quarta-feira, agosto 24, 2005

Balada de Coimbra
Crónica assinada pelo Dr. Carlos Dinis de Figueiredo Júnior. Texto publicado no jornal estudantil Via Latina, de 20 de Maio de 1952.
Carlos Figueiredo nasceu em Niza em 1924. Residiu em Coimbra de 1939 a 1953. Concluído o curso de Direito, fixou-se longos anos em Angola, onde exerceu a profissão de notário. Como funcionário público trabalhou em diversos postos ultramarinos. Posteriormente ingressou na magistratura. Foi executante mediano de violão de acompanhamento e membro da Tuna Académica de Coimbra. Entre 1949 e 1982 compôs diversas melodias, sendo as mais conhecidas “O Sol anda lá no Céu”, “Sé Velha”, “Ondas do Mar”, “Rua Larga” e “Sonhar contigo ó Coimbra”. A maioria dos temas de que foi autor, de estrutura ligeira e xaroposa, encontra-se gravada no LP Saudades da Rua Larga (1981). Autor das melodias, o mesmo não se confirma para todos os textos poéticos registados em seu nome. Com uma carreira de funcionário público pouco clara, marcada por atribulado processo disciplinar, “Figueiralho” morreu em Lisboa por 1999, mergulhado em monacal anonimato.
A presente crónica não pode considerar-se um trabalho historiográfico. O autor baseia-se na História do Fado, de Pinto de Carvalho, publicada em 1903, profundamente envelhecida em 1952. Além da falta de rigor, o texto de Carlos Figueiredo contém erros factuais graves e arrufos místicos que se poderiam invocar para qualquer outro género artístico (algumas décadas antes, Bernardino Machado escrevera que o sentimento republicano que podia encontrar na natureza). Deve ser entendido essencialmente como um testemunho subjectivo de época e como reacção requentada à “Questão Capas Negras” que se arrastava desde 1947.
Este documento foi recolhido no espólio Edmundo Bettencourt em 1998 e alinhado para publicação na obra “Imagens e Representações da Canção de Coimbra”, cujos retardamentos justificam finalmente a sua reedição “on line”. Diversos informes complementares recolhidos nos últimos anos junto de Augusto Camacho Vieira, Fernando Rolim, Teotónio Xavier e Coronel José Anjos de Carvalho abrem-nos a possibilidade de publicarmos brevemente neste blog um inventário bastante exaustivo da obra gravada do autor que hoje invocamos (António M. Nunes)

A origem da mais popular das canções, denominada o fado, tem sido um assunto bastante controverso entre os investigadores e só por deduções mais ou menos aventurosas, podemos vislumbrar uma plataforma aceitável, cujos contornos se esbatem em presunções meramente admissíveis. Os romances fizeram incluir o Fatum na sua tão peculiar mitologia como sendo a vontade expressa por Júpiter e por outros deuses, no que respeita ao destino e predestinação dos homens, das cidades e das nações. O Padre Rafael Bluteau escreve no Vocabulário que “segundo esta doutrina de Santo Agostinho e São Tomás, fado é a disposição e providência divina que antevê os acontecimentos humanos”. Morais, na peugada dos teólogos, define o fado dizendo que “é a ordenança que se vê em as coisas por divina providência”. Os nossos poetas d’outrora, e até mesmo os modernos, sentiram-se dominados “pela crença na fatalidade do destino, cuja infelicidade lamentam como escravos da sorte”. Bem expressivo resultará o exemplo de Bocage com a sua quadra:

Que eu fosse enfim desgraçado
Escreveu do fado a mão...
Lei do fado não se muda;
Triste do meu coração.

