segunda-feira, novembro 27, 2006


Apostila (particular) à polémica Sérgio/Albuquerque

Prezado Doutor Armando Luís de Carvalho Homem:

serve a presente mensagem para o felicitar pelo notável trabalho sobre António Sérgio/Mário Albuquerque que acaba de editar no Blog "guitarradecoimbra".
Agradeço-lhe a citação que faz de uma legenda de minha autoria sobre Alexandre Albuquerque (AA). Era apenas uma legenda, breve e ligeira, com vista a contextualizar o pequeno opúsculo então divulgado. "Xandre" foi um estudante muito estimado na sua geração de Coimbra. Era um orador de grande competência e nessa qualidade chegou a brilhar em incendiárias assembleias magnas estudantis e em representações oficiais da Academia. Foi ele quem fez o notável discurso do Centenário de Almeida Garrett, no Porto, em 1899, no palco do Teatro de São João, discurso onde brilhou mais do que o afamado paladino Alexandre Braga.
O seu nome ocorre em livros de memórias académicas, podendo citar-se aqui, "De Capa e Batina", Lisboa, J. Rodrigues & Ca., 1928, do seu condiscípulo D. Tomás de Noronha. Quando publiquei a legenda da brochura de AA no blog, não tive o cuidado de verificar uma biografia presente em Maria Filomena Mónica (coordenação), "Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Volume I (A-C)", Lisboa, Assembleia da República, 2004, pp. 83-85. O artigo citado é da autoria de Fernando Moreira. Alexandre Correia Telles de Araújo e Albuquerque, filho de Bernardino Albuquerque e de Luísa Telles, nascera em Albergaria-a-Velha a 11 de Março de 1875. Concluiu a sua formatura em Direito no ano lectivo de 1898-99, tendo participado activamente nos centenários de Garrett e da Sebenta. No seu tempo de estudante foi também colaborador de jornais e redactor de periódicos. Percorrendo o recente “Imprensa Estudantil de Coimbra. Volume I: repertório analítico (século XIX)", Coimbra, Imprensa da UC, 2006, de Manuel Carvalho Prata, encontramos o seu nome nas seguintes ocorrências:

-director de Argus, revista editada entre 1896-1897;
-director de Bofetadas, editado em 1896;
-colaborador de Jornal dos Estudantes, publicado em 1896;
-colaborador de A Revista Literária, editada em 1899;
-director de a Revista Negra, editada em 1899.

