terça-feira, novembro 21, 2006


O Poder da Arte Posted by Picasa
Nos 50 anos da Cidade Universitária. Um livro para ler na Tomada da Bastilha
410 páginas e 263 fotografias são o resumo possível da tese de doutoramento de António Nuno Rosmaninho Rolo (ANRR) arguida na Faculdade de Letras da UC em 2002 e editada em livro pela Imprensa da UC no dia 01 de Maio de 2006.
Confesso que tenho dificuldade em falar desta tese, tal é sua magnitude científica, o exaustivo labor investigativo, a demorada devassa das fontes, a triagem da armadilhada memória oral, o romper caminho num terreno inculto onde feneciam os caboucos metodológicos e conceptuais, os teimosos silêncios dos "deportados" da Velha Alta, as arrogâncias da prepotente "razão de Estado", o leviathanismo expresso nos pavilhões que vozes tristes do meu tempo de Coimbra chamavam "mamarrachos", as formulações a posteriori de um novo conceito de "património" que não existia nas décadas de 1930-40-50 e o muito que me dizia afectivamente o tema. Seja como for, a obra de ANRR configura um trabalho inovador, rasgando janelões onde pouco ou nada se sabia (meia duzia de linhas epidérmicas num José Augusto França). Da sua estimulante leitura poderão surgir a breve trecho desejáveis projectos sobre paços dos concelhos, caixas gerais de depósitos, correios, quartéis, hospitais e tantos outros projectos à espera de seus investigadores.
E porque me dizia e diz o tema, longamente falei com o autor durante a fase final de preparação da tese, perguntando-lhe por questões que ainda não estão definitivamente respondidas nem apaziguadas no meu espírito.
A versão sintetizada, vertida em livro, distribui-se por 6 grandes capítulos. Em "O Estado Novo e a Arte", ANRR urde a ganga teórico-metodológica que sustenta o vasto projecto de investigação, mergulhando decididamente em questões não aprofundadas pelos investigadores portugueses mais directamente ligados à temática das obras públicas/artes decorativas do Estado Novo. Assim é que responde de forma clara ao ser da arte totalitária, das manipulações do classicismo monumental, das ligações entre Estado e arte e à pergunta fulcral do controlo dos artistas, arquitectos e demais agentes do Estado.
As questões esmiuçadas ganham mais lata inteligibilidade quando confrontadas com o complexo problema do "nacionalismo" estético e dos usos a que esteve sujeito quando se lhe pedia que fosse esteio da identidade nacional.
No capítulo II (Os Planos da Cidade Universitária) o autor desvenda o que nas décadas de 1920-1940 significava "Cidade Universitária" na óptica dos lentes da UC e dos membros da comissão governamental das obras. Este entendimento afigura-se absolutamente crucial para se entender os motivos que conduziram a localizar o projecto na Alta e não noutro espaço da cidade. O capítulo III (O património esquecido) passa em demorada revista os espaços a preservar/transformar, as demolições concretizadas e alguns projectos "virtuais". Em escrita fluída e fleumática, ANRR demonstra as ambivalências do conceito de "património" na óptica dos agentes da política cultural do Estado Novo. O predomínio da visão monumentalista e a falta de respeito pela arquitectura não erudita conduziram a uma espécie de "solução final" que só bastante mais tarde seria elevada à categoria de "muro das lamentações". O partido eugénico, apostado na ablação dos prédios "degradados" e "sem valor", prevaleceu no meio universitário, num misto de colaboracionismo, resignação e falsa neutralidade. No caso dos lentes da Faculdade de Direito foi um quase encolher de ombros, sobretudo a partir do momento em que o regime lhes garantiu que deixaria intactos o Paço das Escolas e os Gerais. O entendimento da UC como uma instituição de elites, mais liceu em ponto grande do que propriamente «universitas», não permitiu vislumbrar o fenómeno de massificação do ensino nem o breve problema da sobrelotação dos novos pavilhões (problema aliás comum aos tribunais edificados nos centros históricos).
O capítulo IV (Autores e intérpretes da Cidade Universitária) centra-se sobre o papel individual e colectivo protagonizado por organismos de Estado, membros do governo de Oliveira Salazar, a Universidade, a edilidade, o Ministério das Obras Públicas, os lentes, os arquitectos, os artistas convidados, os expropriados e a imprensa periódica. O capítulo V (O poder da arquitectura) percorre os edifícios da Cidade Universitária, convidando a uma sinalização dos elementos do classicismo monumental totalitário, regionalismos e ecletismos, com revisitação de instalações desportivas, mobiliário, arranjos urbanísticos e interpelações ao estimulante problema da recepção estética. No capítulo VI (A retórica do imaginário) aflora-se o significado do classicismo como linguagem do regime/poder e o programa decorativo vazado na estátuária, relevos, cerâmica, frescos e tapeçarias. Neles se regista a consagração do Saber numa nova Cidade Universitária afastada da cidade real dos homens e a exaltação da História de Portugal através da narração figurativa e da "epigrafia" solene. Nessa nova Cidade Universitária, decorada como "civitas ad usum regimen" a quase imperceptibilidade do símbolo da Sapiência é uma constante, quando a usança multissecular de tal símbolo deveria exaltar a autonomia (corporativa) da Alma Mater Conimbrigencis. Mas o que efectivamente se verifica, conforme escrevi noutro lugar, é a quase omnipresença da simbologia retórica do Estado, na esteira de obras levadas a cabo na UC nos períodos de D. João V e de Pombal.
As "palavras finais" não deixam de conter uma certa esperança quando, alfim de longa jorna, rematam com novos olhares que trazem a "Alta de Volta".
Durante muito tempo, no após 1974, a UC não lidou confortavelmente com a Cidade Universitária (do Estado Novo). Por sugestão do Doutor Luís Reis Torgal, a obra acabaria por ser integrada no projecto de candidatura da UC a Património da Unesco, num ciclo em que a Universidade de Roma também já mereceu classificativo de bem a preservar pela singularidade da época em que foi construída.
Em dias de lembrar a Tomada da Bastilha, edifício demolido no âmbito das obras da Cidade Universitária, aqui ficam as palavras de apreço a Luis Reis Torgal (orientador-instigador do projecto) e a Nuno Rosmaninho Rolo. Num tempo em que o álbum "A Velha Alta... Desaparecida" (1984) se encontra inexoravelmente envelhecido e as tecnologias disponíveis permitem digitalizar, "reconstituir" e projectar autênticas reconstituições virtuais de exteriores e de interiores, não posso deixar de instigar o Doutor ANRR a avançar para uma «visita guiada ao que foi a Alta de Coimbra», até como forma de compensar a pouca nitidez que a impressão conferiu às magníficas imagens seleccionadas e também a lombada demasiado colada à mancha gráfica.
Fonte: António Nuno Rosmaninho Rolo, "O Poder da Arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra", Coimbra, Imprensa da UC, 2006, ISBN 972-8704-55-0
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