Dicionário da Imprensa Estudantil oitocentista
***
A “Imprensa Estudantil de Coimbra no Século XIX”
António Manuel Nunes
[Palavras proferidas na 3ª feira, 31 de Outubro de 2006, no Auditório da Coimbra Editora, a convite da Imprensa da UC e do CEIS 20, na cerimónia de apresentação de Manuel Carvalho Prata, intitulado “Imprensa Estudantil de Coimbra. Volume I: Repertório Analítico (Século XIX)”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 01 de Fevereiro de 2006]
Exmo. Senhor Director da Imprensa da UC, Doutor José Faria e Costa, agradecendo o convite e louvando o “regresso” da Imprensa da UC
Exmo. Senhor Doutor António Nóvoa, Magnífico Reitor da Universidade de Lisboa
Exmo. Senhor Doutor Manuel Carvalho Prata, Ilustre Autor
Exmo. Senhor Doutor Luís Reis Torgal, Moderador deste evento, a quem eu e Carvalho Prata chamamos afectuosamente o “nosso Divino Mestre”
Exmo. Senhor Dr. Mário Matos Lemos, celebrado Autor da obra de referência “Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um dicionário” (24/10/2006)
Caros presentes e Amigos que muito me apraz reencontrar
I – SOBRE O AUTOR: Manuel Alberto Carvalho Prata fez todo o seu percurso de qualificação científica na UC: Licenciatura em História (1972), Mestrado em Ciências da Educação (1990) e Doutoramento em Ciências da Educação (1995). É investigador e docente na Escola Superior de Educação da Guarda. Ostenta diversos trabalhos em publicações autónomas e artigos insertos em revistas da especialidade, prestando colaboração ao CEIS-20. É um dos grandes conhecedores da História da Academia de Coimbra na Época Contemporânea, com trabalhos de envergadura científica que se distanciam das crónicas diletantes mais habitualmente tradicionalistas, saudosistas ou de mera laracha. Mas o “olho clínico” de Manuel Carvalho Prata não ostraciza uma certa dimensão de afectividade quando confrontado com as “coisas” da “sua” Academia, conforme reconhecia o seu saudoso mestre Doutor Joaquim Ferreira Gomes.
II – SOBRE A OBRA: “Imprensa Estudantil de Coimbra” é antes de mais um arrolamento alfabético dos jornais e revistas publicados pelos estudantes de Coimbra, universitários e não universitários, ao longo do século XIX.
A contextualização sócio-cultural já havida sido exaustivamente tratada em 1995 na tese de doutoramento do Autor, “A Academia de Coimbra (1880-1926)”, editada em 2002 pela Imprensa da UC. Desses periódicos remanescem testemunhos raros, folhas de difícil leitura, uma mancha gráfica que querendo ser sedutora ao olhar da época, corre agora o risco de amarelecer, partir-se, esborratar-se e perder-se. Que o digam os “frequentadores” dos arquivos, em cujas polpas dos dedos vai ficando muita dessa velha tinta de tipografia oitocentista.
O jornalismo académico conimbricense emerge com a consagração da liberdade de opinião trazida pela Revolução Liberal de 1820. Não que anteriormente não se notassem sinais larvares de frenesim opinativo, como o “Reino da Estupidez” ou os vivas à liberdade que o Simão Botelho de “O Amor de Perdição” teria soltado frente ao Mosteiro de Santa Cruz, isto no dizer de um Camilo Castelo Branco.
A afirmação da liberdade de opinião e a lenta construção do aparelho político-partidário Liberal atiçaram a gula de uma Academia crescentemente voltada para a filantropria, o associativismo, o teatro cívico e até as efémeras e fugazes sociedades secretas.
Instrumento de libertação da palavra, altar público votado à consagração da opinião, local de crença na transformação das mentalidades, porta-voz da instrução, o jornal e a revista faziam-se em situação de precaridade de corpo redactorial e de escassez monetária.
De tudo o que era caro ao imaginário estudantil se falava nos jornais: das grandes conquistas civilizacionais ocidentais, das artes (embora conferindo escassa atenção à música e às belas artes), da política, da religião, da ciência, da tecnologia, do progresso, dos males da sociedade portuguesa, e do ensino, sobretudo da tão apregoada falta de pedagogia dos senhores lentes de Direito e Teologia da UC.
