quinta-feira, julho 27, 2006


"Coimbra Spaghetti" Posted by Picasa
Aproximação imagética a um cartaz promocional do controverso filme "Capas Negras", existente no acervo do Museu Académico. O cartaz foi pincelado com uma camada de verniz na década de 1950, pormenor que dificulta a reprodução fotográfica deste curioso documento iconográfico.
As imagens da película "Capas Negras", do realizador Armando Miranda, foram captadas em 1946. O filme estreou em Lisboa, no cinema Condes, a 10 de maio de 1947, e em Coimbra, no cinema Tivoli, numa 2ª feira, dia 19 de Maio de 1947.
Alvo de tremenda contestação, quer nos sectores direitistas, que nos meios reviralhistas, o protesto estudantil dos sectores que liam o enredo do filme como um afrontoso "Coimbra Spaghetti", não impediu o imenso sucesso de bilheteira registado em Portugal e no Brasil. Enquanto Amália Rodrigues catapultava o falso musical conimbricese "Avril au Portugal" nos meios franceses e norte-americanos, Alberto Ribeiro aproveitava para gravar no Brasil temas como "Feiticeira".
No reino do sonoro, o aproveitamento de motivos académicos para fins cinematográficos terá começado com o enredo de José Cottinelli Telmo para o filme "A Canção de Lisboa" (1933). A estória decorria em Lisboa, protagonizando Vasco Santana o boémio e esturdioso estudante de Medicina, mas alguns dos condimentos do "boneco" estudantil foram colhidos na tradição coimbrã.
Os motivos académicos de Coimbra pareciam constituir um filão apetecível à indústria cinematográfica voltada para a comédia musical, o ruralismo, o folclorismo e o tipicismo regional. Contrariando as prospecções de mercado, a contestação ao filme "Capas Negras" foi de tal ordem que a indústria de bens culturais recuou estrategicamente. Procurando apaziguar os ânimos, em 1948 os sectores afectos ao regime anunciaram a intenção de realizar um filme sobre a vida de Augusto Hilário, cuja parte biográfica, histórica e etnográfica seria assessorada por estudantes. O filme "Hilário" não passou de um enunciado de intenções. As apetências governamentais optaram pela transmissão de pacíficas "serenatas" em formato radiofónico, prática que se manteve até 1974.
Perante o recuo do campo cinematográfico, não é possível vislumbrar que caminhos teria tomado o uso da Canção de Coimbra após a incursão de 1947. Seria certamente uma produção do tipo "Coimbra Spaghetti", assente em temas e cenários esteriotipados, obedecendo a manipulações iconográficas para fins de entretenimento das massas.
Foi o que se verificou com os campos trilhados na época de ouro do vinil (formatos ep e lp) pela indústria de entretenimento liderada pelas casas de fados e editoras contíguas. O grosso da produção, ainda mal conhecida, ocorreu entre os alvores da década de sessenta e a transição dos anos 70 para a década de 1980. Nos anos 50 e 60 as gravações assentavam pesadamente em reportório estrófico, textos conservadores (os quais podiam ser fabricados especificamente para efeitos de montagem de espectáculos encenados por casas de fados, ou obedecer a fórmulas promocionais avançadas pelos estúdios de gravação e distribuidoras. Nestes casos, os textos seguiam fórmulas esteriotipadas), tocata típica de casa de fados (por exemplo, com guitarra de fado e violão baixo) e tentativa de reprodução da iconografia "capa e guitarra".
Nas situações mais flagrantes, a mercadoria "Coimbra Spaghetti" é imediatamente detectável pelo acompanhamento feito com tocata de fado em técnica de fado, a que acresce a vocalização muito formatada pelo estilo fado. Em cantores provenientes de sectores externos às casas de fados (corais, Emissora Nacional), a vocalização ressente-se de desempenhos que na época eram considerados como não integrando as fronteiras da "escola de Coimbra".
O trabalho de produção de capas de discos raramente ultrapassa as fronteiras do convencional virtual, podendo convocar imagens da Universidade de Coimbra (a Torre, obrigatoriamente), um cantor com capa traçada e guitarra de Lisboa ao colo, ou a clássica associação estudante/tricana (o cliché Capa+Guitarra ao colo constitui no universo estudantil uma eficaz transposição da iconografia Xaile+Guitarra da suposta imagem de Maria Severa, durante muito tempo vista como castiça cigana de xaile. Na década de 1980 ainda foi motivo de capa de disco de um antigo cantor de Coimbra)*.
