domingo, novembro 20, 2005


João dos Santos Couceiroevocação de um ilustre músico conimbricense, no centenário da sua morte

Comunicação apresentada por Flávio Pinho nas III Jornadas de Temática Musical, organizadas pela Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra
Coimbra, 4 de Novembro de 2005

Faleceu há cem anos, e dificilmente se pode ainda avaliar a sua importância para a música portuguesa e brasileira do século XIX. Violinista virtuose, construtor de instrumentos de cordas premiado nas exposições universais de Filadélfia, Paris e Saint Louis, renomado professor de violino e de bandolim, e maestro de orquestras e estudantinas no Brasil —em todos estes papéis parece ter-se destacado, a julgar pelos parcos documentos que constituem a base desta comunicação.
Na verdade, é pouco, mas significativo, o que conhecemos de momento sobre este músico. As principais fontes são os jornais contemporâneos O Conimbricense e Tribuna Popular (este, também de Coimbra). Citadas nestes periódicos, temos diversas fontes indirectas brasileiras, a que farei referência. Em relação ao Brasil, tem-me sido especialmente proveitosa a troca de informações, pela Internet, com o bandolinista Paulo Sá, que em Março deste ano concluiu na Universidade Federal do Rio de Janeiro o seu doutoramento, com uma dissertação intitulada A Escola Italiana de bandolim e sua aplicação no choro[i]. Paulo Sá possui o único bandolim que conheço fabricado por Couceiro. É de tipo napolitano, ou seja, de fundo abaulado. No interior, além da referência à "Fábrica de rabecas—Rabeca de ouro", encontra-se o nome de "J. dos Santos Couceiro" e a data de 1904.

João dos Santos Couceiro é natural de Coimbra, onde terá nascido em meados do século XIX. Filho de um conhecido violeiro desta cidade, emigrou para o Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro, em 1871, "já exercitado na arte de fabricar instrumentos de cordas. Não só fabricava: tocava-os, também; e como violinista deixara na terra natal tantas saudades quantas excitara como cidadão."[ii] Diz-nos O Conimbricense, pela pena do seu director Joaquim Martins de Carvalho, amigo de Couceiro, que este último havia "sido premiado com a medalha de prata na Exposição Distrital de Coimbra em 1869, por uma viola portuguesa e outra francesa que havia construído e ali expôs"[iii].
Em Portugal, segundo a mesma fonte, "o sr. Couceiro apenas havia feito violas, violões e guitarras"; mas, logo em 1872, apresenta na exposição do Rio de Janeiro "uma magnífica rabeca de dificílimo fabrico, que foi sumamente apreciada, sendo pelos competentes considerada de voz excelente e feita com todo o esmero artístico"[iv] .
No Brasil, destaca-se ainda como violinista —fazendo parte de diversas orquestras e actuando como concertista—, professor de violino e, mais tarde, de bandolim, e como maestro de orquestras e estudantinas.
A sua razão de viver —e. como veremos mais adiante, de morrer— é a fábrica de instrumentos que funda no Rio de Janeiro, à rua da Carioca, nº 42, com o nome de A Rabeca de ouro. Sobre este estabelecimento, pode ler-se no O Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, citado pela Tribuna Popular em 1888[v] " Há cerca de dezasseis anos apenas se fabricavam no Rio de Janeiro as violas conhecidas pelo nome de violas da roça e alguns violões, se bem que em diminutíssimo numero. João dos Santos Couceiro, filho de um fabricante notável de Coimbra, veio para aqui estabelecer-se e, caminhando lenta, mas metodicamente, chegou a colocar o seu estabelecimento A rebeca de ouro na ordem dos de primeira classe, no seu género. Têm-se ali fabricado rebecas, em que hão tocado alguns dos nossos mais notáveis violinistas e, no que respeita guitarras, violões, bandolins, são os de aqui tão bons como os que nos vêm do estrangeiro. Entre os instrumentos agora expostos neste estabelecimento, vimos violões e guitarras delicadamente marchetadas, e nos quais se nota a invenção da barra harmónica, espécie de vara de aço que aumenta a ressonância prolongando infinitamente o som. Vimos também uma rebeca surda, completamente diferente na conformação da rebeca surda americana de Charles F. Alberts, e não acarretando os vícios de posição que esta produz, pela completa diferença de forma do violinio (sic) normal. Com este violino evita-se o enfado do violinista principiante e o dos respectivos vizinhos, inutilizando assim a velha máxima: «Deus te livre de inimigos e de principiantes de rebeca ao pé da porta!» Mostrou-nos ainda o sr. Couceiro as surdinas harmónicas, invenção do nosso falecido Bernardelli e que hoje são adoptadas por todos os tocadores de rebeca, e alguns bandolins de primeiro gosto. Nas oficinas do sr. Couceiro trabalham hoje oito operários, todos ensinados pelo chefe do estabelecimento que, além de fabricante notável, é artista músico de muito talento.»"
À data da sua morte, em 1905, e segundo Joaquim Martins de Carvalho, "o seu importante estabelecimento de instrumentos músicos, com oficina anexa, era o primeiro do seu género na capital do Brazil."[vi] .