É pelas canções populares que um país faz reflectir mais genuinamente os costumes, a sua maneira de ser, o seu clima, hábitos e o seu carácter nacional. As melodias, a necessidade de exteriorizar em canções a alegria comunicativa ou a tristeza, é uma questão de mar, clima, campo, sol e latitude... Assim, quanto mais para sul, mais se multiplicam as canções. Na França, as canções parecem querer traduzir “a alegria jovial da raça gaulesa e a canção revolucionária encontrou sempre neste país o seu terreno propício, sendo, muitas vezes, a única oposição aos seus governos”, dos quais se dizia que eram “uma monarquia absoluta, temperada pelas indomáveis e irresistíveis canções populares”.
Não surge como admissível a tese de se colher nos árabes a origem do nosso fado. Nem na Arábia, nem nas regiões onde se concentraram, como a Espanha ou Algarve surgiu um acorde que se assemelhasse ao nosso fado. É genuinamente português: nasceu em Lisboa, com origem marítima, depois da primeira metade do século XIX ali se desenvolveu e foi passear para a província, envergando então os berrantes trajos regionais respectivos... Devem ter sido, pois, o mar, as emigrações, a saudade dos ausentes, dos que ficavam nos cais a acenar com os lenços às pessoas queridas que partiam para longes terras, factores importantes no aparecimento das canções saudosas que depois se chamaram fado. Não deixa de ter certa significação o facto de ser o Fado do Marinheiro o mais velho fado do conhecimento do mais antigo guitarrista português Ambrósio Fernandes da Maia.
O nosso povo, crente na fatalidade inexorável do destino a que não pode fugir, só num passado relativamente recente começou a dar o nome de fados às canções que falam nas agruras do destino e na crença arreigada na lei irrevogável do fado. Os cantares do povo português são quase sempre lamentosos. Reflectem frequentemente a dor do amor e da saudade e, assim, nada como o fado para exprimir como mais exactidão o temperamento aventureiro da nossa raça, estruturalmente meridional e latina nas canções doloridas da paixão e do prazer saudoso... “a melancolia é o fundo do fado como a sombra é o fundo do firmamento estrelado”. Assim, não é de admirar que o fado encontrasse no coração do povo português o mais fértil terreno de expansão e desenvolvimento e penetrasse até impetuosamente na predilecção dos nobres, como dos condes de Vimioso e Anadia e D. José de Lencastre que foram exuberantes e apaixonados amadores do fado.
O barão de Lahontan, que esteve em Lisboa no século XVIII, diz “ alta noite vagueavam guitarristas pelas ruas tocando árias fúnebres como o De Profundis”. Não se podia ainda a isto chamar fado porque esta designação ainda não tinha surgido e só os escritores da actualidade, nacionais e estrangeiros, começaram a referir-se à expressão fado no sentido de canção popular, sendo no entanto de admitir que tais árias fossem já um contributo valioso para a sua futura estruturação... Nascido em Lisboa e conduzido depois para a província e revestindo em cada terra o sabor próprio das respectivas canções, foi, por exemplo levado para o Minho, como diz Camilo, “pelos jovens fidalgos que frequentavam a capital e queriam ir dar-se ares extravagantes de marialvas e fadistas nas suas terras”. A Coimbra foi chegando mais lentamente trazido por estudantes do sul que vieram frequentar a Universidade em sucessivas gerações académicas e que pouco a pouco começaram a sentir na alma a saudade pungente da abalada que se avizinhava e, com ela, o termo da sua mocidade académica, tão fértil de amores, despreocupação e boémia... Assim vestiu o fado a capa negra dos estudantes e começa nas vozes dos escolares a cantar o amor, a saudade, os anseios, a paisagem coimbrã, o luar...
O primeiro herói do fado de Coimbra foi Hilário. O seu apelido completo era Augusto Hilário da Costa Alves, natural de Viseu e faleceu na sua terra natal, quando frequentava o 3º ano da Faculdade de Medicina, em 3 de Abril de 1896, em férias de Páscoa, duma doença de fígado. O falecimento do excepcional e célebre cantor do fado de Coimbra provocou enorme sensação de tristeza em todo o país e o seu funeral revestiu-se daquelas honras e pompa solene inerente à sua celebridade. Era do seguinte teor o telegrama anunciador da sua morte: “Viseu, 4, às 7 h. e 35m da tarde – Hilário, o estudante boémio que todo o país conhece, principalmente pelo seu fado popularíssimo, sofria do fígado. Foi essa a doença que o matou, consequência de um ataque de influenza”. No cemitério, onde foram depostas oito coroas, quando o seu corpo baixou à terra, proferiram discursos um estudante do Liceu de Viseu, dois estudantes de Coimbra e o advogado Alberto Ponces.
Foi Hilário que celebrizou o fado de Coimbra, ao mesmo tempo que se imortalizou a si próprio pelos seus fados popularíssimos que ecoaram por todos os recantos de Portugal. As suas tendências boémias e génio jovial, deram-lhe um invulgar prestígio e ascendência na mocidade académica sua contemporânea. A sua incomparável voz de barítono, talento improvisador, a sua frase pueril e cantante aliada à arte de guitarrista, aos seus fados originais repassados dum idealismo humano e comunicado à sua guitarra “que parecia sangrar sob os dedos eloquentes, molhavam de lágrimas como as flores que molham de orvalho”, electrizavam um auditório... Quando a Academia de Coimbra desceu até Lisboa para prestar homenagem à memória de João de Deus, a capital escutou durante três noites, altas horas, maravilhada, os acordes magoados da guitarra de Hilário e a “sua voz potente a que ele imprimia um tom de estranha melancolia”:

Foge lua envergonhada
Retira-te lá do Céu
Que o olhar da minha amada
Tem mais brilho do que o teu.