Os jornais académicos oitocentistas nasciam, pouco duravam, e voltavam a aparecer para sacudir o ambiente cultural tido por morno, diziam os editorialistas de então. Pegando na cantiga, quase todos duravam “mais que uma hora”, mas menos do que cinco números consecutivos.
Havia nesses jornais características inconfundíveis que deles faziam um produto vincadamente conimbricense e juvenil:
-o durabilidade precária, fruto de dissensões grupais, de falta de capitais, do inexorável vaivém dos cursos, e do não cumprimento dos prazos combinados para a entrega dos artigos;
-a pouca maturidade de projectos de adolescentes, que não deixando de estar voltados para o exterior, viviam de códigos falantes e comportamentais tipicamente juvenis, numa Coimbra onde o reconhecimento social do estatuto do ser-se jovem se antecipou ao resto da sociedade portuguesa em décadas;
-o tom da escrita, que vai da frase científica escorreita à reprodução dos princípios político-partidários perfilhados pelos signatários dos textos, reflectindo de passagem as grandes utopias em moda, desde os redencionismos liberal, republicano e integralista, até aos recantos mal conhecidos do anarquismo e do activismo mais secreto. E aqui escasseiam os dados, pois muito do material impresso e manuscrito ligado às actividades suspeitas aos olhos da censura (manifestos, actas manuscritas, estatutos, literatura estrangeira de apoio, listas de associados) foi destruído ou ficou guardado no recato de gavetas particulares. Será precisamente desta imprensa académica autoconcebida como contrapoder e até contracultura ao modelo universitário que menos informações conseguimos obter;
-a escrita académica jornalística é também marcada por uma dimensão satírica, chocarreira, de denúncia dos vícios comunitários, que fustiga a cidade, a Academia e a UC. A troça e o riso académicos, em parte transmitidos às “farpas” por Eça de Queirós, tinham raízes na fundura dos costumes estudantis, tendo sido parcialmente vazados em praxes como A Oração do Caloiro (=discurso burlesco), as assuadas de antanho e peças de teatro de revista desenvolvidas no palco do Teatro Académico. Desde que não ultrapassasse certas normas de cortesia, a sátira estudantil era bem vista e até incentivada por um corpo docente familiarizado com a Tourada ao Lente e a “charge” das Récitas do Quinto Ano;
-mais do que confirmar uma Academia unida e a uma só voz, conforme propalavam os memorialistas e os saudosos das experiências vividas nos sucessivos batalhões académicos oitocentistas, os periódicos fazem eco de experiências grupais e de sensibilidades ideológicas e estéticas fragmentadas no interior do tecido escolar, onde campeiam provocações, sátiras e até exigências de satisfação de honra;
-escrita de adolescentes, os periódicos foram sendo frequentemente textos utópicos, marcados por contagiantes rasgos de energia mobilizadora, agitados pela crença na capacidade de transformação dos costumes portugueses mais atávicos. Uma escrita de sangue na guelra e borbulhas no rosto, alvoroçada de esperanças em rostos onde por vezes mal começara a despontar o buço.
A dicionarização de periódicos académicos, pacientemente tecida por Manuel Carvalho Prata, começa na tese de doutoramento e passa, num primeiro momento, por este muito completo “arrolamento” que nos fala de títulos, directores, colaboradores, propósitos editorais, artigos mais significativos, número de páginas, preços de capa e até dos exemplares existentes nos vários arquivos portugueses de Coimbra, Porto e Lisboa.
Eis-nos confrontados com um instrumento de consulta obrigatória, qual base de dados de manuseio incontornável, que se completará com o nascituro e trabalhoso volume II.
Meu Caro Doutor Prata: as minhas felicitações por trazer ao conhecimento da família dos investigadores um utilíssimo instrumento de trabalho, e sobretudo por ter dignificado o tema Academia de Coimbra com uma tese de doutoramento. Não leve a mal que lhe sugira para no volume II incorporar cá e lá reproduções de rostos de um ou doutro jornal.
O meu abraço fraterno e o meu Bem-Haja!
