MÚSICA TRADICIONAL DE COIMBRA
(TEMAS DA CANÇÃO DE COIMBRA)
Uma explicação: o plano deste cancioneiro literário musical foi apresentado ao Dr. Mário Nunes, Vereador do Pelouro da Cultura da CMC em 27 de Agosto de 2003, nele figurando como técnico musical a convidar o Prof. José dos Santos Paulo. Porém, não foi possível chegar a um entendimento com o Prof. José Paulo e em Março de 2004 todo o projecto inicial sofreu transformações e adaptações por forma a ser incluído do projecto de candidatura da Canção de Coimbra e Partimónio da UNESCO. Entre Março e Maio de 2004 foram envidados infrutíferos esforços para agregar ao projecto os músicos José Firmino, Tobias Cardoso e António Madeira Alves. A celebração de um protocolo entre a Câmara Municipal de Coimbra e a Reitoria da Universidade de Coimbra em nada contribuiu para fazer arrancar o projecto. Todos os trabalhos projectados e calendarizados ficaram parados entre Maio de 2004 e as eleições municipais de Outubro de 2005, para grande amargura do Dr. Jorge Cravo e minha. A falta de vontade era tão ostensiva que a páginas tantas mais parecia que o autor deste projecto e o precioso colaborador, Coronel José Anjos de Carvalho, estavam a mendigar uma esmola editorial ao município coimbrão. O deixa andar, ditou o afastamento e o desinteresse. Edita-se on line o plano então elaborado, o qual estava inteiramente pronto a figurar como prefácio do 1º volume do cancioneiro das canções musicais estróficas.
I – Coordenação da obra
Coordenador Geral: Mestre António Manuel Nunes
Musicólogo: ?
Consultor e Colaborador Principal: Coronel José Anjos de Carvalho
Editor: Câmara Municipal de Coimbra
II – Um Património Cultural digno de preservação
Cidades dotadas de núcleo histórico apetrechado com edifícios religiosos, militares, escolares, jardins, mancha florestal e espaços museológicos, constituem mais valias que importa conhecer, estudar e preservar. Além de um Património Monumental deveras significativo – citemos o Paço das Escolas, a Sé Velha, a Cadeia de planta panótica oitocentista, a Igreja do Mosteiro de Santa Cruz, a última elevada à categoria de Panteão Nacional em 2003 – Coimbra é detentora de invejável palmarés no domínio da produção cultural espiritual, podendo referir-se a longa e persistente tradição dos grupos de teatro popular e académico, a gastronomia, os trajos etnográficos recuperados por grupos folclóricos, feiras, manifestações perdidas como a Queima do Judas e a Espera dos Reis, inúmeras romarias, arruadas de gaiteiros, os festejos da Rainha Santa Isabel, as serenatas fluviais das tricanas e dos futricas, a romaria de Santo António dos Olivais, os trabalhos artesanais que iam desde os brinquedos e faianças aos ferros forjados, as decantadas Fogueiras de São João, as marchas populares dos bairros, a celebração do Dia da Espiga, as idas à Fonte do Castanheiro em noites de São João. E claro, os espectáculos, cortejos, rituais e serenatas académicas.
Com alguma razão se mimoseou Coimbra com o epíteto de Cidade das Canções. Epíteto que encerra algumas perplexidades. A Música Tradicional de Coimbra, duramente marginalizado por musicólogos como Armando Leça e Mário de Sampaio Ribeiro, nunca mereceu qualquer interesse digno de vulto da parte dos folcloristas. O folclore conimbricense não passaria de um embuste, porquanto baseado em modas e danças de autores conhecidos. Coimbra pagou bem caro o preconceito, figurando ainda hoje à margem das recolhas nacionais operadas no século XX, cancioneiros da especialidade, manuais escolares de 5º e 6º ano. No pior dos casos, quando algum recolector musical fala de Coimbra, fá-lo apenas para mencionar uma “guitarrada”, um qualquer “fado”, ou mesmo versões estropiadas do “Vira de Coimbra” produzidas em estúdio (para tanto, pouco importando se estamos em presença do Vira de Coimbra, do Vira de Quatro ou de uma qualquer variante dos povoados vizinhos).
Este lastimoso estado de coisas tem vindo a mudar muito lentamente. Em 1987, a propósito das Primeiras Jornadas Sobre a Alta de Coimbra, dinamizadas pelo Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, o então director artístico do Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal, aproveitou para denunciar o preconceito e a ignorância reinantes, para tanto trazendo ao palco cordofones, afinações, toques, modas e danças que causaram surpresa. Causaram surpresa aos jovens, pois os congressistas mais idosos logo bateram palmas e trautearam espécimes bem conhecidos como o Vira de Coimbra, o Ai Gabriel, a Giga e o Manuel Ceguinho.
Quer isto significar que o conceito de património se tem vindo a alargar, lançando olhares e curiosidades sobre mundos ocultos. Na transição do século XX para o século XXI assiste-se a uma deslocação e alargamento das convencionais fronteiras do conceito de património. Lado a lado com o mosteiro, o castelo, a biblioteca, o museu, entram em cena a gastronomia, as danças, os trajos etnográficos, os instrumentos musicais, o ambiente, a memória oral.
Abandona-se a visão urbana, elitista e monumentalista do património. É mais ou menos consensual que cada comunidade tem direito ao SEU Património Cultural. Mas convenhamos, nem todas as comunidades são detentoras de castelos medievais, igrejas góticas, “conventos de mafras”. As tradicionais festas açorianas do Divino Espírito Santo, com a sua parafrenália de estandartes, novenários, foliões, imperadores, coroas e coroações, banquetes comunitários, serão menos Bem Cultural do que um convento? Esta constatação leva-nos a problemas fulcrais: “preservar o quê e como”?, “quando é que um Bem ganha a qualidade de património”? (cf. O património local e regional, Lisboa, Ministério da Educação, 1998, págs. 16 e 25). Sem pretendermos fazer doutrina sobre matérias tão controversas, enunciaríamos os seguintes vectores: a) nas comunidades menos apetrechadas com património monumental material, a aposta difererenciadora passa necessariamente pela valorização do Património Imaterial; b) há produções culturais comuns a vários municípios, o que impede que determinado município em concreto se reclame legítimo representante de tal bem. São exemplos: a Viola da Terra, comum a todas as ilhas dos Açores; a Viola Braguesa, utilizada no Minho e Douro Litoral; a Chanfana, prato que se alarga aos concelhos de Coimbra, Condeixa, Penela, Arganil, Miranda; c) existem artefactos e práticas culturais específicas de determinadas localidades. É o caso singular da Canção de Coimbra, nascida e consolidada na Cidade de Coimbra, sem representação de vulto nas freguesias rurais do Concelho de Coimbra; d) nas comunidades onde já foi concretizado um longo e sólido trabalho de preservação do Património Material, torna-se pertinente estudar e preservar o Património Espiritual. Coimbra tem sobejas motivações para apostar a fundo num projecto desta natureza:
-O plano governamental de extensas demolições levado a cabo na Alta de Coimbra pelas décadas de 1940-1950 colocou em perigo e fez desaparecer práticas culturais como as Fogueiras de São João e as Serenatas de Cortejamento, na medida em que desarticulou as vivências tradiconais e operou a desertificação forçada do tecido urbano. Os espaços de sociabilidade mais afectados correspondem à demolição substancial do antigo Bairro Latino/Bairro Salatina, espaços onde emergiu e se consolidou a Canção de Coimbra a partir do primeiro quartel do século XIX;
-A proibição das Serenatas de Cortejamento durante a Primeira República e o Estado Novo, conduziu à rarefacção de práticas culturais e artísticas espontâneas, que passaram a ser vistas como fenómenos de perturbação da ordem nocturna;
-O crescente grau de poluição sonora urbana e a evolução dos gostos ditou o fim das antigas serenatas fluviais;
-As crises estudantis da década de 1960 baniram por completo a Canção de Coimbra dos horizontes culturais da cidade e da Universidade de Coimbra durante um longo período (1969-1978);
-a evolução e massificação dos gostos musicais juvenis tem-se vindo a traduzir na diminuição do número de potenciais cultores;
-O grosso dos registos fonográficos efectuados entre 1904 e 1930 esgotou completamente, pelo que se tornou impossível aos jovens cultores o acesso às fontes antigas, com manifesto prejuízo pedagógico e didáctico das escolas de formação de aprendizes;
-Grande parte dos registos fonográficos levados a cabo entre 1953-1973 também esgotou completamente sem terem conhecido qualquer esforço de reedição;
-Os registos sonoros em bobine de fita de aço feitos no antigo Emissor Regional de Coimbra (RDP-Centro) entre 1946-1960 não foram preservados;
-Avultado número de composições publicadas entre finais do século XIX e 1930 em partitura impressa desapareceram completamente do mercado ou existem apenas em coleccionadores particulares.
A Câmara Municipal de Coimbra, através do seu Pelouro da Cultura, tem-se mostrado sensível a este incomensurável Património Cultural/Imaterial. No domínio do folclore, manteve em funcionamento uma Comissão Municipal de Análise do Folclore, onde pontificaram nomes prestigiados como o Dr. Francisco Faria e o Prof. Doutor Nelson Correia Borges. Os resultados pedagógicos deste trabalho delicado e por vezes melindroso e melindrante são bem visíveis nos espectáculos proporcionados e reconstituições etnográficas levadas a cabo na cidade e em diversas freguesias do Concelho de Coimbra.