Um dia quando morreres
Ó pomba dos meus anelos
Consente que eu vá beijar
As tranças dos teus cabelos.

Nalgumas quadras como estas, parecia que ia adivinhar a sua morte prematura:

E passei a vida tristonha
A cantar por não saber
Se a vida está no sonho
E a realidade em morrer.

A minha capa velhinha
É da cor da noite escura
Nela quero amortalhar-me
Quando for para a sepultura.

Depois do seu falecimento os jornais publicaram o seu retrato, de capa e batina, cabeça ao lado, dedilhando na guitarra um dos seus fados dolentes, surgindo pouco depois esta expressiva quadra em sua honra:

Calem-se os sons da guitarra
Porque o Hilário morreu
E foi cantar serenatas
Às virgens brancas no céu.

Foi, pois, Hilário, a aurora anunciadora ao mundo do fado de Coimbra com a cotação literária que ele teve até hoje, nas quadras das suas canções, como poemas encantadores, verdadeiras obras de arte em miniatura e pérolas da mais subida concepção poética. O grande mérito de Hilário e seus precursores, foi precisamente transladar literariamente o fado para Coimbra onde, em vez do hino de desgraça debatida em abismos de miséria humana e social, passou à boca dos estudantes para sublimação por vezes exagerada, dos tormentos do amor, da saudade e das recordações inefáveis da mocidade académica... O fado, que a partir de Lisboa conservava os olhos pesados, caídos sobre as suas doentias vielas, ao chegar a Coimbra já os tinha levantados e contemplar o céu estrelado e o luar... Depois de Hilário surge a cativante voz de Cândido Viterbo como lídimo continuador da forma por aquele inaugurada, na sua amargura dolente e evocativa dos mais puros sentimentos. O rasto de luz aceso por Hilário tem encontrado nas sucessivas gerações académicas, os mais dignos continuadores na encarnação romântica do seu profundo e recôndito lirismo, ungido sempre do mesmo perfume imorredouro.
Assim, mais tarde, vem a voz sonora de Manassés, hoje no Brasil, em vivas canções, admiráveis de gosto e entoação:

Já tenho saudades tuas
Ó pálidas madrugadas.

Fecha os olhos de mansinho
Não os abras para ver
Que a vida de olhos fechados
Custa menos a viver.

Depois, Agostinho Fontes, hoje desembargador junto da Relação de Coimbra. Por volta de 1923, a voz cristalina e sentimental de Fausto Frazão, já falecido; era médico em Benguela e deputado por Angola. É da sua autoria o célebre e popularíssimo fado que chega aos nossos ouvidos pela voz de Edmundo Bettencourt:

Coimbra menina e moça
Rouxinol de Bernardim
Não há terra como a nossa
Não há no mundo outra assim.

António Menano, formado em 1923 e hoje distinto médico na Zambézia, foi um dos cantores que maior renome alcançou. O fado de Coimbra, gravado na sua voz límpida e suave, alcançou projecção internacional e nos palcos de Paris e Lisboa o nosso fado atingiu a culminância artística, na sua voz de pianíssimos, brotados da sua garganta prodigiosa de tenorino.
São bem conhecidos os seus fados:

Igreja de Santa Cruz
Feita de pedra morena

Passarinho da ribeira
Se não és meu inimigo

Perguntas-me o que é morrer
Meu amor, minha alegria
Morrer é passar um dia
Todo inteiro sem te ver.