Endereços:
-«http://www.CEIS20.uc.pt/»
-«http://www.imp./uc.pt/»
António Manuel Nunes
[Palavras proferidas na 3ª feira, 31 de Outubro de 2006, no Auditório da Coimbra Editora, a convite da Imprensa da UC e do CEIS 20, na cerimónia de apresentação de Manuel Carvalho Prata, intitulado “Imprensa Estudantil de Coimbra. Volume I: Repertório Analítico (Século XIX)”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 01 de Fevereiro de 2006]
Exmo. Senhor Director da Imprensa da UC, Doutor José Faria e Costa, agradecendo o convite e louvando o “regresso” da Imprensa da UC
Exmo. Senhor Doutor António Nóvoa, Magnífico Reitor da Universidade de Lisboa
Exmo. Senhor Doutor Manuel Carvalho Prata, Ilustre Autor
Exmo. Senhor Doutor Luís Reis Torgal, Moderador deste evento, a quem eu e Carvalho Prata chamamos afectuosamente o “nosso Divino Mestre”
Exmo. Senhor Dr. Mário Matos Lemos, celebrado Autor da obra de referência “Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um dicionário” (24/10/2006)
Caros presentes e Amigos que muito me apraz reencontrar
I – SOBRE O AUTOR: Manuel Alberto Carvalho Prata fez todo o seu percurso de qualificação científica na UC: Licenciatura em História (1972), Mestrado em Ciências da Educação (1990) e Doutoramento em Ciências da Educação (1995). É investigador e docente na Escola Superior de Educação da Guarda. Ostenta diversos trabalhos em publicações autónomas e artigos insertos em revistas da especialidade, prestando colaboração ao CEIS-20. É um dos grandes conhecedores da História da Academia de Coimbra na Época Contemporânea, com trabalhos de envergadura científica que se distanciam das crónicas diletantes mais habitualmente tradicionalistas, saudosistas ou de mera laracha. Mas o “olho clínico” de Manuel Carvalho Prata não ostraciza uma certa dimensão de afectividade quando confrontado com as “coisas” da “sua” Academia, conforme reconhecia o seu saudoso mestre Doutor Joaquim Ferreira Gomes.
II – SOBRE A OBRA: “Imprensa Estudantil de Coimbra” é antes de mais um arrolamento alfabético dos jornais e revistas publicados pelos estudantes de Coimbra, universitários e não universitários, ao longo do século XIX.
A contextualização sócio-cultural já havida sido exaustivamente tratada em 1995 na tese de doutoramento do Autor, “A Academia de Coimbra (1880-1926)”, editada em 2002 pela Imprensa da UC. Desses periódicos remanescem testemunhos raros, folhas de difícil leitura, uma mancha gráfica que querendo ser sedutora ao olhar da época, corre agora o risco de amarelecer, partir-se, esborratar-se e perder-se. Que o digam os “frequentadores” dos arquivos, em cujas polpas dos dedos vai ficando muita dessa velha tinta de tipografia oitocentista.
O jornalismo académico conimbricense emerge com a consagração da liberdade de opinião trazida pela Revolução Liberal de 1820. Não que anteriormente não se notassem sinais larvares de frenesim opinativo, como o “Reino da Estupidez” ou os vivas à liberdade que o Simão Botelho de “O Amor de Perdição” teria soltado frente ao Mosteiro de Santa Cruz, isto no dizer de um Camilo Castelo Branco.
A afirmação da liberdade de opinião e a lenta construção do aparelho político-partidário Liberal atiçaram a gula de uma Academia crescentemente voltada para a filantropria, o associativismo, o teatro cívico e até as efémeras e fugazes sociedades secretas.
Instrumento de libertação da palavra, altar público votado à consagração da opinião, local de crença na transformação das mentalidades, porta-voz da instrução, o jornal e a revista faziam-se em situação de precaridade de corpo redactorial e de escassez monetária.
De tudo o que era caro ao imaginário estudantil se falava nos jornais: das grandes conquistas civilizacionais ocidentais, das artes (embora conferindo escassa atenção à música e às belas artes), da política, da religião, da ciência, da tecnologia, do progresso, dos males da sociedade portuguesa, e do ensino, sobretudo da tão apregoada falta de pedagogia dos senhores lentes de Direito e Teologia da UC.