Noutros domínios da Música Tradicional de Coimbra, concretamente no que respeita à Canção de Coimbra, a edilidade encetou a partir de 1978 algumas acções que importa registar:
-construção, recuperação e divulgação da Viola Toeira
-realização do Primeiro Seminário do Fado de Coimbra (Maio de 1978), seguindo-se-lhe outros até 1983
-realização do Primeiro Forum Sobre a Canção de Coimbra (Maio de 2003)
-apoio e dinamização do Primeiro Centenário do Nascimento do guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, concretizado através de palestras, exposição documental, descerramento de lápides toponímicas, espectáculo musical, edição de catálogo e comparticipação na edição da respectiva monografia biográfico-musical (Novembro de 2002)
-evocação do aniversário do falecimento do cantor Edmundo Bettencourt, com descerramento de placa toponímica, palestra e sessão musical (Fevereiro de 2002)
-criação do Prémio Edmundo de Bettencourt visando a edição de espécimes inéditos, cujo regulamento foi elaborado pelos Drs. Mário Nunes e Jorge Cravo (Fevereiro de 2003)
-apoio logístico à Escola dos Antigos Orfeonistas, orientada por monitor de guitarra Paulo Soares (Maio de 2002)
-apoio logístico e material da Escola Municipal do Chiado (1978-1990), orientada pelos formadores Dr. Jorge Gomes e Dr. Fernando Monteiro
-negociações com a RDP/Centro com vista a inventariar e salvaguardar os arquivos fonográficos daquela instituição (Março de 2002)
-negociações com o Director da RDP/Centro com vista a transferir para a Fonoteca Municipal o respectivo espólio discográfico (Março de 2002)
-projectos de salvaguarda de antigos discos de 78 rotações concretizados na Fonoteca Municipal pela Dr. Ilda Carvalho e seus colaboradores
-vistoria de espólios documentais particulares com eventual interesse para o estudo das tradições musicais locais (Espólio José Elyseu e Manuel Elyseu, Julho de 2003)
-aprovação por unanimidade na Assembleia Municipal de Coimbra da Canção de Coimbra como género musical, histórico e estético singular, candidato a Obra Prima do Património Oral e Imaterial da Humanidade junto da UNESCO (15 de Março de 2004)
-recepção, catalogação, restauro e exposição dos Instrumentos Musicais Tradicionais Portugueses da Colecção Dr. Manuel Louzã Henriques (Abril de 2004)
Verificou-se, entretanto, que alguns munícipes encorajados pelos trabalhos de estudo produzidos em 2002 sobre Flávio Rodrigues da Silva e em 1999 sobre Edmundo Bettencourt propuseram ao Pelouro da Cultura a cedência de materiais que possibilitariam realizar estudos similares aos referidos. Consultado sobre o assunto e chamado a proceder à triagem dos mencionados espólios António M. Nunes sugeriu que todos esses materiais fossem aproveitados não em monografias de escassas páginas mas alinhados na produção de um cancioneiro geral.
Esta proposta pretende fazer eco das interpelações votadas no final do I Forum Sobre Canção de Coimbra, realizado na Casa Municipal da Cultura em Maio de 2003, sob orientação do Dr. Jorge Cravo. Recordemos algumas dessas propostas enviadas ao Vereador da Cultura:
-urgência na feitura de uma História Geral da Canção de Coimbra, considerando a inexistência de estudos credíveis e a crescente procura dos investigadores nacionais e estrangeiros
-recolha, estudo e inventariação exaustiva de um cancioneiro literário-musical, tendo em conta que os espécimes mais conhecidos e registados fonográficamente representarão 15% a 20% do total de peças existentes em arquivos particulares
-considerar a hipótese de classificação da Guitarra de Coimbra como um produto com denominação de origem protegida
-reflectir sobre a hipótese de classificação da Canção de Coimbra como Património Cultural de Interesse Municipal
A Canção de Coimbra costuma ser apresentada nos dicionários, enciclopédias, manuais escolares, jornais e revistas como um peculiar tipo de “Fado regional” que ganhou alguns contornos diferenciados a partir de uma origem chamada Fado de Lisboa. Trata-se de uma ideia enraizada junto de musicólogos ilustres como Ernesto Vieira, António Arroio, Tomás Borba, Rodney Gallop, Fernando Lopes Graça, Frederico de Freitas, Rui Vieira Nery, ou de publicistas como João Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel. Mas, também temos musicólogos de reconhecida e superior formação musical que negam com bons argumentos a essência fadográfica da Canção de Coimbra, não lhe reconhecendo mais do que pontuais sugerências. Enfileiram nesta segunda posição Mário de Sampaio Ribeiro, Armando Leça, Tenente Francisco José Dias, maestro João de Oliveira Anjo, Francisco Faria, Virgílio Caseiro. Quem está a ser cientificamente honesto, cabe perguntar?
Independentemente da dilucidação deste tipo de questões – nada menores, bastando lembrar o quanto os historiadores portugueses discutiram se houve ou não feudalismo em Portugal, se o Estado Novo foi ou não foi um tipo de fascismo – resta a inquietante e inexplicável inexistência de uma História da Canção de Coimbra. E resta também a preocupante impossibilidade de se pretender proteger um Bem Cultural que se encontra por recolher e inventariar. Não nos cabe atribuir responsabilidades, nem nomear quem deveria ter estudado em devido tempo e não estudou a Canção de Coimbra. Não teria ficado mal aos docentes de Antropologia, Sociologia, História da Música, História, activos na Universidade de Coimbra, a produção de estudos de fundo sobre tais matérias.
Como proteger um Bem cujos limites e extensão não são conhecidos? Como apoiar economicamente projectos, jornadas, seminários, reedições fonográficas, quando a “estória” desse invocado Bem assenta em mitos, lendas, no “diz que diz”? Um passo significativo para a alteração deste lastimoso estado de coisas foi dado em 2003, quando o Pró-Reitor da Universidade de Coimbra, Prof. Doutor João Goveia Monteiro, sugeriu ao Dr. Jorge Cravo a dinamização de um ciclo de debates sobre a Canção de Coimbra. E em Abril de 2004, logo após a aprovação municipal do projecto de candidatura à UNESCO, o mesmo Pró-Reitor veio sugerir a inclusão da candidatura no dossier documental que visa propôr o antigo Paço das Escolas e suas dependências ao galardão da UNESCO.
A Canção de Coimbra, é uma manifestação cultural muito peculiar de um todo mais genérico que é a Música Tradicional de Coimbra. Embora com sinais residuais anteriores (Proto-Canção de Coimbra), emergiu lentamente na Alta de Coimbra entre a Revolução Liberal de 1820, as manifestações do primeiro Romantismo e o término da Guerra Civil (1834). Torna-se possível hodiernamente delimitar com grande rigor a geografia desse parto sincrético, permutado entre o Bairro Latino e o Bairro Salatina. Como também se torna possível afirmar que a Canção de Coimbra é bem menos um “fado” importado e regionalizado e muito mais uma operação de sincretização/encontro entre o folclore de Coimbra e outras manifestações musicais onde entram modinhas, lunduns, valsas, sonatas, gigas, marchas, tangos, polcas, mazurcas, lieder, serenatas, trechos operáticos, fados.
Logo nas conclusões do Primeiro Seminário do Fado de Coimbra (Maio de 1978) o Dr. Luís Plácido sugeriu veementemente que se procedesse à recolha/transcrição musical de largas centenas de espécimes que corriam o risco de perecer. Recorde-se que entre 1969-1978 a Canção de Coimbra fora ameaçada de extinção e praticamente deixara de ser cultivada na Academia de Coimbra. Como apoio à Escola Municipal do Chiado, o Dr. Joaquim Pinho coligiu em fotocópia largas dezenas de partituras musicais (1979). Na sequência destes esforços publicou em 1986 o Engenheiro Carlos Manuel Simões Caiado um livro com 56 solfas manuscritas (Antologia do Fado de Coimbra).
Não obstante os esforços referidos, o trabalho de recolha e de transcrição musical é muito parcelar, lacunoso e praticamente inexistente, quando sabemos que o número de espécimes cantáveis e de espécimes instrumentais ascende a mais de dois milhares. Correndo o risco de perfilhar uma afirmação excessivamente positivista e até considerada ultrapassada, diremos que sem um arquivo literário-musical exaustivo, as tentativas de definição e de caracterização da Canção de Coimbra arriscam cair no terreno do anedótico, do superficial e do contingente.
Constitui a Canção de Coimbra uma mais valia patrimonial apta a rentabilizar a imagem cultural da Cidade de Coimbra, da Universidade de Coimbra, e a contribuir para a afirmação nacional e internacional da(s) sua(s) Identidade(s)? Entendemos que sim. Excluindo Lisboa, nenhuma outra cidade portuguesa se pode vangloriar de ser detentora de um foro musical peculiar, assimilável por exemplo ao Tango e à Canção Napolitana. Aliás, a Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de Bases do regime de protecção e valorização do Património Cultural) explicita claramente as responsabilidades e o papel decisório dos municípios quanto à implementação de medidas de salvaguarda do seu património material e espiritual.
Interessa pois ao Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, estudar, proteger e divulgar o Seu Património Cultural (neste caso a Canção de Coimbra) e não produtos e manifestações carcaterísticas de outros muncípios portugueses. E no caso vertente, o único elemento característico da Canção de Coimbra que poder ser partilhado com outros municípios da Beira Litoral é a Viola Toeira.
De acordo com artigo 17º do diploma mencionado cumpre-nos afirmar que a Canção de Coimbra:
-constitui um Bem Cultural único e inconfundível, construído e consolidado na Cidade de Coimbra
-possui Identidade própria, não se diluindo nem confundindo com quaisquer outros géneros musicais
-revela elevado Valor matricial
-espelha o génio criador de inúmeros compositores e intérpretes, podendo citar-se José Dória, Artur Paredes, Carlos Paredes, João Bagão, Luís Goes, António Menano, Edmundo Bettencourt
-é testemunho simbólico da Identidade Cultural da Cidade, com reconhecimento nacional e internacional plasmado na literatura turística, na comunicação social, no romance histórico, na produção poética, no cinema, na discografia, na pintura
-testemunha factos, memórias e vivências incontornáveis no âmbito da história local, cujos sinais mais visíveis são a toponímia e as lápides evocativas
-é um valor poético a descobrir, traduzindo ecos do Romantismo, Ultra-Romantismo, Simbolismo, Decadentismo, Neo-Realismo e folclorismo
-é um valor musical a descobrir, tanto a nível dos compositores amadores, como dos compositores com formação musical, onde deixaram rasto nomes como Prof. António Simões de Carvalho Barbas, Maestro Francisco Lopes Lima de Macedo Júnior, Alfredo Keil, Elisa Pedroso, Maestro Álvaro Teixeira Lopes, Maestro Raul de Campos, Maestro Manuel Raposo Marques, Maestro Elias de Aguiar, Maestro César Magliano, Maestro António Joyce, Maestro João de Oliveira Anjo, José das Neves Elyseu, Maestro António Dias da Costa, Prof. Tomás Borba, Condessa de Proença-a-Velha, António Viana e Alexandre Rey Colaço, Alberto Sarti, Virgílio Caseiro
-reflecte memórias individuais, colectivas e afectivas
-reveste importância em termos de investigação poética, histórica, biográfica, etnomusicológica, fonográfica, estética, antropológica, sociológica e psicológica
-corre, em muitos aspectos, o risco de perda de integridade, fruto de ausência de recolhas orais, pesquisa documental, salvaguarda, contrafacção de espécimes, não respeito pelos direitos autorais, desertificação da Alta, massificação cultural
-no passado recente foi ameaçada de marginalização e de extinção (1969-1978), tendo a recuperação pública resultado de iniciativa oficial desta edilidade
A Câmara Municipal de Coimbra tem-se vindo a mostrar particularmente sensível às questões de salvaguarda patrimonial, constituindo exemplos desta vontade cultural e política o cuidadoso processo de inventariação/revisão toponímico, a valorização do Brasão de Armas Municipal, o apoio abertamente manifestado a diversas iniciativas culturais e evocativas.