Tenho ideia de já ter manuseado uma fotografia de AA, mas não me ocorre onde nem quando. Do "avô" Correia Telles existe uma estátua togada em mármore, da autoria de Martins Correia, datada de 1954, no átrio do Palácio da Justiça de Viseu-1. Essa estátua está referida na relação de obras de arte dos tribunais na minha tese de mestrado, “Espaços e Imagens da Justiça no Estado Novo. Templos da Justiça e Arte Judiciária”, Coimbra, Minerva, 2003, p. 438. Ver reprodução fotográfica em Adalberto Alves, "História Breve da Advocacia em Portugal", Lisboa, Edição dos CTT, 2003, p. 166; e em António M. Nunes, "Justiça e Arte. Tribunais Portugueses", Lisboa, Ministério da Justiça, 2003, p. 91.
No que toca ao "injusto" esquecimento de Sérgio, para lá de tudo o quanto o tempo tenha feito envelhecer na pena desse temerário paladino da Razão, julgo que as atitudes de renegação ficam mal aos muitos "discípulos" ainda vivos que o utilizaram como ponto de demarcação face ao Estado Novo.
Quanto a polémicas historiográficas do século XX, talvez seja de lembrar já no crepúsculo de novecentos a exaltada Querela Colombo. O assunto arrancou em força com o livro de Augusto Mascarenhas Barreto, "O português Cristóvão Colombo, agente secreto do rei D. João II", Lisboa, Referendo, 1988. Entrou na liça inflamadamente contra o autor Alfredo Pinheiro Marques, ensinante de História na Faculdade de letras da UC, discípulo de Luís de Albuquerque, que deu à estampa o conspecto "As teorias fantasiosas do Colombo português", Lisboa, Quetzal, 1991. Há mais livros e autores envolvidos na polémica, os quais constam de sites disponíveis na internet. Algures entre 1990-1991, e com transbordos temporais, houve discussão bravia entre Barreto e Marques nas páginas do jornal "Público". A certa altura entrou na discussão Vasco Pulido Valente. A "tese" de Barreto, pode considerar-se o embrião de certa literatura no estilo de Dan Brow ("O Código da Vinci", e outros), adoptada em Portugal com grande sucesso pelo jornalista (e romancista?) José Rodrigues dos Santos em ficções como "O Codex 632", de 2005*. Sicut gloria mundi!
Quanto a António Cruz, tendo em conta o facto de continuar a ser desprezivamente apontado como intelectual "colaborador" do regime, não admira o silêncio a que tem sido votado. Como foi orfeonista em Coimbra, cantor de serenatas espontâneas, jornalista académico amador e membro do Fado Académico, sou de opinião que valeria a pena tentar conhecê-lo um pouco melhor. O blog fica à espera de que queira e possa editar o artigo que escreveu há alguns anos sobre o mesmo António Augusto Ferreira da Cruz.
Uma palavra breve sobre o lente de Grego Ventura. Era um docente temido e detestado já na transição da década de 1930 para a de 40. Vergílio Correia, que foi seu aluno, considerava-o um homem mesquinho. Tomou-lhe tal ressentimento que num romance o caricaturou, alterando a alcunha FARAÓ para KALIFA. Conta a Dra. Mariberta Carvalhal que teve de fugir da Cadeira de Grego, trocando Românicas por Germânicas, para não sofrer mais nas mãos do mestre que a tomara de ponta. Certa vez, tendo a revista EVA ido a Coimbra fazer uma reportagem sobre a vida académica, Mariberta Carvalhal cometeu a imprudência de responder a uma pergunta sobre a pedagogia dos lentes com uma graçola do género que alguns não sabiam o que era a pedagogia e bem poderiam levar com “uma bota” pela cabeça abaixo a ver se a descobriam. O lente Ventura, “Ventura só de nome, DESVENTURA para os estudantes” (Mariberta Carvalhal dixit), sentiu-se visado e foi à Reitoria fazer pressões para que Mariberta Carvalhal fosse expulsa da Universidade, no que lhe valeram junto do Reitor os testemunhos abonatórios de todos os seus professores.
Em relação a muitos dos lentes de História citados, activos nas instituições universitárias de Lisboa, Porto e Coimbra, poderiam ter feito diferente nos contextos em que laboraram?Parece que não. Recordo aqui uma troca de palavras com o medievalista da Faculdade de Letras da UP, Luís Miguel Duarte, feita por volta de 1999. Questionado sobre os motivos que não teriam permitido fazer a história da Justiça Medieval portuguesa antes de 1974 - estava eu a pensar em nomes como um Paulo Mêrea, que sendo lente de Direito, também leccionou História -, Luís Miguel Duarte não hesitou em classificar Paulo Merêa ou T. Sousa Soares como "autênticos talentos desperdiçados"**. E se no ensino superior existiam docentes com habilitações/aptidões de "aviário", o que dizer dos docentes de Liceu nessa mesma época? O ensino liceal tanto aceitava licenciados em História, como abria as suas portas a bacharéis e licenciados em Direito que podiam ensinar História, Filosofia, etc., bem como a candidatos saídos dos seminários católicos. O problema da formação e preparação dos docentes é velho em Portugal. Como se pode ver pelo extenso e bem fundamentado artigo sobre a querela AS/MA, a certificação administrativa de "doutores de aviário" não aconteceu apenas no imediato 1974.
Com os Cumprimentos e a Estima do
António Manuel Nunes
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*Laureado renovador da "novilíngua (Orwell) portuguesa" e fabricante de termos literários do género "à séria" ("A Filha do capitão", 2004) e "a norte vai chover" e "a sul vai ventar".
** Seja-me permitido recordar um trabalho prático desenvolvido em 1992 na Univ. de Poitiers em Histoire-Geo sobre os Descobrimentos Portugueses. Ao confrontar um Damião António Peres (1889-1976) com a produção copiosa de um Pierre Chaunu (investigador não isento de fragilidades), recordo o quanto me senti vexado por constatar a estreiteza de horizontes, a penúria de meios, a frugalidade espartana da escrita, a pincelada nacionalista e a ausência de trabalho de equipa, vulnerabilidades que em 1960 ainda faziam perder horas para tirar a limpo se Diego era Diogo, e a ser Diogo, se era de Sunis, de Sines ou de Silves. Bem sabemos que alguém teria de decifrar a cartografia de antanho, mas em que ficamos quanto ao vero achador dos Açores? Gonçalo Velho Cabral, retratado nas Portas da Cidade de Ponta Delgada em vestes de herói seiscentista, ou Diego que era Diogo?

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