Os jornais académicos oitocentistas nasciam, pouco duravam, e voltavam a aparecer para sacudir o ambiente cultural tido por morno, diziam os editorialistas de então. Pegando na cantiga, quase todos duravam “mais que uma hora”, mas menos do que cinco números consecutivos.
Havia nesses jornais características inconfundíveis que deles faziam um produto vincadamente conimbricense e juvenil:
-o durabilidade precária, fruto de dissensões grupais, de falta de capitais, do inexorável vaivém dos cursos, e do não cumprimento dos prazos combinados para a entrega dos artigos;
-a pouca maturidade de projectos de adolescentes, que não deixando de estar voltados para o exterior, viviam de códigos falantes e comportamentais tipicamente juvenis, numa Coimbra onde o reconhecimento social do estatuto do ser-se jovem se antecipou ao resto da sociedade portuguesa em décadas;
-o tom da escrita, que vai da frase científica escorreita à reprodução dos princípios político-partidários perfilhados pelos signatários dos textos, reflectindo de passagem as grandes utopias em moda, desde os redencionismos liberal, republicano e integralista, até aos recantos mal conhecidos do anarquismo e do activismo mais secreto. E aqui escasseiam os dados, pois muito do material impresso e manuscrito ligado às actividades suspeitas aos olhos da censura (manifestos, actas manuscritas, estatutos, literatura estrangeira de apoio, listas de associados) foi destruído ou ficou guardado no recato de gavetas particulares. Será precisamente desta imprensa académica autoconcebida como contrapoder e até contracultura ao modelo universitário que menos informações conseguimos obter;
-a escrita académica jornalística é também marcada por uma dimensão satírica, chocarreira, de denúncia dos vícios comunitários, que fustiga a cidade, a Academia e a UC. A troça e o riso académicos, em parte transmitidos às “farpas” por Eça de Queirós, tinham raízes na fundura dos costumes estudantis, tendo sido parcialmente vazados em praxes como A Oração do Caloiro (=discurso burlesco), as assuadas de antanho e peças de teatro de revista desenvolvidas no palco do Teatro Académico. Desde que não ultrapassasse certas normas de cortesia, a sátira estudantil era bem vista e até incentivada por um corpo docente familiarizado com a Tourada ao Lente e a “charge” das Récitas do Quinto Ano;
-mais do que confirmar uma Academia unida e a uma só voz, conforme propalavam os memorialistas e os saudosos das experiências vividas nos sucessivos batalhões académicos oitocentistas, os periódicos fazem eco de experiências grupais e de sensibilidades ideológicas e estéticas fragmentadas no interior do tecido escolar, onde campeiam provocações, sátiras e até exigências de satisfação de honra;
-escrita de adolescentes, os periódicos foram sendo frequentemente textos utópicos, marcados por contagiantes rasgos de energia mobilizadora, agitados pela crença na capacidade de transformação dos costumes portugueses mais atávicos. Uma escrita de sangue na guelra e borbulhas no rosto, alvoroçada de esperanças em rostos onde por vezes mal começara a despontar o buço.
A dicionarização de periódicos académicos, pacientemente tecida por Manuel Carvalho Prata, começa na tese de doutoramento e passa, num primeiro momento, por este muito completo “arrolamento” que nos fala de títulos, directores, colaboradores, propósitos editorais, artigos mais significativos, número de páginas, preços de capa e até dos exemplares existentes nos vários arquivos portugueses de Coimbra, Porto e Lisboa.
Eis-nos confrontados com um instrumento de consulta obrigatória, qual base de dados de manuseio incontornável, que se completará com o nascituro e trabalhoso volume II.
Meu Caro Doutor Prata: as minhas felicitações por trazer ao conhecimento da família dos investigadores um utilíssimo instrumento de trabalho, e sobretudo por ter dignificado o tema Academia de Coimbra com uma tese de doutoramento. Não leve a mal que lhe sugira para no volume II incorporar cá e lá reproduções de rostos de um ou doutro jornal.
O meu abraço fraterno e o meu Bem-Haja!
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