Curiosamente, o que Couceiro mais produziu "até 1888 foram as chamadas "violas da roça", chegando a satisfazer encomendas de 25 dúzias por mês. Iam para os eitos suavizar com a sua melodia as amarguras da escravidão. Por uma excentricidade curiosa, a Liberdade dispensou a Música: depois da abolição da escravatura a roça não deu mais consumo às violas de pinho branco."[vii]
Havia então no Rio de Janeiro o hábito de músicos profissionais e amadores se reunirem para convívio nas casas de música. A Rabeca de ouro era das mais frequentadas. Por ali passou regularmente o maior compositor brasileiro da época, António Carlos Gomes. Como figura numa biografia deste compositor, as suas andanças no Rio de Janeiro passavam por "visitar a “Rebeca de Ouro”, a mais famosa loja de instrumentos musicais de João dos Santos Couceiro, regente de orquestras nos concertos da Ópera Nacional"[viii].
Na Exposição Universal de Filadélfia de 1876, Couceiro é premiado com uma medalha de prata por um violino de sua factura, fabricado com madeiras brasileiras. O instrumento é elogiado pelos maiores violinistas brasileiros do tempo. Mais prémios em exposições naquele país em 1876 e 1884, e nas Exposições Universais de Paris de 1889 e de Saint Louis (E.U.A.) de 1904.
Em 1879, fabrica uma harpa eólia e constrói e propaga os cavaletes móveis de Dien.
Em 1895, apresenta a sua produção na Exposição Industrial do Rio de Janeiro. Do livro Exposição Internacional de 1895 no Rio de Janeiro[ix], da autoria de A. Lopes Cardoso, consta o seguinte sobre a sua vitrine: "«Ali encontram-se, artisticamente grupados, bandolins, violões, bandurras, guitarras portuguesas, rabecas com os respectivos arcos, e a eternizada viola, tão querida pelos nossos caipiras e sertanejos […]. Esses instrumentos, como todos os da sua oficina, fabrica-os o sr. Couceiro com o jacarandá, o cedro e a peroba ravessa do paiz. […] As tábuas de harmonia, que, às vezes, são do nosso cedro, fabrica-as ele, para maior volume do som, com o pinho veneziano, única madeira estrangeira empregada na oficina. Querendo o sr. Couceiro dar mais vigor ao som do bandolim e torná-lo mais estridente, ideiou uma vara de metal, produtora desse desejado efeito, e introduziu-o na concavidade do belíssimo instrumento. É admirável essa exposição de instrumentos! Nada de mais perfeito, de mais elegante e de mais rico se pode pedir em artefactos de tal ordem, a menos que não fossem de ouro e marchetados de pedras preciosas! São verdadeiras jóias musicais, que nenhuma fábrica estrangeira conseguirá excedê-las em lindeza e elegância.»"

Segundo Ferreira da Rosa[x], por volta de 1884 Couceiro abandonara o violino, seu instrumento favorito, para se entregar "à cultura do bandolim, cujas vozes se prestam bem a interpretar os sentimentos da alma artista." A este propósito, diz ainda que "a Fábrica desde então tem produzido instrumentos desses, cada qual mais primoroso. Empregando madeiras nacionais (excepto para as tampas harmónicas), introduzindo aperfeiçoamentos notáveis, Santos Couceiro tem exposto os mais formosos bandolins, cujos preços variam de 40$ a 800$. Tenho-os visto com marchetados policrómicos, floreados de madrepérola, e, até, com embutidos de ouro e prata."
Couceiro dirige pessoalmente todos os trabalhos do seu estabelecimento comercial. Ensina bandolim, sobretudo a raparigas da alta sociedade carioca. Por volta de 1890, e nos anos seguintes, em diversas festas de caridade, dirige uma estudantina constituída maioritariamente por mulheres — tendo chegado a reunir 30, 40 ou mais discípulas. Escreve Lopes Cardoso[xi] a este propósito: «O estabelecimento do sr. Couceiro denominado —Rabeca de Ouro— contribuiu grandemente para que se vulgarizasse o gosto e o apreço pelo bandolim, mavioso e sonoro instrumento da moda, que é recebido com aplauso e particular afago, nos salões da melhor sociedade do Rio de Janeiro, Paris, Londres, Berlim e Lisboa.»
Já Ferreira da Rosa[xii] caracteriza nestes termos a sua intensa actividade musical: "Generoso, activo, afável e modestíssimo, João dos Santos Couceiro reparte-se entre a oficina e as discípulas, cumprindo rigorosamente uma escala de tempo que formou para que não sofra discrepâncias a sua actividade; mais ainda: encontra horas para organizar festas de beneficência, estimulando as brasileiras confiadas à sua educação artística, ensaiando-as em conjunto, e produzindo com esses bandolins finamente dedilhados os efeitos mais admiráveis, as harmonias mais surpreendentes."
Em 1889, O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro[xiii] descreve uma dessas estudantinas, mencionando o nome e instrumento dos seus componentes. Os bandolins eram 10, todos tocados por mulheres. Duas bandolas, tocadas por homens. Violões, 4, sendo um tocado por uma mulher. 3 violoncelistas homens; 2 tocadores de castanholas, e uma tocadora de pandeiro. 22 instrumentistas ao todo, sendo 12 mulheres e 10 homens.

