Rouxinóis do Mondego
João Seabra, Revista Turismo, nº 56, Lisboa, Janeiro/Fevereiro de 1944. Recolha de Jorge Cravo, transcrição e anotações de António Manuel Nunes. Texto originalmente alinhado para publicação documental na obra “Imagens e Representações da Canção de Coimbra”
Há coisa de meio século, norte a sul do país, estavam na moda as românticas serenatas. A linguagem de amor era murmurada com harpejos de guitarra[1]; ouvida com os olhos rasos de água; e só paravam as guitarradas quando as estrelas desmaiavam no céu...
A moda viera de Coimbra, onde moços boémios de romântica cabeleira e capa negra, levavam a noite inteira cantando o fado, ao desafio com os rouxinóis do Mondego, em quadras sentimentais onde falavam no amor, na morte e no luar...
Era uma loucura! As tricaninhas morenas andavam em constante delirio! A cidade adormecia embalada ao som das guitarras!...
O mar também tem amantes,
O mar também tem mulher,
É casada com a areia,
Dá-lhe beijos, quantos quer...
O que cantava isto era um Hilário, que veio a Lisboa tomar parte na festa de consagração de João de Deus, e no Teatro Nacional arrebatou a plateia, que o cobriu de palmas e flores.
Pouco tempo viveu. Mas deixou um fado melancólico que correu o país, e todos sentiam vontade de chorar quando ouviam a sua quadra predilecta:
Eu quero que o meu caixão
Tenha uma forma bizarra...
A forma dum coração,
A forma duma guitarra.
Tempos saudosos! Fausto Guedes Teixeira escrevia os seus primeiros lindos versos. Alexandre Braga ensaiava os primeiros vôos de arrebatadora eloquência, que viria a fazer dele o tribuno de palavra mais elegante da República...
Anos passaram, foi esmorecendo a saudade do Hilário, continuaram as guitarras e cantadores a ouvir-se no Mondego, até que um dia, outra vez os rouxinóis se calaram... desta vez para ouvir outro rouxinol que passara por Coimbra, e erguia mais alto os seus harmoniosos trinados.
Era António Menano. E só a recordação do seu nome traz à memória a loucura que se apossou de Coimbra e depois de Lisboa, de todas as terras do país, para o ouvirem cantar o fado, na sua voz de tenorino, com notas de cristal...
Quem se esqueceu já das suas quadras predilectas e tão simples:
Passarinho da Ribeira,
Se não és meu inimigo
Empresta-me as tuas asas
Que eu quero voar contigo.
Perguntas-me o que é morrer?
Meu amor, minha alegria,
Morrer é passar um dia
Todo inteiro sem te ver!
A Coimbra iam milhares de pessoas para o ouvir cantar. Em Lisboa, nalgumas festas de caridade em que tomou parte – mesmo em recintos de grande lotação, como o Coliseu e Jardim Zoológico – os bilhetes esgotavam-se, e era uma ansiedade, não fosse ele faltar ou adoecer, como às vezes sucedia. Recebeu ovações como raras vezes se fizeram às maiores celebridades líricas.
Mas, logo a seguir, Coimbra delirou com uma das mais belas vozes que por ali passaram – Edmundo Bettencourt, que deixou lágrimas em muitos olhos saudosos, e que ainda hoje será capaz de cantar lindos versos como estes, da sua própria autoria, porque é um cantor poeta, autêntico trovador:
A luz dos teus olhos claros
É uma estrela a cintilar[2],
Que eu ora vejo no céu
Ora nas ondas do mar.
Oh olhar da claridade!
Olhar de luar e água
Sagrado espelho onde vejo
A sombra da minha mágoa.
Quási na mesma época, um pouco depois, aí por 1924, surgiu em Coimbra um outro rouxinol... vindo de Lamego – voz de puro oiro, miúdo de corpo e de feições, mas – caramba! – com que alma lançava às estrelas as suas canções!
Era Paradela de Oliveira, que viria a ser um dos mais populares cantores de fado, de origem coimbrã. Como caloiro, ganhou a sua carta de alforria por cantar lindamente o fado. Em noites de luar, a malta não o largava, e era cantar até romper o sol. A troupe chefiada pelo Quitério reclamava-o em altos berros, e o caloiro tinha de vir para a rua. Ainda se encontravam em Coimbra Paradela de Oliveira, António Menano, Roseiro Boavida, o Junot, Edmundo Bettencourt e Armando Goes. Há quem recorde, com lágrimas nos olhos, as suas serenatas. Como guitarristas, era um encanto ouvir Artur Paredes, o Xico Morais, Xabregas, Adozindo e outros mais.
Paradela, com o Orfeon e a Tuna, correu o país, foi ao Brasil, visitou a Espanha, sendo por toda a parte acarinhado.
Armando Goes, outro grande cantor de fados, desta geração coimbrã, também é um grande nome lírico na canção nacional, contando admiradores aos milhares.
Em Coimbra, onde se matriculou na Universidade, no mesmo ano do Dr. Paradela de Oliveira, a sua bela voz era muito apreciada, e ainda hoje é um regalo ouvi-lo cantar versos, como estes que o Dr. António de Sousa escreveu, propositadamente, para a sua bela voz:
Eu tive um sonho, um sonho d’encantar
Um sonho medieval de trovador
Sonhei, Senhora que era o vosso amor
Em certa noite branca de luar.
Namorado, leal e cavaleiro
Por minha dama fui-me a batalhar
Em certa noite branca de luar
Jurei sua beleza ao mundo inteiro.
Depois... o sonho morre. E, quem morreu
Já não é bem da terra nem do céu
Saudoso adeus, dum lenço à luz do luar...
Seguimos cada qual o nosso rumo
Desfez-se aquele sonho como o fumo
Em certa noite branca de luar...
Ainda há noites de luar em Coimbra, mas os rouxinóis do Mondego parece que nunca mais cantaram com saudades dos seus irmãos que por ali passaram e se foram ao seu destino, levando também penas e saudades...
[1] Os dois primeiros parágrafos desta crónica não têm cariz historiográfico. Constituem visões ficcionais, ou mundos virtuais, que não permitem qualquer lógica de verificação. Na década de 1890, o ritual da serenata estava bem implantado em diversas regiões portuguesas, passando pelas praias, termas, Lisboa, Coimbra, Açores, liceus regionais, tunas activas em vilas e cidades. Por conseguinte, a moda da serenata não foi exportada para o resto do país a partir de Coimbra. Aliás, em Coimbra coexistiam múltiplas modalidades de serenatas. Digamos que o figurino coimbrão se veio a impôr. Na época a que se reporta o cronista, a guitarra era um instrumento entre tantos outros que se viam nas serenatas portuguesas, mas não era seguramente o único cordofone.
[2] Bettencourt canta na matriz fonográfica “lucilar” e não “cintilar”.
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