De há muito candidata persistente ao cobiçado galardão da UNESCO, a Cidade de Coimbra tem discutido se valeria a pena promover na geografia do classificável o núcleo histórico. Figuras importantes dos meios culturais locais sugeriram a necessidade de englobar a Cidade Universitária erigida pelo Estado Novo. Acrescentaríamos que uma “cidade de monumentos”, além das torres, muros, altares, fachadas, é também resultado do seu património espiritual.
II – Fontes
Como fontes documentais utilizamos registos fonográficos, partituras musicais impressas, partituras manuscritas, recolhas orais, livros de poesia, biografias, fotografias, anuários de matrículas, cartazes, jornais de época, revistas, filmes, testemunhos directos. Dos vários espólios e arquivos particulares a que tivemos acesso importa relevar:
-partituras de Armando Carneiro da Silva, sobretudo de récitas de despedida de quintanistas da Universidade de Coimbra, reunidas aquando da elaboração do livro Récitas do 5º Ano (1955), integralmente copiadas por António M. Nunes em 1988;
-diversos registos fonográficos pertencentes ao Dr. Afonso de Sousa, transferidos para cassete em 1988 e 1989;
-partituras impressas e manuscritas existentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra;
-partituras e registos fonográficos do cantor Francisco Caetano, cedidos por seu filho José António Caetano, num trabalho de recolha feito em colaboração com a Fonoteca Municipal de Coimbra (Maio-Julho de 2003);
-partituras da colecção particular do Dr. Jorge Gomes utilizadas como material de apoio à antiga Escola Municipal do Chiado (1978-1990);
-recolhas e reconstituições efectuadas por Fernando Frias Gonçalves, respeitantes a Flávio Rodrigues da Silva;
-arquivo particular do Dr. Aurélio dos Reis, salvaguardado informaticamente pelo Dr. Octávio Sérgio;
-partituras e documentos do espólio José Lopes da Fonseca (José Trego);
-documentos sonoros pertencentes aos herdeiros de Augusto e Alexandre Louro;
-integrais fonográficos do Dr. Augusto Camacho Vieira, transferidos para arquivo informático;
-transcrições musicais e arquivos sonoros do Dr. Octávio Sérgio;
-arquivo musical, fonográfico, biográfico, cronológico e inventários do Coronel José Anjos de Carvalho;
-documentos de Manuel Elyseu, cedidos por seu sobrinho José Elyseu (Julho de 2003);
-documentos particulares e solfas manuscritas do Maestro João de Oliveira Anjo;
-acervo documental do Museu Académico, consultado mediante colaboração com Dr. Artur Ribeiro: partituras, fotografias, caricaturas, instrumentos musicais, programas de espectáculos, espólio fonográfico do Dr. Divaldo Gaspar de Freitas;
-acervo da Biblioteca Municipal de Coimbra;
-documentos cedidos pelo Dr. António Augusto Ralha;
-recolhas e reconstituições efectuadas pelo Grupo Folclórico de Coimbra, sob a direcção técnica do Prof. Doutor Nelson Correia Borges;
-registos particulares cedidos pelo Dr. José Maria Amaral;
-fontes sonoras arquivadas pelo Engenheiro Manuel Mora;
-recolhas e documentos pertencentes a António Manuel Nunes.
III – Designação genérica
A obra a publicar em diversos tomos tem como antetítulo genérico Música Tradicional de Coimbra. Dois motivos de fundo justificam a nossa escolha. Entendemos que a Canção de Coimbra é uma manifestação peculiar da Música Tradicional de Coimbra e não um género musical exógeno ao ethos da cidade; deixamos aberta a porta por forma a que num futuro próximo possa ser continuada em termos de recolha e transcrição do folclore local.
IV – Estrutura
Relativamente à estrutura interna da obra seriam possíveis metodologias aparentemente diversas, mas que se tornam complementares. Uma seria a distribuição cronológica dos espécimes, com a vantagem de fornecer maior clareza em termos de continuidades, rupturas, sensibilidades peculiares no interior de uma época.
Acontece que a inventariação cronológica linear é praticamente impossível dado que muitos espécimes não estão datados e a operação de datação só poderá ser feita por aproximação. Com segurança só é possível datar sequêncialmente e com elevado grau de precisão os temas produzidos pelos cursos de quintanistas nas suas despedidas anuais. Por outro lado, a distribuição cronológica de temas apenas fora tentada por António M. Nunes no tocante ao período 1790-1900, encontrando-se ainda incompleta. Já se intentou uma iniciativa deste género na antologia discográfica Tempos de Coimbra. Quatro décadas no canto e na guitarra (1984, 1990, 1992, 2004), e os resultados afiguram-se francamente criticáveis, no que respeita a anacronismos, erros autorais e fragilidade na ilustração de certas épocas.
Outra hipótese seria trabalhar por autores, transcrevendo junto de cada nome as peças respectivas. Uma vez mais seríamos conduzidos a problemas complexos, na medida um que lote significativo de espécimes ficou no anonimato. Outra possibilidade seria realizar um tentame de inventariação temática, agrupando os espécimes por assuntos.
Outra possibilidade, porventura a mais aliciante, consistiria em inventariar os espécimes por movimentos estéticos, preenchendo as fronteiras (sempre movediças) da Proto-Canção de Coimbra, Romantismo, Belle Époque e Ultra-Romantismo, Primeiro Modernismo, Segundo Modernismo, Últimas Vanguardas, Pós-Modernismo. Acontece que o nosso consultor e colaborador principal, Coronel José Anjos de Carvalho, logrou avançar extensamente no emprego de outra modalidade de inventariação próxima da utilizada no estudo das modinhas brasileiras por alguns investigadores (modinhas bárdicas, modinhas árcades, modinhas estróficas. Cf. Baptista Siqueira, Modinhas do passado. Investigações folclóricas e artísticas, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1956, págs. 93-94). Aceite a sugestão do nosso Consultor-Colaborador e ouvido parecer do nosso técnico musical, o trabalho a desenvolver assentará no seguinte esquema:
SECÇÃO I: Canções Musicais Estróficas (ex: Balada do Encantamento), com cerca de 600 espécimes, embora não exista fonte musical para todos eles
SECÇÃO II: Canções Musicais com Coro ou Refrão (ex: Samaritana), com cerca de 200 espécimes
SECÇÃO III: Canções com duas ou mais partes musicais (ex: Fado Hilário Moderno), com cerca de 100 espécimes
SECÇÃO IV: Sonetos e Sonetilhos (ex: Dobadoira), com cerca de 30 espécimes
SECÇÃO V: Temas de Récitas de Despedida, com cerca de 200 espécimes (incluindo hinos, baladas, fados, marchas, valsas, barcarolas e outras)
SECÇÃO VI: Peças Instrumentais (ex: Variações em Ré Menor, de Artur Paredes), com cerca de 250 espécimes
V – Questões técnicas
-o formato da obra não deverá ser inferior ao normalizado nos manuais escolares portugueses, sob pena de comprometer a visualização do grafismo musical. Neste sentido propomos 27 cms de altura por 20 cms de largura
-o número médio de páginas por tomo não deverá exceder em média as 300 a 350. Caso contrário perder-se-ia o sentido prático e utilitário da obra
-poderão surgir dúvidas relativamente a questões autorais, uma vez que utilizaremos frequentemente matrizes fonográficas e partituras comercializadas por determinadas editoras. Julgamos que a natureza deste trabalho configura as situações acauteladas no Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos (Lei nº 45/85, de 17 de Setembro, artigos 75º e 76º). Trata-se de um projecto de natureza científica (recolher, estudar, preservar, inventariar) e pedagógica (apoio às escolas de canto e guitarra activas na Cidade de Coimbra)
-os trabalhos finalizados serão entregues em disquete para efeitos de edição
VI – Normas adoptadas
O presente trabalho de recolha, inventariação e transcrição musical tem por objecto a Canção de Coimbra, vulgarmente conhecida por Fado de Coimbra. Assim sendo, não se reporta directamente ao folclore local, nem ao Fado de Lisboa, nem a temas próximos do estilo de Coimbra que tendo sido cultivados fora de Coimbra nunca chegaram a integrar o cancioneiro local. Visando precisar com maior rigor e clareza o âmbito das tarefas a realizar, o Coordenador Geral e o Técnico Musical definiram algumas regras de procedimento a seguir explanadas:
a) - não serão inventariados os espécimes enquadráveis na categoria de Fado Beirão, na realidade fados coreográficos
b) - serão transcritas solfas de fados apenas em situações em que se tenha verificado transformação local significativa, ou reiterada utilização (Fado Corrido de Coimbra, Fado em Dó)
c) - na análise musical de cada espécime transcrito será utilizado vocabulário técnico apropriado. Pode acontecer que um tema tenha sido designado na linguagem vulgar do próprio autor por fado, fado-canção, fado-serenata, embora o seu conteúdo musical seja outra coisa. Nestes casos precisaremos que o título da obra é destituído de rigor musical
d) - cada partitura será encabeçada por uma ficha tipificada onde constarão sempre que possível: o título original da obra, seguindo-se a classificação (valsa, marcha, etc.); subtítulo, caso exista; designação vulgar detectada; incipit correspondente ao primeiro verso para os temas cantáveis; autor da música; autor da letra; origem do espécime; utilização inicial; data da composição
EXEMPLO:
Fado das Lapas (serenata)
Incipit: Oh Lua que sobes calma
Designação vulgar: Fado das Fogueiras
Música: Francisco Paulo Menano
Letra: Gustaf Adolf Bergstrom
Origem: Coimbra, Largo de São João de Almedina
Utilização inicial: Fogueiras de São João
Data: 1910
d) - imediatamente a seguir ao cabeçalho identificativo procede-se à transcrição musical da peça
e) - a seguir à partitura figurará a memória descritiva contendo diversas informações biográficas, cronológicas, eventuais percursos evolutivos, sistema de acompanhamento, análise musical, estropiamentos, contrafacções, e todos os dados necessários a uma melhor compreensão da obra
f) - a letra transcrita em primeiro lugar corresponderá à versão original, podendo seguir-se variantes detectadas. Em não sendo possível aceder à letra original, transcreveremos a versão mais comum
g) - nos casos em que for impossível obter o título original, o espécime transcrito será identificado através do título vulgar ou do seu incipit
h) - não serão transcritas variantes literárias exógenas, quando a recolha indiciar que nunca tiveram aceitação em Coimbra (exemplo de Samaritana cantada com a variante O Trovador por Loubet Bravo)
