Tricana do Vicente
No final da 1ª Grande Guerra, um pouco por todo o mundo ocidental, o vestuário feminino sofreu assinaláveis transformações. Emergiram os "loucos anos 20", e com eles a bainha das saias e vestidos subiu do tornozelo para o joelho. Foram os escandalosos anos do corte de cabelo curto, à "garçon", protagonizado pela "Maria-Rapaz". Estas novidades não afectaram grandemente o mundo rural, cujo vestuário tradicional foi desaparecendo a um ritmo mais lento, em todo o caso irreversível.
A chamada "Tricana do Vicente" foi o derradeiro trajo tradicional feminino digno de registo em Coimbra: sapato preto de camurça, saia preta pelo joelho, blusa branca, xaile de merino preto com as famosas oito pontas, lenço preso em forma de touca e gargantilha. O xaile, consoante o modo como se cingia, indicava condição de casada ou de solteira. A gargantilha, anterior ao aparecimento deste trajo, é uma fita preta de veludo, de atar ao pescoço, designada por VICENTE. O seu inventor foi o antigo estudante, boémio, poeta, dramaturgo e namorador Vicente Miguel de Paula Pinheiro de Melo (1881-1925), 3º Conde de Arnoso, formado em Direito no ano de 1907. O facto de o seu inventor ter falecido tuberculoso em Lisboa, corria o dia 15 de Junho de 1925, pode ter ajudado a cimentar junto das mulheres de Coimbra o uso da gargantilha.
Embora este trajo constasse do guarda-roupa do Rancho das Tricanas de Coimbra, a produção turística rejeitou-o, preferindo ostensivamente, nos postais, nos barros, no cinema e nos cartazes, a tricana do período 1880-1900. Para que o processo de invenção resultasse eficaz e convincente no plano dos simulacros culturais directamente inventados pela indústria do entretenimento que se alimenta e nutre a sociedade de consumo, tornou-se necessário ficcionar que a Capa e Batina não era um uniforme mas antes um pseudo trajo popular. Nascia a parelha virtual "estudante e tricana".
Reconstituição e foto: Doutor Nelson Correia Borges para o Grupo Folclórico de Coimbra. Os trajos populares de Coimbra apresentados nesta selecção não esgotam a totalidade do extenso guarda-roupa que o Grupo Folclórico de Coimbra costuma exibir regularmente nas suas actuações com pedagógicas notas explicativas.
Nas matérias de História e Geografia de Portugal do 6º Ano do Ensino Básico (vida quotidiana oitocentista em Portugal) e no programa de História do 8º Ano (O Antigo Regime e a Sociedade de Ordens: o Povo) há lugar ao afloramento dos trajos populares portugueses.
Nos anos recentes, grupos de docentes de Educação Visual levaram a cabo na disciplina de Área de Projecto estilizações de trajos populares regionais, na técnica dos fragmentos mosaicos multicolores colados, seguindo sugestões de cartões esboçados pelo artista Zé Penicheiro. Esses painéis costumam ser assentes em fachadas e muros exteriores dos edifícios escolares, contribuindo para a humanização das escolas públicas.
As gravuras de época, os documentos escritos e as reconstituições credíveis dos trajos populares podem ser entendidos como elementos úteis à compreensão da realidade histórica, desde que não caiam em discursos imobilistas, omitam as duras condições de vida do campesinato, bem como a higiene precária, a falta de bem estar e a economia de subsistência a que andavam ligadas as gentes do povo. Em contexto escolar, a reconstituição de ambientes de época através de réplicas de trajos populares pode desempenhar um papel de relevo na ilustração do período manufactureiro que precedeu a industrialização, exemplificando os ciclos da produção artesanal do linho e da lã, as técnicas tradicionais de confeccção de vestuário, as artes da tinturaria dos tecidos e os processos de limpeza (lavar, corar, barrelar, engomar, remendar).
Uma palavra de agradecimento ao Prof. Doutor Nelson Correia Borges e ao Grupo Folclórico de Coimbra por terem satisfeito de boamente o nosso convite. Esperamos dar notícia de outros trajos reconstituídos e, caso se note alguma incorrecção nas legendas, prontamente as corrigiremos. O nosso Bem-Hajam!
AMNunes
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