Para a década de sessenta podemos indicar as vozes de João Queiroz, Américo Lima, Américo Silva, Ângelo Fernandes, Carlos Gonçalves, Jorge Lima e José Borges. Nos anos 70 são conhecidos Valdemar Vigário, Alves de Oliveira, Fernando Ventura e Frederico Vinagre. Um dos instrumentistas mais activo neste tipo de produções foi o guitarrista António Chaínho.
Há ainda produções discográficas menos pacíficas em termos de classificação, contudo não enquadráveis ipso facto na "escola de Coimbra", como acontece com Maria Teresa de Noronha (esta muito apreciada por certas figuras ligadas a Coimbra) e Loubet Bravo.
Esta matéria merece obviamente um longo e aprofundado estudo. Ao primeiro olhar/audição, e situando a questão no campo do fabrico de produtos-mercadorias para consumo das massas, não nos parece simples coincidência o facto de o grosso da produção vinil dos "Coimbra Spaghetti" ter ocorrido no ciclo de maré alta dos "Western Spaghetti" rodados em Espanha por realizadores italianos no período 1963-1977. O Tango não terá vivido na mesma época um processo semelhante, balizado entre os arrulhos do clássico feito em Buenos Aires, as mal amadas apropriações parienses/nova-yorkinas e as iconoclastias de Astor Piazolla?
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*Durante longas décadas, nada aproxima a iconografia da CC da iconografia convencional do Fado. Compare-se, por exemplo, a imagem de Augusto Hylario, de Capa e Batina e guitarra ao colo, em figurino próximo do seminarista/ou padre, com o quadro O FADO pintado em 1910 por José Malhoa.
A introdução do xaile no universo mitográfico do Fado (de Lisboa) terá começado a germinar por volta de 1901, data em que Júlio Dantas (1876-1962) editou o drama em quatro actos A SEVERA. Nesta peça de teatro, Dantas seguia uma tradição oral oitocentista recolhida por Alberto Pimentel ("A Triste Canção do Sul", 1904), a qual pretendia que a Severa fora uma cigana dissoluta.
Na peça de teatro estreada no São Luís em 25/01/1901, a actriz Ângela Pinto (1869-1925) representava o papel de Severa com trajos ciganos, nos quais se incluía um xaile. Uma aguarela de Alberto de Sousa mostra o boneco da Severa com um xaile muito garrido, "tradição" que veio a ser adoptada no filme de Leitão de Barros "A Severa" (1931).
Neste 1º sonoro português, a actriz Dina Moreira de Oliveira (1902-1985) contracena vestida de "cigana", com xaile florido e longamente franjado. O figurino tipo Severa=cigana prevaleceu em estampas de caixas de fósforos, no filme "A Severa", na capa da partitura impressa de o "Novo Fado da Severa", no livro de Sousa Costa "Severa", e em algumas fadistas como Maria do Carmo ""Alta" e Hermínia Silva (1907-1993). Nos derradeiros espectáculos gravados, em idade avançada, Hermínia Silva envergava um "manteau" de Manilla, em branco floral, com cadilhos longos e enramados, numa clara alusão à suposta veracidade da Severa-cigana.
A divulgação do xaile preto, combinado com vestido preto, parece que se deve a Amália Rodrigues. Esta imagem de marca surgiu em 1946, quando Amália integrou o elenco da opereta "Mouraria", onde interpretou o papel da fadista Cesária ou fadista de Alcântara (décadas de 1870-1880). A actriz e fadista Amália envergava vestido preto longo, lenço branco, xaile preto, com guitarra ao peito, propondo um visual hollywoodesco sofisticado. Em início de profissionalização, Amália usou xailes garridos, de tipo Manilla, em padrão negro com florinhas multicolores, que a aproximavam da lenda da Severa-cigana. Também em 8/03/1955 Amália incarnou o papel de Severa, numa reposição da obra de Júlio Dantas, tendo representando em trajos ciganos com guitarra no regaço (comparar este cliché com a mesma Amália na capa da revista "Vida Mundial", de 6/12/1945).