A sua voz feiticeira era bem o eco das noites enluaradas de Coimbra e das sombras das casas velhinhas das ruas da antiga Alta... Seguidamente, surge uma pléiade de estudantes que mantiveram mais viva e gritante a imortalidade do nosso povo. Foi quase uma geração académica que passou por Coimbra a cantar, vincando no mais alto grau a soberania do fado de Coimbra, por eles fortemente personificada, e fazendo-o atingir a mais sólida personalidade, perfeição e sentimentalidade, bem emancipado da subordinação aos ditames catedráticos dos professores dos conservatórios...
Lucas Junot, hoje professor na cidade de São Paulo, do Brasil; Roseiro Boavida, actualmente oficial de artilharia; Armando Goes, médico distinto; Edmundo Bettencourt, que vive em Lisboa; Paradela de Oliveira, ilustre advogado na capital, e, pouco tempo depois, Serrano Baptista, licenciado em Direito e actualmente Inspector do Porto de Lourenço Marques, deixaram com a sua passagem no céu de Coimbra, uma tão fulgurante constelação, que ainda hoje continua a iluminar os vultos embuçados dos cantores do fado académico que, de noite, fazem ouvir as suas serenatas pelos saudosos locais por aqueles percorridos.
As suas canções nocturnas, quebrando o silêncio das vielas de Coimbra, eram carícias que afagavam as janelas do quarto de dormir das meninas do seu tempo, que acordavam embaladas pela melodia das suas vozes românticas e cristalinas. Foram eles que (depois de Hilário, Viterbo e Menano) cimentaram mais profundamente a afirmação da sentimentalidade do nosso fado. Quem “viveu” Coimbra como ela deve ser vivida e sentiu bem junto ao peito o abraço forte do tecido negro duma capa de estudante, não pode ficar indiferente ao ouvir a ternura do fado na voz forte, sonora e melodiosa de Roseiro, ou na quente e romântica de Junot:

Eu ouvi de Santa Clara
Gemidos d’alguém que chora
Era a Rainha pedindo
Por mim a Nossa Senhora.

De Armando Goes dizia Alberto Serpa: “alma medieval num corpo de mouro, o da voz que nos fala e nos faz mal. Na primeira noite de o ouvir, não consegui adormecer senão quando já ia alto o sol e sonhei com horrores e catástrofes. Se tivesse vivido em outras eras teria acompanhado D. Sebastião a Alcácer-Kibir e lá morreria ao lado da guitarra”. A Sé Velha escutou-o com carinho e as nuvens atropelavam-se bailando embaladas...

Quando era pequenino, a desventura
Trazia-me saudoso e triste o rosto
Assim, como quem sofre algum desgosto
Assim, como quem chora d’amargura.

Um anjo, d’asas brancas, muito finas
Sabendo-me infeliz, mas inocente
Cedeu-me as suas asas pequeninas
Para me ver voar e ser contente.

Bettencourt e Paradela foram talvez os mais “castiços” intérpretes do nosso fado. Bettencourt, como o grito mais puro e cristalino que uma garganta humana pode entoar.
Alberto Serpa classifica-o “é português, é Poeta (e que delicioso Poeta!) sabe do fado e não é piegas. Da sua garganta preciosa, os sons não são gemidos, ou ais mais ou menos melancólicos e tuberculosos; antes lembram-me um excitante à força e à vida. Não fazem chorar mas nem por isso deixam de fazer sentir. A meu entender e meu gosto, é o mais extraordinário cantor que, nos últimos anos, tem surgido em Portugal!”.
Um dos seus mais expressivos fados é sem dúvida o que brotou do génio de Fausto Frazão:

Coimbra menina e moça
Rouxinol de Bernardim

Coimbra é de Portugal
Como a rosa é do jardim

A sua alma de poeta levou-o a cantar ao sabor de Coimbra o encanto da terra portuguesa, sobretudo das Beiras e Alentejo:

Senhora do Almotão
Ó minha rosa encarnada
Ao cimo do Alentejo
Chega a vossa nomeada.

Era ainda pequenino
Acabado de nascer
Inda mal abria os olhos
Já eram para te ver.

Paradela de Oliveira menos “gritante” que Bettencourt, com o encanto da sua voz de modulações cariciosas, sabe transmitir ao fado de Coimbra o palpitar sonhador duma ternura enamorada... Que encantadores os seus fados:

O meu menino é de ouro
É de ouro o meu menino
Hei-de levá-lo ao céu
Enquanto for pequenino.