Outra faceta importante da vida de Couceiro é a filantropia. Já em Coimbra colaborara com a Sociedade de Instrução Popular, estabelecida no Colégio da Graça[xiv]. No Brasil, vai instituir em 1888 um prémio de animação para o aluno mais distinto da aula de rabeca do Conservatório de Música, e dirigir diversos concertos de beneficência[xv].
Couceiro terá voltado várias vezes a Portugal. A última foi em 1900, quando passou por Coimbra com um filho seu. Viajou com ele pela Europa, detendo-se em Paris para visitar a Exposição Universal desse ano.
Passando vida desafogada, o nosso compatriota é profundamente abalado em 1905 pela perspectiva de perder "a menina dos seus olhos": a sua casa de música, expropriada pela prefeitura para prolongamento de uma rua. Põe termo à vida a 3 de Abril de 1905, no cemitério de S. Francisco Xavier, na ponte do Cajú, Rio de Janeiro. A 24 do mesmo mês, o seu velho amigo Joaquim Martins de Carvalho lavra-lhe o elogio fúnebre num extenso artigo publicado n' O Conimbricense. Antes de traçar uma completa biografia, refere que "João dos Santos Couceiro era um dos membros mais distintos e considerados da colónia portuguesa no Rio de Janeiro, gozando ali dos melhores créditos não só pelo seu carácter, mas também pela sua aptidão quer como industrial, quer como professor de música."
Pelo que fica exposto, é de toda a justiça evocar hoje, aqui, a memória deste ilustre conimbricense. O que hoje conhecemos dele e da sua obra, que é pouco, leva-nos a suspeitar que muito mais há para descobrir, tanto em Portugal como, sobretudo, no Brasil. Como suspeitamos que esses dados lançarão nova luz sobre muitos aspectos da música de ambos os países, nesse século XIX tão próximo e, no que diz respeito a esta arte, ainda tão mal conhecido. João dos Santos Couceiro, onde estiver, pode ter a certeza de que, agora, não o vamos deixar esquecido.

Bibliografia:

O Conimbricense, Coimbra; nº 4431, 19/2/1890; nº 5266, 3/5/1898; nº 5271, 21/5/1898; nº 5272, 24/5/1898; nº 5547, 15/1/1901; 24/12/1901; nº 5989, 22/4/1905.
Tribuna Popular, nº 3371; Coimbra, 16/6/1888.

Site:

[Carlos Gomes] (http://www2.uol.com.br/spimagem/cg2_1.html).
(em 3/9/2002)

[i] O autor defende aí a tese da influência da técnica bandolinística italiana, designadamente ao nível da utilização do plectro, ou "palheta", no género brasileiro do choro.
[ii] Ferreira da Rosa, Rio de Janeiro em 1900, livro comemorativo do 4º centenário do descobrimento do Brasil; 2ª edição; citado em O Conimbricense, nº 5547, 15/1/1901.
[iii] O Conimbricense, nº 5989, 22/4/1905, pág. 2.
[iv] Idem.
[v] Nº 3371; Coimbra, 16/6/1888.
[vi] O Conimbricense, nº cit., pág. 2.
[vii] Ferreira da Rosa, op. cit., e jornal citado.
[viii] http://www2.uol.com.br/spimagem/cg2_1.html; consultado em 2002.
[ix] Cit. in O Conimbricense, nº s 5271-5272, 21/5/1898 e 24/5/1898).
[x] Op. cit., e jornal citado.
[xi] Op. cit., e jornal citado.
[xii] Op. cit., e jornal citado.
[xiii] Cit in O Conimbricense, nº 4431, 19/2/1890.
[xiv] O Conimbricense, nº 5266, 3/5/1898.
[xv][xv] Ferreira da Rosa, op. cit.

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