Em testemunho a Vítor Pavão dos Santos ("Amália. Uma biografia", 1ª edição, 1987), Amália Rodrigues informa que quando começou a frequentar as casa de fados como cantadeira estreante, à volta de 1939, as fadistas de nomeada no cartaz das casas costumavam cantar os fados com xaile pelos ombros e mãos à cinta.
Amália não precisa que tipo de xaile seria (preto, Manilla, outro), acrescentando apenas que destestava a referida pose vulgar. Tudo parece apontar para o xaile Manilla, popularizado nas casas de fados após o retumbante sucesso do filme "A Severa" (1931). Em 1946, adoptando o vestilo preto de cerimónia e o xaile negro, Amália reinventa a iconografia da fadista. Retira-lhe o aspecto vulgar e castiço da garrida Severa (que comprovadamente nunca foi cigana), suprime os ares de varina pregoeira com as mãos nas ancas e, imprime à fadista um visual austero, supostamente recebido de Cesária.
Evidentemente que se Severa não fora afinal cigana, muito menos no tempo de Cesária eram usados xailes pretos em Portugal. Todavia, a incorporação do xaile preto no universo do Fado não coube inteiramente a Amália Rodrigues. A opereta "Mouraria", de 1946, constituíu uma reposição da 1ª exibição feita em Lisboa, no teatro Apolo, a 28 de Novembro de 1926. Nessa opereta, com música do maestro Filipe Duarte, a cantadeira solista era Adelina Fernandes (1894-1983), uma notável soprano da década de 1920 que quanto a nós também interpretava excepcionalmente bem temas da Canção de Coimbra. Uma vez mais a história era falsificada. Maria Cesária, fadista de Alcântara, era falsamente domiciliada na Mouraria. Na referida opereta, Adelina Fernandes vestia xaile preto, em ilustração de um fado que então cantou, intitulado "Fado do Xaile". Temos boas razões para admitir que Amália Rodrigues se inspirou na Adelina Fernandes de 1926 para a teatratização avançada em 1946. Ainda assim, importa não perder de vista que no filme "A Canção de Lisboa", estreado em 07/11/1933, a fadista "Maria Albertina" canta no "Retiro do Alexandrino" com um xaile preto pelos ombros. Por conseguinte, antes da revolução amaliana, o xaile preto já seria usado ocasionalmente por algumas fadistas, pese embora sem a toilette cerimoniosa que passou a combinar xaile preto rico+vestido de gala preto.
Resgatadas as datações, só após a opereta "Mouraria", de 1946, é que alguns estudantes de Coimbra puderam intentar uma aproximação entre a páupera iconografia dos cultores da Canção de Coimbra e a nova imagem da fadista inventada por Amália Rodrigues. Mais difícil será explicar a sobrevivência desta aparente assimilação/fusão iconográfica na 2ª metade da década de 1980, sem perder de vista a lenta e agónica glaciação que lhe andou associada.
Aqui e ali sucedia, embora muito raramente, estudantes de Coimbra imitarem imagens fadísticas masculinizadas. Neste caso, a escolha recaía sobre Alfredo Marceneiro. Numa fotobiografia de Adriano Correia de Oliveira encontramos uma fotografia onde o cantor (Manuel Reis, "Adriano. Presente!", 1999, pág. 123) assume essa pose.
E dado que se falava de xailes: a associação do xaile floral cigano à figura da fadista Maria Severa Onofriana (1820-1846) é historicamente impossível pois Maria Severa não era cigana nem consta que tivesse ligações culturais ou musicais aos meios ciganos. No tempo da Severa o xaile ainda não fizera a sua introdução na indumentária portuguesa, usando-se à época capotes, capoteiras e mantilhas. Uma das peças mais típicas da Lisboa desse tempo, tipo "tapa-tudo", era o "josezito", um capotão com mangas pendentes, estudado e retratado abundantemente por Marina Tavares Dias; a tentativa de ligação do xaile preto à fadista Maria Cesária (décadas de 1870-1880) não é confirmável, pois no período referido tal peça de vestuário não integrava ainda a indumentária feminina portuguesa. Existiam xailes, mas nenhum deles era ainda o xaile preto de merino com cadilhos, nem seus variantes com belos enramados em relevo. Pelo que... qualquer semelhança entre o xaile preto do Fado e a Capa estudantil só pode ser fruto de imaginação fértil!
AMNunes

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