terça-feira, novembro 21, 2006

A outra face do espelho

Delinquências…
Por José Henrique Dias, Professor Universitário
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Quando eu era miúdo, anunciada a demolição da Alta coimbrã, as casas iam ficando vazias à espera do camartelo. Em paredes da Rua dos Estudos, do Largo da Feira, do Museu, começaram a aparecer, em leves traços de lápis, três misteriosas letras: _ FDM.
De fantasia em fantasia, ensaiavam-se descodificações as mais bizarras. Nesses tempos, o rapazio que ia ficando pelas bordas das partes condenadas continuava a ter no Largo da Feira o espaço ideal dos seus jogos.
Fosse a marca, jogo de botões que se acumulavam numa pequena cova, fosse o pião, na roda bota fora cinco secas a calhau, fosse o gavião no adro, agarra que puxa até a roupa ficar em tiras.
À primeira uma, à segunda duas, à terceira três, quem for para a escada é cão e o último é gavião. Grupos para um e outro lado, com limites marcados pelas guias do lajedo, territórios bem delimitados para a caça significante do jogo que significava manifestações de força e poder.
Na escadaria da Sé ou nos bancos do Largo, quando se entornavam sombras das árvores que orlavam todo o espaço, liam-se as histórias aos quadradinhos de O Mosquito. Deleitávamo-nos com as trapalhices do Serafim e Malacueco, reproduzíamos lutas entre índios e cabóis. No Largo do Museu, com a bola de trapos, faziam-se campeonatos de muda aos cinco e acaba aos dez.
A polícia cercava e era imperativo furar o cerco, entrando pela porta do museu, saltando para a mata que dava para a Estrada dos Jesuítas, transmudada para Abílio Roque na República e que para sossego das almas acabou em Padre António Vieira no salazarismo. Assim ficou.
Nem resquícios de jacobinismo nem reabilitação dos apóstolos (conservaram a Couraça) que não fosse pela sub-reptícia consagração do prolixo autor do fabuloso Sermão da Sexagésima. Frequentar a toponímia remete-nos para o embalo das danças e contradanças políticas, a compasso metronómico.
Quando não tínhamos tempo de saltar para a mata, arriscava-se subir o portão das cozinhas do hospital, por onde todos os dias, ao fim da tarde, saíam bidões de lavadura, levados numa carroça sabe-se lá para alimento de que porcos. Um jogo de bola dava direito a prisão e podia ir-se parar à Tutoria, nos Olivais, com direito a fardeta azul escuro. Para se ver bem quem era delinquente.
Delinquência por uns pontapés numa bola de trapos na via pública. Mais grave que os pontapés na liberdade. Mais grave que a falta de trabalho dos nossos pais. Pior que os meninos que iam num caixãozinho branco para a Conchada, porque a fome abria a porta do oportunismo a qualquer infecção. Infoexcluídos, em casas alumiadas a petróleo com a Rádio distante sonho dos mais remediados.
As misteriosas letras a lápis nas paredes, de desenho nem sempre uniforme, casavam com o suspense de alguns filmes que passavam no Sousa Bastos.
Havia sempre um que juntava uns patacos para ir para a Geral. Lá do alto a fita podia estar distorcida, as legendas soletradas com solavancos míopes. Mas dias a fio as histórias eram contadas e recontadas cena a cena, por notáveis narradores. Havia uns melhores do que outros. Havia mestres insuperáveis. Era como se tivéssemos lá estado, talvez melhor, tais os toques de emoção em que apostava a narrativa. Ia além das tesouradas da censura. Os beijos eram demorados, não apenas sugeridos.
Os amantes não se ficavam pela entrada no quarto, iam mesmo para a cama. Não escapava um encolher de ombros ou suspiro do Douglas Fairbanks, um sorriso adjectivado do Erroll Flinn, o esboço de um beijo do Tyrone Power ou o nasalar do James Stewart. Para ser como devia, até se acrescentava ao buço, por carbonizada rolha de cortiça, o bigodinho do Clark Gable. Sem uma falha, sabíamos de cor todos os tiques de James Cagney.
Com o sangue a ferver por baixo dos lençóis, sonhávamos com a Veronica Lake, acordávamos exaustos a pensar na Lana Turner, sorvíamos o sorriso de Mary Young, perdíamo-nos nos olhos da Paulette Goddard, da Greer Garson ou da Olívia de Havilland. Tudo retemperada antecipação de Bonecos de Luz de Romeu Correia ou da suave poesia de Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore.
Sem lupa de Sherlock Holmes ou perspicácia de Bogart, um dia o mistério das letras foi decifrado. Por vitoriosa revelação do seu autor. FDM – Fernando Duarte Marques, a partir de então definitivamente o Fêdêmê.
O Fernando levava-me uma boa mão cheia de anos. Quero acreditar que está por aí, elegante como sempre foi, salatina exemplar. Discreto como as letrinhas a lápis que, bem vistas as coisas, enchiam de vida as paredes de casas condenadas.
Da versão on line do semanário O DESPERTAR.

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