sexta-feira, novembro 11, 2005

Na Ilha de Circe

Por António M. Nunes

Este texto foi escrito em Outubro/Novembro de 2003, a pedido de Carlos Alberto Dias, membro do grupo cívico Os Salatinas, e integrado no catálogo “Homenagem aos poetas nascidos na Alta de Coimbra. José Ferreira Monte. João José Cochofel. Manuel da Silva Gaio. Amélia Jany”, Coimbra, Edição da Câmara Municipal de Coimbra, 22 de Novembro de 2003. A referida obra foi complementada por outra, coordenada por Manuel Zolino da Silva Figueiredo, “Amélia Jany. Miscelânia poética. Homenagem aos poetas salatinas”, Coimbra, Minerva Coimbra, 2003 (com o apoio da CMC), de certa forma num esforço de prolongamento das iniciativas levadas a cabo em Novembro de 2002 a propósito do 1º centenário do nascimento do barbeiro e guitarrista Flávio Rodrigues (Cf. “Centenário do nascimento do guitarrista Flávio Rodrigues da Silva. 1902-2002. Os Salatinas na defesa dos valores populares da Velha Alta de Coimbra”, Coimbra , Edição do Pelouro da Cultura da CMC, 10 de Novembro de 2002; José dos Santos Paulo e António M. Nunes, “Flávio Rodrigues da Silva. Fragmentos para uma guitarra”, Coimbra, Minerva Coimbra, Novembro de 2002).