Aquela moça de aldeia
Que eu conduzi ao altar

São incomparáveis as modulações e inflexões na sentimentalidade dos seus pianíssimos prolongados. Grande apaixonado de Coimbra, visita-a todos aos anos pela Queima das Fitas e sempre que vem até nós, faz erguer a sua voz novamente pelos recantos do Penedo e da Sé... envolvido numa capa de estudante... Algumas vezes o acompanhámos, no seu “desfiar de recordações” pelos locais mencionados nas referidas visitas à cidade do Mondego e tem-nos parecido que afinal o visitante da “sua Coimbra” somos nós!
Resta-nos falar da última estrela de Coimbra, da referida geração de cantores... Serrano Baptista. Serrano deve ter sido o maior e mais completo artista que a Academia de Coimbra produziu até hoje.
Dotado de rara sensibilidade artística e intuição musical invulgar, a sua alma romântica consegue ser o porta-voz do mais puro lirismo coimbrão, aliando na sua personalidade genial o talento de emérito cantor e intérprete do nosso fado, cumulados com a arte de excepcional guitarrista e exímio tocador de outros instrumentos.
Coimbra estima-o e não pode esquecer aquela voz que enchia as suas noites de poesia, embalando-a em canções dolentes, quando o luar caía sobre as velhas e tortuosas ruas da Alta, cobertas com as sombras daqueles centenários telhados hoje desaparecidos... Portugal inteiro decorou e entoa as suas célebres e arrebatadoras canções, repletas de “magia” e sentimentalismo como Um Beijo, Noites de Luar, Era uma vez o Amor, e Nova Balada de Coimbra, esta com letra do Dr. Luís de Paiva, compostas no seu pequeno quarto de República, no mistério da noite, rodeada de calma e de silêncio, onde a estrela do seu talento ardia sozinha junto das velhas casas que se abeiravam à Torre da Universidade que o formou... Serrano Baptista é bem o símbolo da sublimação daqueles puros e nobres sentimentos que caracterizam as mais elevadas manifestações artísticas da vida académica de Coimbra. Uma vez formado, a bússola dos seus anseios encaminhou-o para África, levando no barco das aspirações a vela da sua capa de estudante desfraldada ao vento da aventura, por um mar de mistério e sob um céu transparente, constelado de esperanças e de sonhos...
Serrano Baptista, levando na alma Coimbra, as suas tradições e o nosso fado, transportou-os para Lourenço Marques e hoje, naquele jardim florido do nosso Império os antigos estudantes que para ali foram construir a sua vida, lá festejam a Queima das Fitas, a Tomada da Bastilha, etc..
Coimbra chorou a sua partida, mas os palmeirais imensos de África escutam agora as melodias da sua voz maviosa e os gemidos da sua dolente guitarra e da viola do Dr. Luís de Paiva. Seu filho, António Fernando, de 12 anos apenas, já canta o fado de Coimbra como “gente grande”, toca guitarra com outros artistas de palmo e meio nos palcos de Lourenço Marques e já tem fados da sua autoria!! É um artista em miniatura, produto da frutificação da Escola de Coimbra em Lourenço Marques que o pai dignamente fundou...
Serrano Baptista, há dias, de passagem por Coimbra, vindo da América em visita de estudo, deixou gravada a sua voz de sonho na aparelhagem do Dr. Condorcet. Se ela não tem já toda a frescura da sua mocidade, conserva, no entanto, em absoluto, toda a culminância “catedrática” da sentimentalidade, ternura e expressão do autêntico fado de Coimbra, como ele deve ser cantado, e há anos o cantava pelo Penedo, Sé Velha, Calhabé...
Depois desta geração de cantores que quase na mesma época passou por Coimbra a enchê-la de canções, iniciada por Junot e encerrada com chave de oiro por Serrano Baptista, geração essa que foi o expoente máximo do fado de Coimbra na sua mais alta perfeição, profundidade e expansão, o nosso fado passa a viver à sombra dela, numa tentativa de aproximação e reprodução da sua tipicidade e genuidade...
Algumas boas vozes até hoje passaram por Coimbra, mas, diga-se, poucos foram os que conseguiram alcançar esse “desideratum”, aliando-as à melhor e mais castiça interpretação do nosso fado. É que este, para ser cantado “no superlativo”, isto é, com toda a técnica e sabor autenticamente coimbrão, requere, além dos indispensáveis dotes inatos e naturais, que se receba bem a “misteriosa” influência do seu espírito, que se ele “se viva”, “se sinta” e que a lama transmita depois essa “vivência”. É este o segredo dos grandes artistas e dos atrás referidos criadores do nosso fado e dos já apontados continuadores que o consolidaram...