i) - não serão transcritos temas de produção exógena, embora afins do estilo coimbrão, quando se comprovar que não tiveram vivescência local (exemplo de canções gravadas pelo cantor Ângelo Fernandes)
j) - não serão transcritos espécimes de despedidas estudantis provenientes de antigos liceus ou escolas superiores localizadas extra-muros
l) - os autores serão referidos pelo seu nome completo
m) - nas situações menos claras de autorias optaremos por “autor não identificado”, atribuído a “, “atribuível a”
n) - nos casos nublosos atinentes à datação usaremos classificativos tipo “primeiro quartel de”, finais do século”, “primeira década de”, “circa”, “não anterior a nem posterior a”
o) - nalgumas situações colidiremos com os dados constantes na Sociedade Portuguesa de Autores e fichas técnicas de grande parte da discografia comercializada em Portugal. Cite-se um disco do cantor Artur Almeida d’Eça onde o tema Eterna Canção indica a autoria musical correcta (António Rodrigues Viana), mas erra na letra, reportando-a ao Conde de Monsaraz D. António de Macedo Papança. Não se poderia corroborar um lapso desta monta, quando o autor da letra é comprovadamente Júlio Dantas. Também não serão confirmadas falsas autorias de letras, nos casos em que o texto literário seja anterior ao nascimento do autor a quem costumam ser atribuídas
p) - sempre que forem detectados erros musicais nas partituras ou fonogramas, os mesmos serão alvo de correcção, seguindo-se a devida explicitação na memória descritiva
q) - quando forem detectadas variantes musicais de um espécime será conferida primazia ao original. Pode suceder que a variante revista algum valor patrimonial autonomizado digno de menção. Nestas situações será transcrita a variante na respectiva ordem alfabética. Serve de exemplo o Fado do Mar Largo (Paulo de Sá) e a sua variante Água da Fonte. Tendo em conta a primeira gravação da variante com inovadores arranjos de guitarra por Carlos Paredes, não faria sentido ignorá-la
r) - as situações de contrafacção serão devidamente assinaladas em local próprio. Por exemplo, no verbete de Canção dos Malmequeres (António Menano) acrescentar-se-á que a melodia de Balada do Estudante gravada por Adriano Correia de Oliveira configura plágio sob a capa da menção “popular”, ou que o tema Olhos Verdes, registado por João Barros Madeira constitui contrafacção de Um Fado de Coimbra de Paulo de Sá
s) - pode suceder que a evolução sofrida por um espécime apresente reinterpretações dignas de vulto. Também aqui se atenderá ao original, ao primeiro registo fonográfico e a determinados tratamentos de que foi alvo. É o que sucede com a gravação Artur Paredes de Bailados do Minho e a sua reinterpretação décadas mais tarde por António Andias
t) – as transcrições musicais reportar-se-ão apenas às melodias
u) - quando a canção evidenciar falta de acerto entre a letra e a melodia, a situação será alvo de análise (caso de Ondas do Mar, de Carlos Figueiredo). Em se verificando que o trabalho de correcção musical altera a melodia proposta pelo autor, optaremos pela transcrição tal e qual, fornecendo informações complementares
v) - haverá sempre uma preocupação acrescida com o “espírito de época”, por forma a evitar anacronismos no tocante aos arranjos, afinações de cordofones e tipologia dos instrumentos de acompanhamento utilizados em cada época
x) - uma vez iniciada a publicação e acaso nos seja fornecido algum espécime desconhecido, este será integrado na obra, em local a designar
VII - O que são Canções Musicais Estróficas?
As canções musicais estróficas constituem o núcleo central dos vulgarmente chamados temas “clássicos”, tão veementemente criticados na década de 1960 pelos protagonistas do Segundo Modernismo da Canção de Coimbra. Não obedecem a uma estrutura melódica padronizada nem a esquemas de harmonização fixos. Os compassos adoptados oscilam entre o binário simples (predominante no século XIX), o quaternário, o ternário, e as marcações compostas. As melodias enquadram-se no Sistema Tonal, ora no Modo Maior, ora no Modo Menor. Via de regra, são árias destinada a solista (monodias), embora a repetição dos dísticos possa ser cantada em coro (muito raro).
São, acima de tudo, árias silábicas, dado que na esmagadora maioria dos temas inventariados a cada sílaba do texto poético corresponde uma nota musical. Muito raramente ocorrem fugas à estrutura silábica, mesmo quando se trata de trabalhos da lavra de compositores amadores. A estrutura poética mais cultivada desde a década de 1840 assenta no emprego da Redondilha Maior com versos de sete sílabas. As quadras adoptadas tanto glosam temas complementares como assuntos desligados, podendo ser adoptadas a partir do cancioneiro popular português ou colhidas num autor identificado/anónimo. Existem, contudo execepções, que percorrem sextilhas e décimas, perfilhando métricas mais complexas.
É nestas árias monódico-silábicas, sejam elas em compasso binário ou outro, em modo maior ou menor, com ou sem ais neumáticos, que a Canção de Coimbra mais de aproxima da Música Popular Portuguesa de estrutura tonal. É esta também a estrutura clássica do Fado Corrido, quando adopta a quadra. O expediente mais vulgarizado consiste em cantar o primeiro dístico de uma quadra (1º e 2º versos) e repeti-lo, o mesmo sucedendo com o segundo dístico. No fundo, trata-se de bisar a melodia (ex: Fado da Mentira).
Salvaguardando as necessárias e evidentes diferenças entre a estrutura melódica e o estilo vocal das peças coimbrãs de outras manifestação da música tradicional/regional portuguesa, poderíamos afirmar que o modelo é similar a inúmeras modas e danças do folclore português, servindo de exemplo a conhecida Sapateia da Ilha Terceira, gravada por Adriano Correia de Oliveira em 1972 (neste caso o solista canta cada um dos dísticos, sendo estes logo bisados em coro). Outra variante consiste em cantar integralmente a quadra a solo e rematá-la com a repetição do primeiro dístico (ex: Fado dos Passarinhos). Noutra modalidade assinalada opta-se por cantar a solo cada verso da quadra e repeti-lo de imediato (ex: Nossa Senhora de Vagos).
Quando alicerçadas no Modo Menor, muitas destas árias recolhidas e estudadas destilam um sabor nostálgico, romântico-sentimental, não raro plagencial, reforçado pela interpretação vocal e pelo teor das letras que persistentemente falam de saudades, sofrimentos indizíveis, da solidão e da morte, da separação materna.
Eis uma matéria onde importa inscrever nuances. A opção pelo modo menor não significa que todos os espécimes conimbricenses são plangenciais, nem que derivam do Fado Menor lisboeta. A cadência plagencial, tão presente em modas do folclore português, é dada as mais das vezes pelo cantor e pelos instrumentistas. Encontramo-la no Fado de Lisboa, em serenatas mexicanas, em árias operáticas oitocentistas, em modinhas luso-brasileiras, no chorinho brasileiro, em mornas caboverdianas, e em modinhas açorianas como a Saudade, a Lira, o Tanchão e o Meu Bem. Os fados lisboetas mais plagenciais terão dificuldade em competir com a açoriana Saudade. E no entanto ninguém se atreve a dizer que a Saudade é um “fado” ou um derivado do “fado”. Comparem-se os registos fonográficos de Edmundo Bettencourt e José Paradela de Oliveira no título Fado de Santa Cruz. Em Bettencourt temos uma sentimentalidade moderada. Em Paradela, a voz é lacrimogéna e a cadência plagencial.
A nível do trabalho instrumental de acompanhamento, subjaz a estas árias um esquema ascentral de dedilho, herdado da Viola Toeira, que consiste em ferir os baixões com a unha do polegar e as cordas finas com a unha do indicador. Há quem chame “puxadas”, há quem chame “tempo de fado”, a esta dedilhação arrastada que não ultrapassa o eixo tónica-dominante (ex: Ré Maior/Lá de 7ª) nas ocorrências mais ancestrais.
Momento digno de reparo no fluir da temporalidade e na estruturação das sensibilidades é, sem dúvida, a consagração do compasso quaternário e o emprego dos ais neumáticos ad libitum na geração de Manassés de Lacerda (1ª década do século XX). Embora respeitando no essencial a melodia primitiva de cada espécime, os intérpretes de árias estróficas – em particular os primeiros tenores operáticos da Belle Époque e os do Ciclo Ultra-Romântico – ficaram famosos pelo prolongamento ad libitum dos ais neumáticos intercalados nas transições das frases musicais, expediente também aplicado às “sílabas tónicas das palavras de efeito” (Óscar Lopes, 1987). Vejam-se para os primeiros Manassés de Lacerda, Agostinho Fontes Pereira de Melo, Francisco Caetano, e para os segundos António Menano, José Paradela de Oliveira, Lucas Junot, ou mesmo o outonal Fernando Machado Soares.
Quanto ao vocabulário tradicionalmente adoptado para identificar e classificar estes espécimes, são vulgares termos e expressões utilizadas indiferenciadamente: “fado do/da”, “fados de”; “fados dos/das”, “fado-canção”, “fado-serenata”, “canção”, “nocturno”, “fado número”. Não se poderia corroborar tamanha discricionaridade vocabular num trabalho desta natureza. É correcto chamar fado aquilo que efectivamente é fado. É incorrecto intitular fado um espécime que na realidade é uma canção ligeira, uma barcarola, um lied, uma valsa, um lundum, um tango, uma serenata.
Esta espécie de ultra-nominalismo acrítico e banalizador configura uma herança cancerígena de finais de oitocentos, inícios de novecentos, que rotulava discricionariamente na categoria de “fado” tudo o que fosse cantado com acompanhamento de guitarra. Secundando José Alberto Sardinha: “E foi tão importante a ligação entre o fado e a guitarra que esta se tornou até um elemento aglutinador de vários géneros musicais que, depois de o fado cair em moda, vieram também a integrar-se na designação de fado pela simples e única razão de serem acompanhados à guitarra” (autor citado, A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional, Lisboa, ESTAR, 2002, pág. 122). Afinal quantas árias estróficas habitam o universo da Canção de Coimbra? Para o período 1820-2000 foram inventariados cerca de 600 espécimes. Este número não abarca a totalidade dos temas compostos neste lapso temporal. Duma ínfima percentagem não foi possível aceder às respectivas melodias.