Há sítios que nos atraem, movem e comovem, tocando-nos o lado poético da alma. São a nossa casa. Como que constituem traves mestras da nossa memória e identidade. Cheiros, cores, pedras, sons, são-nos familiares e apaziguadores. Pelo significado que habitualmente se lhes confere e pela peculiar significação que lhes atribuímos.
Calcorreei o que restava da Velha Alta Salatina pela primeira vez em catorze de Outubro de 1985 e durante anos por lá vivi, aboletado no íngreme e acanhado Beco da Anarda. A primeira impressão foi de desagrado, habituado que estava ao mar e às cantarias basálticas. Tudo me parecia castanho, terroso, íngreme. O rio era um fio de água no meio do areal. Cheguei e meter-me no combóio para ver e cheirar o mar na praia da Figueira. A pouco e pouco fui-me rendendo aos feitiços de Circe, pese embora pálida sombra dos vicejos d’algum tempo. Não digo isto apenas por vício malsinante, nem por achar que o antes é sempre melhor do que o depois. A Alta antiga tinha ruelinhas penosas e esconsas, casebres insalubres e mal escorados, sociabilidades feitas de gentes que de tanto se verem e encontrarem, por vezes mergulhavam nas cosquice, no rumor hediondo sobre vidas e hábitos menos convencionais. Era aquele lado provinciano, aldeão e boçal da vida coimbrinha. Mas, compare-se o que restou de larguinhos, ruas, cantarias, fachadas, com os brutais mamarrachos da arquitectura monumentalista/clássica salarista, encaixada violentamentamente na acrópole. Neste caso, o "novo" não é melhor do que o "velho", e nem sequer constitui solução para a não prevista sobrelotação dos espaços. De simples lugar para dormir e estudar, a Alta passou a espaço conivente de crescimento cultural e de maturação da minha personalidade.
Que esta Ilha de Circe tivera outros encantos, breve o percebi. Em 1986 um amigo instou-me a folhear o álbum fotográfico "A Velha Alta Desaparecida" (AAEC, 1984). Seguiram-se a "Exposição O Postal Ilustrado. Contributo para a Imagem de Coimbra" (28/Junho a 15/Julho de 1986), o "Primeiro Encontro Sobre a Alta de Coimbra", promovido pelo GAAC em 23, 24 e 25 de Outubro de 1987, e a reabilitação das Fogueiras de São João em Junho de 1986.
Sensível a incursões de natureza etnográfica, tive a sorte de conhecer e de aprender muito com Armando Carneiro da Silva e António José Soares. E também conheci inúmeros antigos estudantes universitários, como o guitarrista Afonso de Sousa e o compositor Eduardo Tavares de Melo, que à maneira dos hebreus por Babilónia choravam a "sua" Velha Alta perdida: a de suas juventudes e a outra que fora demolida. Ninho dos Salatinas, a Alta aqui evocada era também a casa mãe de milhares de antigos estudantes espalhados pelo país e pelo mundo. Um espaço geográfico que se convertera em espaço mental alargado. Uma “Sião Bem Amada”, para invocarmos as palavras de Antero de Quental naquele acto de rebeldia tão romântico quanto febril que foi A Rolinada (Maio de 1864).
Mas, que era feito da Alta dos alfaiates, dos encadernadores, dos belos ferros forjados, das canções, das tascas ornadas de loureiros, das serenatas, das ruidosas latadas, dos esconjuros com panelas ao Ano Velho, do funéreo cantochão Bolinhos/Bolinhós pelos Fiéis Defuntos, das Fogueiras do São João, dos mandadores, das barbearias, dos dedilhos de guitarra e viola toeira, do teatro popular amador, dos pregões, da Procissão do Corpo de Deus, da Feira Franca dos Estudantes, da Feira dos Lázaros? Pouco ou nada restava. Nenhum etnólogo demorara junto dos salatinas em estudos e recolhas de cultura popular, salvo Francisco Adolfo Coelho que em 1879 publicou diversos Contos Populares Portugueses (Carochinha, Coelhinho Branco, A velha e os lobos, etc.). Nenhum folclorista perdera o seu precioso tempo a gravar modas, canções, danças e toques. Nenhum musicólogo empregara o seu labor a recolher, a estudar ou a transcrever essa tão amada, desconhecida e incompreendida Canção de Coimbra, afinal nascida nas malhas do Bairro Salatina.
Como é possível que as elites coimbrãs e as suas instituições culturais tenham feito orelhas moucas a um património que corria risco de inexorável perecimento? Como é que é possível "ninguém ter percebido que tudo isto se perderia"? Imprudência, orgulho saloio, cegueira balofa, arrogância tola, ajudaram a perder sem apelo nem agravo um riquíssimo património arquitectónico, cultural, etnográfico e afectivo, do qual só nos chegam magras migalhas contidas em fotografias, postais ilustrados, memórias de antigos estudantes, poemas descritivos e evocativos, raros fragmentos fonográficos. Não haja ilusões, estas tradições teriam sempre desaparecido, fruto das transformações urbanas, culturais, populacionais e das novas formas de divertimento. Admira até que tenham permanecido até tão tarde numa cidade, fenómeno explicável pela sobrevivência atávica de comportamentos e de costumes do agrado do Estado Novo. No entanto, poderiam ter sido alvo de campanhas de recolhas que possibilitassem o seu arquivamento e salvaguarda documental.
Compreendemos que até 1974 as instituições culturais locais e as famílias salatinas desalojadas não tenham podido ou desejado falar, ou que não tenham forçado qualquer iniciativa no sentido de homenagear, rememorar, recolher documentos e testemunhos orais. Afinal, quantas famílias foram expropriadas e quantas almas tiveram de abandonar a Alta nas décadas de 1940-1950? Ninguém tem uma palavra a dizer, uma recriminação, uma lágrima para chorar, um requiem, um luto? Mas já não compreendemos que após 1974, as associações cívicas, a Câmara Municipal e a Universidade tenham permanecido silenciosas. A Universidade de Coimbra teve pesadas responsabilidades no projecto político que ditou as expropriações administrativas, as deportações forçadas de moradores, a morte simbólica e cultural de certas vivências. Poderia e deveria ter liderado a constituição de um núcleo de trabalho destinado a estudar, recolher, divulgar, de forma sistemática o que ajudara a extirpar.
Na década de 1980 começaram a surgir núcleos cívicos sensíveis à defesa e divulgação das coisas da Alta. Um desses grupos foi Os Salatinas, conjunto variegado de sensibilidades apostadas em reivindicar o direito à memória. Sem personalidade jurídica, sede, verbas, Os Salatinas têm insistido na concretização de encontros anuais, homenagem a pintores, amostragens de poesia, recolha de fotografias junto de particulares, dignificação toponímica, levantamentos biográficos, homenagem a figuras emblemáticas da sua Alta como o mandador Calmeirão, a poetisa Amélia Jany, José Trego, Flávio Rodrigues da Silva e os cultores populares da Canção de Coimbra.
Dentro das minhas modestas possibilidades tenho vindo a acompanhar todo este dinamismo e em devido tempo tratei de interpelar os interessados para a necessidade de se proceder à recolha exaustiva de testemunhos orais junto dos familiares dos desalojados, e também para a luta em torno de um memorial/monumento de homenagem às vítimas das expropriações/demolições perpetradas pelo regime salazarista.
Com a evocação dos poetas Salatinas e a redescoberta de Amélia Jany creio estarem criadas as condições mínimas para o reconhecimento público da utilidade deste tipo de iniciativas cívicas. Não sendo possível recuperar o património perdido, é contudo desejável apoiar projectos saudáveis de redescoberta das raízes culturais e simbólicas, participando na cauterização de ferimentos que por muito tempo ainda permanecerão abertos.
Evocações, homenagens, estudos, recolhas, edições sistemáticas da Música Tradicional de Coimbra, reconstituições histórico-etnográficas (Feira Medieval, Feira dos Lázaros, Cantar dos Reis, Fogueiras de São João, Serenata das Tricanas e dos Futricas), abertura de espaços museológicos, exposições documentais, publicações fotográficas, configuram-se iniciativas de aplaudir, num processo onde vítimas e responsáveis nunca procuraram chegar à fala. Por longo tempo a taça de Circe converteu homens em repulsivos suinos. Com estas e outras iniciativas, creio que Circe poderá ainda entreter-se a magicar bons feitiços, convertendo a bestialidade de ontem em humanos encantos de agora.

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