Entre os posteriores e até hoje, surgem-nos como melhores intérpretes, Manuel Julião com a sua voz potente, sonora e galvanizadora, de um admirável timbre muito “sui generis” e bastante apreciada nas terras portuguesas e espanholas por ele visitadas em excursões da Tuna e do Orfeon. Nani e Jorge Gouveia, o primeiro de uma voz suave e melodiosa, e o segundo com um cantar agradável duma brandura amena e clara, dentro da boa técnica do fado.
Napoleão Amorim foi talvez o melhor intérprete do fado de Coimbra, nos últimos tempos. A sua voz quente, harmoniosa e romântica, em arrancos de vivacidade, tem o condão de transmitir à nossa sensibilidade a doçura enfeitiçante do nosso fado, em desabafos de saudade e mágoas de amor, tal qual os bons intérpretes de antanho... Apesar de ter concluído a sua licenciatura e abandonado Coimbra há um bom par de anos, os “seus contemporâneos” não o esquecem e a Academia de Coimbra considera-o, ainda hoje, imprescindível nas suas excursões de maior envergadura, sobretudo de além-fronteiras...
A breve trecho não haverá recanto onde a garganta de Napoleão não tenha divulgado o fado de Coimbra... A sua voz orvalhada de sentimento, tem arrebatado, não só o público das terras portuguesas (acompanhando as digressões artísticas dos organismos académicos) mas também o espanhol, o do Ultramar Português e o brasileiro, respectivamente com a Tuna, Orfeon e Teatro dos Estudantes, este, na sua recente e triunfal viagem a terras de Santa Cruz, donde regressou coberto de glória, triunfos e prestígio, honrando mais uma vez as tradições ancestrais da nossa vetusta Universidade.
E por último Augusto Camacho, alma boémia de autêntico académico de Coimbra da “velha guarda”, tem sido também um entusiástico divulgador do fado de Coimbra e a sua voz máscula, de cambiantes e inflexões da boa técnica, sobretudo nos seus “pianos” muito pessoais e de agradável recorte sentimental, transmite aos seus fados o sabor castiço do verdadeiro fado coimbrão.
Foram estes os nossos cantores de fado de maior relevo (dentro do que ele tem de castiço, sentimental, genuíno e romântico) na curva descendente, conhecida de todos, que ele começou a sofrer depois da abalada de Serrano Baptista...
O declínio do nosso fado que apenas se limita actualmente a uma tentativa de reprodução de fados de cantores antigos é devida à falta de “sangue criador”, vitalidade, talento evocativo e original. Ângelo de Araújo, com as suas canções cheias de vida, ainda tentou insuflar-lhe um pouco de sangue novo, mas mesmo esse se perdeu por falta de continuadores.
Dentro dos cantores actuais da Academia de Coimbra há apenas três vozes que se podem integrar no espírito romântico e típico do nosso fado e que procuram manter galhardamente a sua tradição. São os estudantes Fernando Rolim, voz melodiosa de tenor à maneira antiga; Zeca Afonso, voz suave e branda um pouco ao jeito de Paradela de Oliveira; e Luís Goes, de voz “velada”, impregnada de doçura e sentimento, um tanto semelhante à do seu tio Armando Goes, uma das grandes vedetas do nosso fado.
Não queremos concluir sem fazer uma referência, se bem que breve, à guitarra e seus maiores intérpretes, ao instrumento mais apropriado ao fado e companheira inseparável das melodias magoadas...
Diz-nos a história que foi trazida para Portugal pelos árabes. Filha do alaúde muçulmano foi naturalmente conservada pelos jograis mouriscos. O que se não pode dizer é que a guitarra, por via da sua origem, trouxesse consigo a música árabe, e com ela a melodia do fado!
No século XVII reviveu no nosso país a tradição árabe da guitarra que, primeiro derrotada pelo aparecimento do bandolim, voltou a triunfar do seu rival. A guitarra teve um papel preponderante na vida do homem do sul e no seu romance. Caverel refere que os portugueses deixaram em Alcácer-Kibir dez mil guitarras, o que é naturalmente “blague”, mas ao mesmo tempo, com ela, procura demonstrar a predilecção dos portugueses pelo referido instrumento...
Os acordes da guitarra são os que mais profundamente penetram na alma do povo português e os seus gemidos nostálgicos despertam sempre em nós o mais suave e pungente de todos os pensamentos – o do passado. Fernando Costa exprime bem esta ideia em duas quadras:

Guitarra que não aqueces
Embora cantes com brio
Quando não falas de amor
Toda a guitarra tem frio.

Em ouvindo uma guitarra
Paro, tiro o chapéu
Não me importo de morrer
Se houver guitarras no céu.

O primeiro guitarrista, depois da aparição do fado nas ruas de Lisboa foi João Pedro Quaresma, que morreu aos 80 anos.
O primeiro grande guitarrista de Coimbra, de que há memória, deve ter sido João de Deus, o eminente lírico... “dedilhou a banza em Coimbra, em 1854 quando frequentava Direito e na noite de 31 de Dezembro de 1799 para 1 de Janeiro de 1800 os estudantes da Academia de Coimbra, munidos de borrachas de vinho e de guitarras vieram, antes do soar da meia noite, para as margens do Mondego, afim de celebrar a entrada do século XIX”.
João de Deus, quando estudante, tocava guitarra de Coimbra (a qual começava já a ser um pouco diferente do dedilhar de Lisboa) cantava e compunha música para ela. Trindade Coelho diz que “noite fechada, João de Deus ia com outros estudantes, muito embuçados, cantar versos e música – tudo original seu – à porta de certo lente com quem embirrava”.
Depois de João de Deus, os maiores vultos da guitarra de Coimbra foram António Augusto Gomes de Oliveira, Jaime de Abreu – o Jaime da Guitarra, Dr. Manuel Alegre e Antero da Veiga... o simpático velhinho de 85 anos que toda a Coimbra conhece a acarinha. Ele deu à guitarra de Coimbra uma expressão inconfundível de sentimento, melodia e perfeição, bem expressas, por exemplo, nos seus inconfundíveis Bailados do Minho. Amigo íntimo de Hilário a quem acompanhou muitas vezes à guitarra, assistiu à inspiração do fado que o celebrizou. Com os acordes da sua guitarra “espalhou Coimbra” em exibições por Espanha (no Teatro Granada em Salamanca), França (Paris) e Inglaterra (Liverpool). Dotado de vivíssima memória, refere que alta noite, quando estudante de Coimbra, e juntamente com os estudantes, hoje Drs. José Rodrigues, Azevedo Leitão e Adriano Peça, não tendo dinheiro para cear, encontraram a subir o Arco de Almedina o Dr. Eugénio de Castro a quem contaram o seu desejo e solicitaram a cedência da importância indispensável só até ao dia seguinte, em que lhe seria fatalmente restituída. O insigne poeta “satisfez-lhes imediata e simbolicamente o pedido”, pegando num papel à maneira de cheque e escreveu-lhes de improviso e em acto contínuo estas duas maravilhosas “quadras de estudantes em dias de penúria” até hoje inéditas, e entregou-as em seguida “como lenitivo”:

A lua sentimental
De claras cintilações
Lembra-me cinco tostões
De um tamanho colossal.

E o bom sol que os equilibra
No seu vasto azul resplendente
Faz-me lembrar uma libra
Vista através de uma lente.