27 de Agosto de 2003
(TEMAS DA CANÇÃO DE COIMBRA)
Uma explicação: o plano deste cancioneiro literário musical foi apresentado ao Dr. Mário Nunes, Vereador do Pelouro da Cultura da CMC em 27 de Agosto de 2003, nele figurando como técnico musical a convidar o Prof. José dos Santos Paulo. Porém, não foi possível chegar a um entendimento com o Prof. José Paulo e em Março de 2004 todo o projecto inicial sofreu transformações e adaptações por forma a ser incluído do projecto de candidatura da Canção de Coimbra e Partimónio da UNESCO. Entre Março e Maio de 2004 foram envidados infrutíferos esforços para agregar ao projecto os músicos José Firmino, Tobias Cardoso e António Madeira Alves. A celebração de um protocolo entre a Câmara Municipal de Coimbra e a Reitoria da Universidade de Coimbra em nada contribuiu para fazer arrancar o projecto. Todos os trabalhos projectados e calendarizados ficaram parados entre Maio de 2004 e as eleições municipais de Outubro de 2005, para grande amargura do Dr. Jorge Cravo e minha. A falta de vontade era tão ostensiva que a páginas tantas mais parecia que o autor deste projecto e o precioso colaborador, Coronel José Anjos de Carvalho, estavam a mendigar uma esmola editorial ao município coimbrão. O deixa andar, ditou o afastamento e o desinteresse. Edita-se on line o plano então elaborado, o qual estava inteiramente pronto a figurar como prefácio do 1º volume do cancioneiro das canções musicais estróficas.
I – Coordenação da obra
Coordenador Geral: Mestre António Manuel Nunes
Musicólogo: ?
Consultor e Colaborador Principal: Coronel José Anjos de Carvalho
Editor: Câmara Municipal de Coimbra
II – Um Património Cultural digno de preservação
Cidades dotadas de núcleo histórico apetrechado com edifícios religiosos, militares, escolares, jardins, mancha florestal e espaços museológicos, constituem mais valias que importa conhecer, estudar e preservar. Além de um Património Monumental deveras significativo – citemos o Paço das Escolas, a Sé Velha, a Cadeia de planta panótica oitocentista, a Igreja do Mosteiro de Santa Cruz, a última elevada à categoria de Panteão Nacional em 2003 – Coimbra é detentora de invejável palmarés no domínio da produção cultural espiritual, podendo referir-se a longa e persistente tradição dos grupos de teatro popular e académico, a gastronomia, os trajos etnográficos recuperados por grupos folclóricos, feiras, manifestações perdidas como a Queima do Judas e a Espera dos Reis, inúmeras romarias, arruadas de gaiteiros, os festejos da Rainha Santa Isabel, as serenatas fluviais das tricanas e dos futricas, a romaria de Santo António dos Olivais, os trabalhos artesanais que iam desde os brinquedos e faianças aos ferros forjados, as decantadas Fogueiras de São João, as marchas populares dos bairros, a celebração do Dia da Espiga, as idas à Fonte do Castanheiro em noites de São João. E claro, os espectáculos, cortejos, rituais e serenatas académicas.
Com alguma razão se mimoseou Coimbra com o epíteto de Cidade das Canções. Epíteto que encerra algumas perplexidades. A Música Tradicional de Coimbra, duramente marginalizado por musicólogos como Armando Leça e Mário de Sampaio Ribeiro, nunca mereceu qualquer interesse digno de vulto da parte dos folcloristas. O folclore conimbricense não passaria de um embuste, porquanto baseado em modas e danças de autores conhecidos. Coimbra pagou bem caro o preconceito, figurando ainda hoje à margem das recolhas nacionais operadas no século XX, cancioneiros da especialidade, manuais escolares de 5º e 6º ano. No pior dos casos, quando algum recolector musical fala de Coimbra, fá-lo apenas para mencionar uma “guitarrada”, um qualquer “fado”, ou mesmo versões estropiadas do “Vira de Coimbra” produzidas em estúdio (para tanto, pouco importando se estamos em presença do Vira de Coimbra, do Vira de Quatro ou de uma qualquer variante dos povoados vizinhos).
Este lastimoso estado de coisas tem vindo a mudar muito lentamente. Em 1987, a propósito das Primeiras Jornadas Sobre a Alta de Coimbra, dinamizadas pelo Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, o então director artístico do Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal, aproveitou para denunciar o preconceito e a ignorância reinantes, para tanto trazendo ao palco cordofones, afinações, toques, modas e danças que causaram surpresa. Causaram surpresa aos jovens, pois os congressistas mais idosos logo bateram palmas e trautearam espécimes bem conhecidos como o Vira de Coimbra, o Ai Gabriel, a Giga e o Manuel Ceguinho.
Quer isto significar que o conceito de património se tem vindo a alargar, lançando olhares e curiosidades sobre mundos ocultos. Na transição do século XX para o século XXI assiste-se a uma deslocação e alargamento das convencionais fronteiras do conceito de património. Lado a lado com o mosteiro, o castelo, a biblioteca, o museu, entram em cena a gastronomia, as danças, os trajos etnográficos, os instrumentos musicais, o ambiente, a memória oral.
Abandona-se a visão urbana, elitista e monumentalista do património. É mais ou menos consensual que cada comunidade tem direito ao SEU Património Cultural. Mas convenhamos, nem todas as comunidades são detentoras de castelos medievais, igrejas góticas, “conventos de mafras”. As tradicionais festas açorianas do Divino Espírito Santo, com a sua parafrenália de estandartes, novenários, foliões, imperadores, coroas e coroações, banquetes comunitários, serão menos Bem Cultural do que um convento? Esta constatação leva-nos a problemas fulcrais: “preservar o quê e como”?, “quando é que um Bem ganha a qualidade de património”? (cf. O património local e regional, Lisboa, Ministério da Educação, 1998, págs. 16 e 25). Sem pretendermos fazer doutrina sobre matérias tão controversas, enunciaríamos os seguintes vectores: a) nas comunidades menos apetrechadas com património monumental material, a aposta difererenciadora passa necessariamente pela valorização do Património Imaterial; b) há produções culturais comuns a vários municípios, o que impede que determinado município em concreto se reclame legítimo representante de tal bem. São exemplos: a Viola da Terra, comum a todas as ilhas dos Açores; a Viola Braguesa, utilizada no Minho e Douro Litoral; a Chanfana, prato que se alarga aos concelhos de Coimbra, Condeixa, Penela, Arganil, Miranda; c) existem artefactos e práticas culturais específicas de determinadas localidades. É o caso singular da Canção de Coimbra, nascida e consolidada na Cidade de Coimbra, sem representação de vulto nas freguesias rurais do Concelho de Coimbra; d) nas comunidades onde já foi concretizado um longo e sólido trabalho de preservação do Património Material, torna-se pertinente estudar e preservar o Património Espiritual. Coimbra tem sobejas motivações para apostar a fundo num projecto desta natureza:
-O plano governamental de extensas demolições levado a cabo na Alta de Coimbra pelas décadas de 1940-1950 colocou em perigo e fez desaparecer práticas culturais como as Fogueiras de São João e as Serenatas de Cortejamento, na medida em que desarticulou as vivências tradiconais e operou a desertificação forçada do tecido urbano. Os espaços de sociabilidade mais afectados correspondem à demolição substancial do antigo Bairro Latino/Bairro Salatina, espaços onde emergiu e se consolidou a Canção de Coimbra a partir do primeiro quartel do século XIX;
-A proibição das Serenatas de Cortejamento durante a Primeira República e o Estado Novo, conduziu à rarefacção de práticas culturais e artísticas espontâneas, que passaram a ser vistas como fenómenos de perturbação da ordem nocturna;
-O crescente grau de poluição sonora urbana e a evolução dos gostos ditou o fim das antigas serenatas fluviais;
-As crises estudantis da década de 1960 baniram por completo a Canção de Coimbra dos horizontes culturais da cidade e da Universidade de Coimbra durante um longo período (1969-1978);
-a evolução e massificação dos gostos musicais juvenis tem-se vindo a traduzir na diminuição do número de potenciais cultores;
-O grosso dos registos fonográficos efectuados entre 1904 e 1930 esgotou completamente, pelo que se tornou impossível aos jovens cultores o acesso às fontes antigas, com manifesto prejuízo pedagógico e didáctico das escolas de formação de aprendizes;
-Grande parte dos registos fonográficos levados a cabo entre 1953-1973 também esgotou completamente sem terem conhecido qualquer esforço de reedição;
-Os registos sonoros em bobine de fita de aço feitos no antigo Emissor Regional de Coimbra (RDP-Centro) entre 1946-1960 não foram preservados;
-Avultado número de composições publicadas entre finais do século XIX e 1930 em partitura impressa desapareceram completamente do mercado ou existem apenas em coleccionadores particulares.
A Câmara Municipal de Coimbra, através do seu Pelouro da Cultura, tem-se mostrado sensível a este incomensurável Património Cultural/Imaterial. No domínio do folclore, manteve em funcionamento uma Comissão Municipal de Análise do Folclore, onde pontificaram nomes prestigiados como o Dr. Francisco Faria e o Prof. Doutor Nelson Correia Borges. Os resultados pedagógicos deste trabalho delicado e por vezes melindroso e melindrante são bem visíveis nos espectáculos proporcionados e reconstituições etnográficas levadas a cabo na cidade e em diversas freguesias do Concelho de Coimbra.
