda hoje me custa falar do assunto "Trajo Académico".
De acordo com o levantamento documental que efectuei entre 1987-1990, apurou-se que entre a matrícula da 1ª aluna na UC em 1891 (Domitila de Carvalho) e o ano de 1954, não existiu na Academia de Coimbra qualquer uniforme estudantil feminino. De nada adiantou a publicação de legislação governamental republicana no Diário do Governo, de Novembro de 1924, tornando o uso da "Capa e Batina de modelo coimbrão" extensiva aos alunos e alunas de todos os liceus, escolas superiores e universidades. Aliás, o diploma governativo nem sequer especificava o que queria significar "modelo coimbrão tradicional", nem dizia se no caso das alunas estas usariam saia e batina, ou vestido e batina. Não dispomos, assim, de qualquer eco de um possível uso de trajo feminino em liceus ou universidades pelas décadas de 1920-1930.
Em Coimbra não foi usado seguramente, prevalecendo a "tradição" da colocação da Capa Académica preta sobre vestuário civil, eventualmente complementada por pasta com grelo/pasta com fitas (isto nada tem a ver com a tradição de as enfermeiras colocarem sobre a bata branca um capote escuro, argumento que foi usado pelas alunas da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra como factor de legitimação do uso do "trajo académico"). Entronca neste costume a tradição de as estudantes irem ao Baile de Gala das Faculdades com Capa sobre vestido de noite.
Só pelos finais da década de 1940 é que uma estudante de Letras, membro do TEUC, Ilda Pedrosa, apareceu na Imposição de Insígnias de Novembro de 1949 envergando Capa e Batina. Pedrosa vestia blusa branca, batina de modelo masculino, saia preta, capa talar, meias e sapatos pretos. Deu nas vistas, mas ninguém se escandalizou. Outras alunas envergaram o mesmo modelo entre 1949-1952, por aquilo que consegui apurar.
Contudo, não seria o conjunto descrito a ficar para a posteridade. Nas vésperas do Verão de 1951, as estudantes do TEUC começaram a preparar a digressão ao Brasil. Alguém alvitrou que era mais prático e barato levar um conjunto de tipo uniforme, por forma a evitar malas cheias de vestidos de gala. Ficou assente que o "uniforme", idêntico para todas, seria constituído por Capa preta talar, fato com casaco preto curto e cintado, saia de macho posterior, busa branca, laçarote preto, sapato preto e meia cor de carne (facultativo).
Estamos perante a invenção de uma tradição feminina, realizada à margem da Reitoria (lembre-se que o Reitor, Maximino Correia integrou a digressão ao Brasil e nada disse quanto à invenção) e do Conselho de Veteranos. Parece que o figurino que acabamos de descrever se foi usando espontaneamente até 1954. Logo a seguir à Queima das Fitas de Maio de 1954, o Conselho de Veteranos (integralmente masculino), presidido pelo Dux João Nata, deliberou por mais de 50% de votos a institucionalização do Trajo Académico Feminino, seguindo o figurino proposto em 1951 pelas associadas do TEUC. Que se saiba a deliberação não foi antecedida de qualquer debate. A normativização pegou e em Novembro seguinte, as alunas quartanistas e quintanistas apareceram esmagadoramente de Capa e Batina nas cerimónias de Imposição de Insígnias e latadas das Faculdades.
Não se tratava de uma deliberação pró-regime, pese embora o facto de ter sido tomada com larga margem de autonomia corporativa por um orgão que dentro em breve se veria confundido com o autoritarismo do regime.
A revista FLAMA, Ano XI, Nº 353, de 10 de Dezembro de 1954, transformou o assunto em motivo sensasionalista de capa, numa altura em que a feminilização da Academia de Coimbra se afirmava como tendência irreversível.
Nunca consegui obter o Decretus do Conselho de Veteranos, promulgado em 1954, mas o seu conteúdo foi positivado sem alterações de fundo no Código da Praxe de 1 de Março de 1957, Artigo 252º, supenso em 1969 e posto a vigorar "provisoriamente" durante as décadas de 1980-1990.
Há quem discuta se o figuro aqui referido teve a sua origem na Universidade de Coimbra, ou se terá surgido anteriormemte na Universidade do Porto, tendo em conta o facto de o Orfeon da UP ter sido transformado num organismo misto antes de 1950. Não disponho de informes sobre esta questão, que talvez possa ser esclarecida pelo Doutor Armando Luís de Carvalho Homem.
Posso dizer, sem com isto pretender ofender ninguém (aliás, o meu tempo já la vai), que não aprecio nem nunca apreciei o "Fato-Saia-Casaco" das estudantas tal qual o conheci a partir de Outubro de 1985. Cheguei mesmo a tentar por diversas ocasiões abrir o assunto a debate, tendo em conta que muitas colegas minhas gostariam de usar colete, pareciam dispostas a ponderar uma reforma estética a partir da Batina (que não do vulgar casaco preto) e muitíssimas reclamavam o direito ao uso da calça preta comprida no Inverno.
Claro que nada se discutiu e nada se permitiu reformar, a fazer fé na leitura do Código da Praxe, com data de 2001.
<< Home