Antero da Veiga tocou várias vezes a pedido do Rei D. Carlos e o historiador Fortunato de Almeida um dia, quando o ouviu tocar, disse-lhe: “Antero da Veiga você tem com certeza um cérebro em cada dedo”. Foi durante dezasseis anos cônsul de Portugal na Coruña e a guitarra nunca deixou de fazer parte da sua “bagagem diplomática”.
Depois de Antero da Veiga, os maiores guitarristas desta escola, a que hoje chamamos Escola Antiga de Coimbra até Artur Paredes, o mágico criador da Escola Moderna, foram: Manuel Mansilha, falecido quando desempenhava o cargo de Secretário do Governo de Macau; os licenciados em Direito e também já falecidos José Cochofel e Girão; o saudoso Dr. João Duarte de Oliveira, antigo Reitor da nossa Universidade; Fernando de Matos, licenciado em Letras; João Silvano, licenciado em Direito e já falecido e António Girão, hoje residente em Faro.
Posteriormente a estes surgiram Paulo de Sá, hoje ilustre magistrado; Resende, Francisco Menano; Noronha; Felisberto Passos; Afonso Sousa (Afonso Costa); Jorge Morais (Xabregas); e Francisco Morais hoje residente em Coimbra e aqui representante glorioso e emérito da Tertúlia de São Paulo onde inaugurou e divulgou a romântica guitarra de Coimbra.
Antes de falarmos da Escola Moderna é de toda a justiça mencionar um dos maiores guitarristas de Coimbra, o qual nunca tendo sido estudante “viveu dentro da Academia” e iniciou na guitarra dezenas de estudantes e que se chamou Flávio Rodrigues. Contemporâneo de Artur Paredes, a sua maneira de tocar, de todo emancipada do jeito antigo, era bastante semelhante à deste, na sua expressão e execução. Acompanhou Menano à França onde fizeram as primeiras gravações do nosso fado.
Com Artur Paredes, que acompanhou a Tuna ao Brasil em 1925, o criador da conhecida Escola Moderna, a guitarra de Coimbra sofreu uma verdadeira revolução. São de Alberto Serpa as seguintes palavras: “A sensibilidade de Artur Paredes, rebelde e selvagem como duma criança, tem o poderio como nenhuma outra, tomar, modificar depois ao seu sabor e transmitir-nos, por fim, a Poesia que o nosso povo, o maior poeta de Portugal, traz na alma, da hora da nascença à hora da morte. Já ouviram o Paredes no Fado do Hilário? Toda a tristeza decadente dessa música foi por ele aprendida, composta e dada, após, tornada outra por obra e graça do divino milagre”.
Na realidade, Artur Paredes conseguiu na guitarra, com as suas variações de notas límpidas e estilo próprio, o máximo de perfeição, originalidade, execução e bom gosto, que até hoje se alcançou em Portugal.
Serrano Baptista é também um dos expoentes de maior projecção da guitarra de Coimbra. O seu modo de tocar, de incomparável perfeição e num estilo pessoalíssimo, pode objectivamente localizar-se na transição da Escola Antiga para a Moderna. Técnico profundo da guitarra e detentor de todos os seus profundos segredos, o seu dedilhar impecável e música desfiada das suas variações sublimes – é pena que o Continente as não conheça – são verdadeiros rosários de pérolas e “tratados” de poesia cheia de encanto e sentimentalidade...
Para terminar, resta falar dos três únicos intérpretes da Moderna Escola de Coimbra que a Academia de Coimbra produziu até hoje, desde a sua fundação de Artur Paredes. São eles o Dr. Abílio de Moura, distinto médico nesta cidade. João Bagão, de excepcional classe, adquirida no contacto directo com o “mestre”, é autor e criador de maravilhosas “variações”, melodias e baladas que reflectem bem a notável assimilação do espírito da nova escola, sem, no entanto, deixar de lhes imprimir, na sua interpretação, o cunho pessoal do seu próprio sentir. A sua recente balada de Evocação à Sé Velha é um exemplo elucidativo.
E por último o Dr. António Brojo, há dias saído da Universidade e que podemos ainda considerar “estudante” pela profissão que desempenha de assistente da mesma, já que estes continuam nela a tornar cada vez mais profundo o conhecimento da matéria especializada da respectiva licenciatura. A sua classe, de guitarrista de talento, tem vindo a impor-se através dos tempos num ritmo progressivo e numa sólida e profícua sedimentação técnica de conhecimentos e aperfeiçoamento. Começando “pelo princípio” e alicerçando em bases firmes toda a técnica da Nova Escola, atingiu hoje a mais elevada perfeição na execução modelar dos acordes e estilo em que ela se estrutura, a ponto de, por vezes, quase se confundir com o próprio criador da mesma... Admirável e sugestivo o seu recente Estudo em Lá Maior. É ele o último elo da cadeia, digno de nota, que conseguiu penetrar, com profundidade, na expressão da Guitarra Moderna de Coimbra... a Escola de Artur Paredes.
Indicados os vultos de maior projecção da Academia na história do fado e da guitarra de Coimbra, favor seja prestado, no entanto, a todos aqueles, no passado e no presente, que não atingindo a categoria e nível técnico e artístico dos mencionados, deram, embora como figuras secundárias, com o seu esforço e na medida dos seus recursos, todo o contributo possível para a manutenção e expansão do nosso fado, que continua imortal nas gargantas dos estudantes... a reflectir uma das mais típicas e características manifestações da vida académica de Coimbra repleta de tradições: as serenatas, que ainda se ouvem alta noite pelos seus recantos e continuarão a ouvir enquanto Coimbra existir...
É assim esta Coimbra feiticeira, perturbante e fascinadora que os estudantes levam embrulhada nas suas capas velhinhas, mantos escuros que levam consigo, para enxugar as lágrimas duma saudade negra que lhes deixa na alma o gosto amargo e sublime da ilusão vã duma mocidade imortal que os acompanha pela vida fora...

Coimbra, 20 de Maio de 1952.

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