Noutros domínios da Música Tradicional de Coimbra, concretamente no que respeita à Canção de Coimbra, a edilidade encetou a partir de 1978 algumas acções que importa registar:
-construção, recuperação e divulgação da Viola Toeira
-realização do Primeiro Seminário do Fado de Coimbra (Maio de 1978), seguindo-se-lhe outros até 1983
-realização do Primeiro Forum Sobre a Canção de Coimbra (Maio de 2003)
-apoio e dinamização do Primeiro Centenário do Nascimento do guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, concretizado através de palestras, exposição documental, descerramento de lápides toponímicas, espectáculo musical, edição de catálogo e comparticipação na edição da respectiva monografia biográfico-musical (Novembro de 2002)
-evocação do aniversário do falecimento do cantor Edmundo Bettencourt, com descerramento de placa toponímica, palestra e sessão musical (Fevereiro de 2002)
-criação do Prémio Edmundo de Bettencourt visando a edição de espécimes inéditos, cujo regulamento foi elaborado pelos Drs. Mário Nunes e Jorge Cravo (Fevereiro de 2003)
-apoio logístico à Escola dos Antigos Orfeonistas, orientada por monitor de guitarra Paulo Soares (Maio de 2002)
-apoio logístico e material da Escola Municipal do Chiado (1978-1990), orientada pelos formadores Dr. Jorge Gomes e Dr. Fernando Monteiro
-negociações com a RDP/Centro com vista a inventariar e salvaguardar os arquivos fonográficos daquela instituição (Março de 2002)
-negociações com o Director da RDP/Centro com vista a transferir para a Fonoteca Municipal o respectivo espólio discográfico (Março de 2002)
-projectos de salvaguarda de antigos discos de 78 rotações concretizados na Fonoteca Municipal pela Dr. Ilda Carvalho e seus colaboradores
-vistoria de espólios documentais particulares com eventual interesse para o estudo das tradições musicais locais (Espólio José Elyseu e Manuel Elyseu, Julho de 2003)
-aprovação por unanimidade na Assembleia Municipal de Coimbra da Canção de Coimbra como género musical, histórico e estético singular, candidato a Obra Prima do Património Oral e Imaterial da Humanidade junto da UNESCO (15 de Março de 2004)
-recepção, catalogação, restauro e exposição dos Instrumentos Musicais Tradicionais Portugueses da Colecção Dr. Manuel Louzã Henriques (Abril de 2004)
Verificou-se, entretanto, que alguns munícipes encorajados pelos trabalhos de estudo produzidos em 2002 sobre Flávio Rodrigues da Silva e em 1999 sobre Edmundo Bettencourt propuseram ao Pelouro da Cultura a cedência de materiais que possibilitariam realizar estudos similares aos referidos. Consultado sobre o assunto e chamado a proceder à triagem dos mencionados espólios António M. Nunes sugeriu que todos esses materiais fossem aproveitados não em monografias de escassas páginas mas alinhados na produção de um cancioneiro geral.
Esta proposta pretende fazer eco das interpelações votadas no final do I Forum Sobre Canção de Coimbra, realizado na Casa Municipal da Cultura em Maio de 2003, sob orientação do Dr. Jorge Cravo. Recordemos algumas dessas propostas enviadas ao Vereador da Cultura:
-urgência na feitura de uma História Geral da Canção de Coimbra, considerando a inexistência de estudos credíveis e a crescente procura dos investigadores nacionais e estrangeiros
-recolha, estudo e inventariação exaustiva de um cancioneiro literário-musical, tendo em conta que os espécimes mais conhecidos e registados fonográficamente representarão 15% a 20% do total de peças existentes em arquivos particulares
-considerar a hipótese de classificação da Guitarra de Coimbra como um produto com denominação de origem protegida
-reflectir sobre a hipótese de classificação da Canção de Coimbra como Património Cultural de Interesse Municipal
A Canção de Coimbra costuma ser apresentada nos dicionários, enciclopédias, manuais escolares, jornais e revistas como um peculiar tipo de “Fado regional” que ganhou alguns contornos diferenciados a partir de uma origem chamada Fado de Lisboa. Trata-se de uma ideia enraizada junto de musicólogos ilustres como Ernesto Vieira, António Arroio, Tomás Borba, Rodney Gallop, Fernando Lopes Graça, Frederico de Freitas, Rui Vieira Nery, ou de publicistas como João Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel. Mas, também temos musicólogos de reconhecida e superior formação musical que negam com bons argumentos a essência fadográfica da Canção de Coimbra, não lhe reconhecendo mais do que pontuais sugerências. Enfileiram nesta segunda posição Mário de Sampaio Ribeiro, Armando Leça, Tenente Francisco José Dias, maestro João de Oliveira Anjo, Francisco Faria, Virgílio Caseiro. Quem está a ser cientificamente honesto, cabe perguntar?
Independentemente da dilucidação deste tipo de questões – nada menores, bastando lembrar o quanto os historiadores portugueses discutiram se houve ou não feudalismo em Portugal, se o Estado Novo foi ou não foi um tipo de fascismo – resta a inquietante e inexplicável inexistência de uma História da Canção de Coimbra. E resta também a preocupante impossibilidade de se pretender proteger um Bem Cultural que se encontra por recolher e inventariar. Não nos cabe atribuir responsabilidades, nem nomear quem deveria ter estudado em devido tempo e não estudou a Canção de Coimbra. Não teria ficado mal aos docentes de Antropologia, Sociologia, História da Música, História, activos na Universidade de Coimbra, a produção de estudos de fundo sobre tais matérias.
Como proteger um Bem cujos limites e extensão não são conhecidos? Como apoiar economicamente projectos, jornadas, seminários, reedições fonográficas, quando a “estória” desse invocado Bem assenta em mitos, lendas, no “diz que diz”? Um passo significativo para a alteração deste lastimoso estado de coisas foi dado em 2003, quando o Pró-Reitor da Universidade de Coimbra, Prof. Doutor João Goveia Monteiro, sugeriu ao Dr. Jorge Cravo a dinamização de um ciclo de debates sobre a Canção de Coimbra. E em Abril de 2004, logo após a aprovação municipal do projecto de candidatura à UNESCO, o mesmo Pró-Reitor veio sugerir a inclusão da candidatura no dossier documental que visa propôr o antigo Paço das Escolas e suas dependências ao galardão da UNESCO.
A Canção de Coimbra, é uma manifestação cultural muito peculiar de um todo mais genérico que é a Música Tradicional de Coimbra. Embora com sinais residuais anteriores (Proto-Canção de Coimbra), emergiu lentamente na Alta de Coimbra entre a Revolução Liberal de 1820, as manifestações do primeiro Romantismo e o término da Guerra Civil (1834). Torna-se possível hodiernamente delimitar com grande rigor a geografia desse parto sincrético, permutado entre o Bairro Latino e o Bairro Salatina. Como também se torna possível afirmar que a Canção de Coimbra é bem menos um “fado” importado e regionalizado e muito mais uma operação de sincretização/encontro entre o folclore de Coimbra e outras manifestações musicais onde entram modinhas, lunduns, valsas, sonatas, gigas, marchas, tangos, polcas, mazurcas, lieder, serenatas, trechos operáticos, fados.
Logo nas conclusões do Primeiro Seminário do Fado de Coimbra (Maio de 1978) o Dr. Luís Plácido sugeriu veementemente que se procedesse à recolha/transcrição musical de largas centenas de espécimes que corriam o risco de perecer. Recorde-se que entre 1969-1978 a Canção de Coimbra fora ameaçada de extinção e praticamente deixara de ser cultivada na Academia de Coimbra. Como apoio à Escola Municipal do Chiado, o Dr. Joaquim Pinho coligiu em fotocópia largas dezenas de partituras musicais (1979). Na sequência destes esforços publicou em 1986 o Engenheiro Carlos Manuel Simões Caiado um livro com 56 solfas manuscritas (Antologia do Fado de Coimbra).
Não obstante os esforços referidos, o trabalho de recolha e de transcrição musical é muito parcelar, lacunoso e praticamente inexistente, quando sabemos que o número de espécimes cantáveis e de espécimes instrumentais ascende a mais de dois milhares. Correndo o risco de perfilhar uma afirmação excessivamente positivista e até considerada ultrapassada, diremos que sem um arquivo literário-musical exaustivo, as tentativas de definição e de caracterização da Canção de Coimbra arriscam cair no terreno do anedótico, do superficial e do contingente.
Constitui a Canção de Coimbra uma mais valia patrimonial apta a rentabilizar a imagem cultural da Cidade de Coimbra, da Universidade de Coimbra, e a contribuir para a afirmação nacional e internacional da(s) sua(s) Identidade(s)? Entendemos que sim. Excluindo Lisboa, nenhuma outra cidade portuguesa se pode vangloriar de ser detentora de um foro musical peculiar, assimilável por exemplo ao Tango e à Canção Napolitana. Aliás, a Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro (Lei de Bases do regime de protecção e valorização do Património Cultural) explicita claramente as responsabilidades e o papel decisório dos municípios quanto à implementação de medidas de salvaguarda do seu património material e espiritual.
Interessa pois ao Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, estudar, proteger e divulgar o Seu Património Cultural (neste caso a Canção de Coimbra) e não produtos e manifestações carcaterísticas de outros muncípios portugueses. E no caso vertente, o único elemento característico da Canção de Coimbra que poder ser partilhado com outros municípios da Beira Litoral é a Viola Toeira.
De acordo com artigo 17º do diploma mencionado cumpre-nos afirmar que a Canção de Coimbra:
-constitui um Bem Cultural único e inconfundível, construído e consolidado na Cidade de Coimbra
-possui Identidade própria, não se diluindo nem confundindo com quaisquer outros géneros musicais
-revela elevado Valor matricial
-espelha o génio criador de inúmeros compositores e intérpretes, podendo citar-se José Dória, Artur Paredes, Carlos Paredes, João Bagão, Luís Goes, António Menano, Edmundo Bettencourt
-é testemunho simbólico da Identidade Cultural da Cidade, com reconhecimento nacional e internacional plasmado na literatura turística, na comunicação social, no romance histórico, na produção poética, no cinema, na discografia, na pintura
-testemunha factos, memórias e vivências incontornáveis no âmbito da história local, cujos sinais mais visíveis são a toponímia e as lápides evocativas
-é um valor poético a descobrir, traduzindo ecos do Romantismo, Ultra-Romantismo, Simbolismo, Decadentismo, Neo-Realismo e folclorismo
-é um valor musical a descobrir, tanto a nível dos compositores amadores, como dos compositores com formação musical, onde deixaram rasto nomes como Prof. António Simões de Carvalho Barbas, Maestro Francisco Lopes Lima de Macedo Júnior, Alfredo Keil, Elisa Pedroso, Maestro Álvaro Teixeira Lopes, Maestro Raul de Campos, Maestro Manuel Raposo Marques, Maestro Elias de Aguiar, Maestro César Magliano, Maestro António Joyce, Maestro João de Oliveira Anjo, José das Neves Elyseu, Maestro António Dias da Costa, Prof. Tomás Borba, Condessa de Proença-a-Velha, António Viana e Alexandre Rey Colaço, Alberto Sarti, Virgílio Caseiro
-reflecte memórias individuais, colectivas e afectivas
-reveste importância em termos de investigação poética, histórica, biográfica, etnomusicológica, fonográfica, estética, antropológica, sociológica e psicológica
-corre, em muitos aspectos, o risco de perda de integridade, fruto de ausência de recolhas orais, pesquisa documental, salvaguarda, contrafacção de espécimes, não respeito pelos direitos autorais, desertificação da Alta, massificação cultural
-no passado recente foi ameaçada de marginalização e de extinção (1969-1978), tendo a recuperação pública resultado de iniciativa oficial desta edilidade
A Câmara Municipal de Coimbra tem-se vindo a mostrar particularmente sensível às questões de salvaguarda patrimonial, constituindo exemplos desta vontade cultural e política o cuidadoso processo de inventariação/revisão toponímico, a valorização do Brasão de Armas Municipal, o apoio abertamente manifestado a diversas iniciativas culturais e evocativas.
De há muito candidata persistente ao cobiçado galardão da UNESCO, a Cidade de Coimbra tem discutido se valeria a pena promover na geografia do classificável o núcleo histórico. Figuras importantes dos meios culturais locais sugeriram a necessidade de englobar a Cidade Universitária erigida pelo Estado Novo. Acrescentaríamos que uma “cidade de monumentos”, além das torres, muros, altares, fachadas, é também resultado do seu património espiritual.
II – Fontes
Como fontes documentais utilizamos registos fonográficos, partituras musicais impressas, partituras manuscritas, recolhas orais, livros de poesia, biografias, fotografias, anuários de matrículas, cartazes, jornais de época, revistas, filmes, testemunhos directos. Dos vários espólios e arquivos particulares a que tivemos acesso importa relevar:
-partituras de Armando Carneiro da Silva, sobretudo de récitas de despedida de quintanistas da Universidade de Coimbra, reunidas aquando da elaboração do livro Récitas do 5º Ano (1955), integralmente copiadas por António M. Nunes em 1988;
-diversos registos fonográficos pertencentes ao Dr. Afonso de Sousa, transferidos para cassete em 1988 e 1989;
-partituras impressas e manuscritas existentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra;
-partituras e registos fonográficos do cantor Francisco Caetano, cedidos por seu filho José António Caetano, num trabalho de recolha feito em colaboração com a Fonoteca Municipal de Coimbra (Maio-Julho de 2003);
-partituras da colecção particular do Dr. Jorge Gomes utilizadas como material de apoio à antiga Escola Municipal do Chiado (1978-1990);
-recolhas e reconstituições efectuadas por Fernando Frias Gonçalves, respeitantes a Flávio Rodrigues da Silva;
-arquivo particular do Dr. Aurélio dos Reis, salvaguardado informaticamente pelo Dr. Octávio Sérgio;
-partituras e documentos do espólio José Lopes da Fonseca (José Trego);
-documentos sonoros pertencentes aos herdeiros de Augusto e Alexandre Louro;
-integrais fonográficos do Dr. Augusto Camacho Vieira, transferidos para arquivo informático;
-transcrições musicais e arquivos sonoros do Dr. Octávio Sérgio;
-arquivo musical, fonográfico, biográfico, cronológico e inventários do Coronel José Anjos de Carvalho;
-documentos de Manuel Elyseu, cedidos por seu sobrinho José Elyseu (Julho de 2003);
-documentos particulares e solfas manuscritas do Maestro João de Oliveira Anjo;
-acervo documental do Museu Académico, consultado mediante colaboração com Dr. Artur Ribeiro: partituras, fotografias, caricaturas, instrumentos musicais, programas de espectáculos, espólio fonográfico do Dr. Divaldo Gaspar de Freitas;
-acervo da Biblioteca Municipal de Coimbra;
-documentos cedidos pelo Dr. António Augusto Ralha;
-recolhas e reconstituições efectuadas pelo Grupo Folclórico de Coimbra, sob a direcção técnica do Prof. Doutor Nelson Correia Borges;
-registos particulares cedidos pelo Dr. José Maria Amaral;
-fontes sonoras arquivadas pelo Engenheiro Manuel Mora;
-recolhas e documentos pertencentes a António Manuel Nunes.
III – Designação genérica
A obra a publicar em diversos tomos tem como antetítulo genérico Música Tradicional de Coimbra. Dois motivos de fundo justificam a nossa escolha. Entendemos que a Canção de Coimbra é uma manifestação peculiar da Música Tradicional de Coimbra e não um género musical exógeno ao ethos da cidade; deixamos aberta a porta por forma a que num futuro próximo possa ser continuada em termos de recolha e transcrição do folclore local.
IV – Estrutura
Relativamente à estrutura interna da obra seriam possíveis metodologias aparentemente diversas, mas que se tornam complementares. Uma seria a distribuição cronológica dos espécimes, com a vantagem de fornecer maior clareza em termos de continuidades, rupturas, sensibilidades peculiares no interior de uma época.
Acontece que a inventariação cronológica linear é praticamente impossível dado que muitos espécimes não estão datados e a operação de datação só poderá ser feita por aproximação. Com segurança só é possível datar sequêncialmente e com elevado grau de precisão os temas produzidos pelos cursos de quintanistas nas suas despedidas anuais. Por outro lado, a distribuição cronológica de temas apenas fora tentada por António M. Nunes no tocante ao período 1790-1900, encontrando-se ainda incompleta. Já se intentou uma iniciativa deste género na antologia discográfica Tempos de Coimbra. Quatro décadas no canto e na guitarra (1984, 1990, 1992, 2004), e os resultados afiguram-se francamente criticáveis, no que respeita a anacronismos, erros autorais e fragilidade na ilustração de certas épocas.
Outra hipótese seria trabalhar por autores, transcrevendo junto de cada nome as peças respectivas. Uma vez mais seríamos conduzidos a problemas complexos, na medida um que lote significativo de espécimes ficou no anonimato. Outra possibilidade seria realizar um tentame de inventariação temática, agrupando os espécimes por assuntos.
Outra possibilidade, porventura a mais aliciante, consistiria em inventariar os espécimes por movimentos estéticos, preenchendo as fronteiras (sempre movediças) da Proto-Canção de Coimbra, Romantismo, Belle Époque e Ultra-Romantismo, Primeiro Modernismo, Segundo Modernismo, Últimas Vanguardas, Pós-Modernismo. Acontece que o nosso consultor e colaborador principal, Coronel José Anjos de Carvalho, logrou avançar extensamente no emprego de outra modalidade de inventariação próxima da utilizada no estudo das modinhas brasileiras por alguns investigadores (modinhas bárdicas, modinhas árcades, modinhas estróficas. Cf. Baptista Siqueira, Modinhas do passado. Investigações folclóricas e artísticas, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1956, págs. 93-94). Aceite a sugestão do nosso Consultor-Colaborador e ouvido parecer do nosso técnico musical, o trabalho a desenvolver assentará no seguinte esquema:
SECÇÃO I: Canções Musicais Estróficas (ex: Balada do Encantamento), com cerca de 600 espécimes, embora não exista fonte musical para todos eles
SECÇÃO II: Canções Musicais com Coro ou Refrão (ex: Samaritana), com cerca de 200 espécimes
SECÇÃO III: Canções com duas ou mais partes musicais (ex: Fado Hilário Moderno), com cerca de 100 espécimes
SECÇÃO IV: Sonetos e Sonetilhos (ex: Dobadoira), com cerca de 30 espécimes
SECÇÃO V: Temas de Récitas de Despedida, com cerca de 200 espécimes (incluindo hinos, baladas, fados, marchas, valsas, barcarolas e outras)
SECÇÃO VI: Peças Instrumentais (ex: Variações em Ré Menor, de Artur Paredes), com cerca de 250 espécimes
V – Questões técnicas
-o formato da obra não deverá ser inferior ao normalizado nos manuais escolares portugueses, sob pena de comprometer a visualização do grafismo musical. Neste sentido propomos 27 cms de altura por 20 cms de largura
-o número médio de páginas por tomo não deverá exceder em média as 300 a 350. Caso contrário perder-se-ia o sentido prático e utilitário da obra
-poderão surgir dúvidas relativamente a questões autorais, uma vez que utilizaremos frequentemente matrizes fonográficas e partituras comercializadas por determinadas editoras. Julgamos que a natureza deste trabalho configura as situações acauteladas no Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos (Lei nº 45/85, de 17 de Setembro, artigos 75º e 76º). Trata-se de um projecto de natureza científica (recolher, estudar, preservar, inventariar) e pedagógica (apoio às escolas de canto e guitarra activas na Cidade de Coimbra)
-os trabalhos finalizados serão entregues em disquete para efeitos de edição
VI – Normas adoptadas
O presente trabalho de recolha, inventariação e transcrição musical tem por objecto a Canção de Coimbra, vulgarmente conhecida por Fado de Coimbra. Assim sendo, não se reporta directamente ao folclore local, nem ao Fado de Lisboa, nem a temas próximos do estilo de Coimbra que tendo sido cultivados fora de Coimbra nunca chegaram a integrar o cancioneiro local. Visando precisar com maior rigor e clareza o âmbito das tarefas a realizar, o Coordenador Geral e o Técnico Musical definiram algumas regras de procedimento a seguir explanadas:
a) - não serão inventariados os espécimes enquadráveis na categoria de Fado Beirão, na realidade fados coreográficos
b) - serão transcritas solfas de fados apenas em situações em que se tenha verificado transformação local significativa, ou reiterada utilização (Fado Corrido de Coimbra, Fado em Dó)
c) - na análise musical de cada espécime transcrito será utilizado vocabulário técnico apropriado. Pode acontecer que um tema tenha sido designado na linguagem vulgar do próprio autor por fado, fado-canção, fado-serenata, embora o seu conteúdo musical seja outra coisa. Nestes casos precisaremos que o título da obra é destituído de rigor musical
d) - cada partitura será encabeçada por uma ficha tipificada onde constarão sempre que possível: o título original da obra, seguindo-se a classificação (valsa, marcha, etc.); subtítulo, caso exista; designação vulgar detectada; incipit correspondente ao primeiro verso para os temas cantáveis; autor da música; autor da letra; origem do espécime; utilização inicial; data da composição
EXEMPLO:
Fado das Lapas (serenata)
Incipit: Oh Lua que sobes calma
Designação vulgar: Fado das Fogueiras
Música: Francisco Paulo Menano
Letra: Gustaf Adolf Bergstrom
Origem: Coimbra, Largo de São João de Almedina
Utilização inicial: Fogueiras de São João
Data: 1910
d) - imediatamente a seguir ao cabeçalho identificativo procede-se à transcrição musical da peça
e) - a seguir à partitura figurará a memória descritiva contendo diversas informações biográficas, cronológicas, eventuais percursos evolutivos, sistema de acompanhamento, análise musical, estropiamentos, contrafacções, e todos os dados necessários a uma melhor compreensão da obra
f) - a letra transcrita em primeiro lugar corresponderá à versão original, podendo seguir-se variantes detectadas. Em não sendo possível aceder à letra original, transcreveremos a versão mais comum
g) - nos casos em que for impossível obter o título original, o espécime transcrito será identificado através do título vulgar ou do seu incipit
h) - não serão transcritas variantes literárias exógenas, quando a recolha indiciar que nunca tiveram aceitação em Coimbra (exemplo de Samaritana cantada com a variante O Trovador por Loubet Bravo)
i) - não serão transcritos temas de produção exógena, embora afins do estilo coimbrão, quando se comprovar que não tiveram vivescência local (exemplo de canções gravadas pelo cantor Ângelo Fernandes)
j) - não serão transcritos espécimes de despedidas estudantis provenientes de antigos liceus ou escolas superiores localizadas extra-muros
l) - os autores serão referidos pelo seu nome completo
m) - nas situações menos claras de autorias optaremos por “autor não identificado”, atribuído a “, “atribuível a”
n) - nos casos nublosos atinentes à datação usaremos classificativos tipo “primeiro quartel de”, finais do século”, “primeira década de”, “circa”, “não anterior a nem posterior a”
o) - nalgumas situações colidiremos com os dados constantes na Sociedade Portuguesa de Autores e fichas técnicas de grande parte da discografia comercializada em Portugal. Cite-se um disco do cantor Artur Almeida d’Eça onde o tema Eterna Canção indica a autoria musical correcta (António Rodrigues Viana), mas erra na letra, reportando-a ao Conde de Monsaraz D. António de Macedo Papança. Não se poderia corroborar um lapso desta monta, quando o autor da letra é comprovadamente Júlio Dantas. Também não serão confirmadas falsas autorias de letras, nos casos em que o texto literário seja anterior ao nascimento do autor a quem costumam ser atribuídas
p) - sempre que forem detectados erros musicais nas partituras ou fonogramas, os mesmos serão alvo de correcção, seguindo-se a devida explicitação na memória descritiva
q) - quando forem detectadas variantes musicais de um espécime será conferida primazia ao original. Pode suceder que a variante revista algum valor patrimonial autonomizado digno de menção. Nestas situações será transcrita a variante na respectiva ordem alfabética. Serve de exemplo o Fado do Mar Largo (Paulo de Sá) e a sua variante Água da Fonte. Tendo em conta a primeira gravação da variante com inovadores arranjos de guitarra por Carlos Paredes, não faria sentido ignorá-la
r) - as situações de contrafacção serão devidamente assinaladas em local próprio. Por exemplo, no verbete de Canção dos Malmequeres (António Menano) acrescentar-se-á que a melodia de Balada do Estudante gravada por Adriano Correia de Oliveira configura plágio sob a capa da menção “popular”, ou que o tema Olhos Verdes, registado por João Barros Madeira constitui contrafacção de Um Fado de Coimbra de Paulo de Sá
s) - pode suceder que a evolução sofrida por um espécime apresente reinterpretações dignas de vulto. Também aqui se atenderá ao original, ao primeiro registo fonográfico e a determinados tratamentos de que foi alvo. É o que sucede com a gravação Artur Paredes de Bailados do Minho e a sua reinterpretação décadas mais tarde por António Andias
t) – as transcrições musicais reportar-se-ão apenas às melodias
u) - quando a canção evidenciar falta de acerto entre a letra e a melodia, a situação será alvo de análise (caso de Ondas do Mar, de Carlos Figueiredo). Em se verificando que o trabalho de correcção musical altera a melodia proposta pelo autor, optaremos pela transcrição tal e qual, fornecendo informações complementares
v) - haverá sempre uma preocupação acrescida com o “espírito de época”, por forma a evitar anacronismos no tocante aos arranjos, afinações de cordofones e tipologia dos instrumentos de acompanhamento utilizados em cada época
x) - uma vez iniciada a publicação e acaso nos seja fornecido algum espécime desconhecido, este será integrado na obra, em local a designar
VII - O que são Canções Musicais Estróficas?
As canções musicais estróficas constituem o núcleo central dos vulgarmente chamados temas “clássicos”, tão veementemente criticados na década de 1960 pelos protagonistas do Segundo Modernismo da Canção de Coimbra. Não obedecem a uma estrutura melódica padronizada nem a esquemas de harmonização fixos. Os compassos adoptados oscilam entre o binário simples (predominante no século XIX), o quaternário, o ternário, e as marcações compostas. As melodias enquadram-se no Sistema Tonal, ora no Modo Maior, ora no Modo Menor. Via de regra, são árias destinada a solista (monodias), embora a repetição dos dísticos possa ser cantada em coro (muito raro).
São, acima de tudo, árias silábicas, dado que na esmagadora maioria dos temas inventariados a cada sílaba do texto poético corresponde uma nota musical. Muito raramente ocorrem fugas à estrutura silábica, mesmo quando se trata de trabalhos da lavra de compositores amadores. A estrutura poética mais cultivada desde a década de 1840 assenta no emprego da Redondilha Maior com versos de sete sílabas. As quadras adoptadas tanto glosam temas complementares como assuntos desligados, podendo ser adoptadas a partir do cancioneiro popular português ou colhidas num autor identificado/anónimo. Existem, contudo execepções, que percorrem sextilhas e décimas, perfilhando métricas mais complexas.
É nestas árias monódico-silábicas, sejam elas em compasso binário ou outro, em modo maior ou menor, com ou sem ais neumáticos, que a Canção de Coimbra mais de aproxima da Música Popular Portuguesa de estrutura tonal. É esta também a estrutura clássica do Fado Corrido, quando adopta a quadra. O expediente mais vulgarizado consiste em cantar o primeiro dístico de uma quadra (1º e 2º versos) e repeti-lo, o mesmo sucedendo com o segundo dístico. No fundo, trata-se de bisar a melodia (ex: Fado da Mentira).
Salvaguardando as necessárias e evidentes diferenças entre a estrutura melódica e o estilo vocal das peças coimbrãs de outras manifestação da música tradicional/regional portuguesa, poderíamos afirmar que o modelo é similar a inúmeras modas e danças do folclore português, servindo de exemplo a conhecida Sapateia da Ilha Terceira, gravada por Adriano Correia de Oliveira em 1972 (neste caso o solista canta cada um dos dísticos, sendo estes logo bisados em coro). Outra variante consiste em cantar integralmente a quadra a solo e rematá-la com a repetição do primeiro dístico (ex: Fado dos Passarinhos). Noutra modalidade assinalada opta-se por cantar a solo cada verso da quadra e repeti-lo de imediato (ex: Nossa Senhora de Vagos).
Quando alicerçadas no Modo Menor, muitas destas árias recolhidas e estudadas destilam um sabor nostálgico, romântico-sentimental, não raro plagencial, reforçado pela interpretação vocal e pelo teor das letras que persistentemente falam de saudades, sofrimentos indizíveis, da solidão e da morte, da separação materna.
Eis uma matéria onde importa inscrever nuances. A opção pelo modo menor não significa que todos os espécimes conimbricenses são plangenciais, nem que derivam do Fado Menor lisboeta. A cadência plagencial, tão presente em modas do folclore português, é dada as mais das vezes pelo cantor e pelos instrumentistas. Encontramo-la no Fado de Lisboa, em serenatas mexicanas, em árias operáticas oitocentistas, em modinhas luso-brasileiras, no chorinho brasileiro, em mornas caboverdianas, e em modinhas açorianas como a Saudade, a Lira, o Tanchão e o Meu Bem. Os fados lisboetas mais plagenciais terão dificuldade em competir com a açoriana Saudade. E no entanto ninguém se atreve a dizer que a Saudade é um “fado” ou um derivado do “fado”. Comparem-se os registos fonográficos de Edmundo Bettencourt e José Paradela de Oliveira no título Fado de Santa Cruz. Em Bettencourt temos uma sentimentalidade moderada. Em Paradela, a voz é lacrimogéna e a cadência plagencial.
A nível do trabalho instrumental de acompanhamento, subjaz a estas árias um esquema ascentral de dedilho, herdado da Viola Toeira, que consiste em ferir os baixões com a unha do polegar e as cordas finas com a unha do indicador. Há quem chame “puxadas”, há quem chame “tempo de fado”, a esta dedilhação arrastada que não ultrapassa o eixo tónica-dominante (ex: Ré Maior/Lá de 7ª) nas ocorrências mais ancestrais.
Momento digno de reparo no fluir da temporalidade e na estruturação das sensibilidades é, sem dúvida, a consagração do compasso quaternário e o emprego dos ais neumáticos ad libitum na geração de Manassés de Lacerda (1ª década do século XX). Embora respeitando no essencial a melodia primitiva de cada espécime, os intérpretes de árias estróficas – em particular os primeiros tenores operáticos da Belle Époque e os do Ciclo Ultra-Romântico – ficaram famosos pelo prolongamento ad libitum dos ais neumáticos intercalados nas transições das frases musicais, expediente também aplicado às “sílabas tónicas das palavras de efeito” (Óscar Lopes, 1987). Vejam-se para os primeiros Manassés de Lacerda, Agostinho Fontes Pereira de Melo, Francisco Caetano, e para os segundos António Menano, José Paradela de Oliveira, Lucas Junot, ou mesmo o outonal Fernando Machado Soares.
Quanto ao vocabulário tradicionalmente adoptado para identificar e classificar estes espécimes, são vulgares termos e expressões utilizadas indiferenciadamente: “fado do/da”, “fados de”; “fados dos/das”, “fado-canção”, “fado-serenata”, “canção”, “nocturno”, “fado número”. Não se poderia corroborar tamanha discricionaridade vocabular num trabalho desta natureza. É correcto chamar fado aquilo que efectivamente é fado. É incorrecto intitular fado um espécime que na realidade é uma canção ligeira, uma barcarola, um lied, uma valsa, um lundum, um tango, uma serenata.
Esta espécie de ultra-nominalismo acrítico e banalizador configura uma herança cancerígena de finais de oitocentos, inícios de novecentos, que rotulava discricionariamente na categoria de “fado” tudo o que fosse cantado com acompanhamento de guitarra. Secundando José Alberto Sardinha: “E foi tão importante a ligação entre o fado e a guitarra que esta se tornou até um elemento aglutinador de vários géneros musicais que, depois de o fado cair em moda, vieram também a integrar-se na designação de fado pela simples e única razão de serem acompanhados à guitarra” (autor citado, A Guitarra Portuguesa. Actas do Simpósio Internacional, Lisboa, ESTAR, 2002, pág. 122). Afinal quantas árias estróficas habitam o universo da Canção de Coimbra? Para o período 1820-2000 foram inventariados cerca de 600 espécimes. Este número não abarca a totalidade dos temas compostos neste lapso temporal. Duma ínfima percentagem não foi possível aceder às respectivas melodias.
27 de Agosto de 2003
(reformulado em Março de 2004 e em Maio de 2004)
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