terça-feira, novembro 21, 2006

A OUTRA FACE DO ESPELHO

NÃO VÁ O DIABO TECÊ-LAS.
Por José Henrique Dias*

Agitaram-se águas por causa da abertura do túmulo de D. Afonso Henriques. A costumeira incomunicação dos serviços públicos determinou que sobre a hora a operação fosse cancelada, gorando- se ou adiando-se um projecto de investigação. Quem quer manda e só despacha quem pode. Em torno do assunto, pressurosos, houve quem falasse de profanação e soaram as trombetas dos defensores do trono e do altar. Questionou-se a pertinência de investigações como a que estava em curso, sem peva de conhecimento sobre o projecto. Estudar restos mortais de figuras históricas é lá coisa que se faça, não vá o diabo tecê-las e ficar-se a saber o que não se deve. É que é mesmo bom alimentar mitos. Se estudarem as cervicais de Inês de Castro esmagadas pelo cutelo do algoz, lá se vai a lenda da posta em sossego a fugir diante dos punhais dos coelhos e pachecos, com os pobres dos filhinhos indefesos agarrados às saias. São românticas e reconfortantes as fontes dos amores, com sanguíneas algas rodofíceas a certificarem enganos de alma, ledos e cegos. Se visitarmos a hagiografia de Santa Isabel da Hungria (1207- -1231), venerada como Santa Isabel de Coimbra no convento das clarissas na mondeguina margem de lá, encontraremos uma coroa na cabeça e rosas a cair do manto. O tempo lança véus perfumados na originalidade dos milagres. Ora o respeitinho é muito lindo. Por que razão que se perceba hão- -de historiadores mexer nisto? Ou agora uma antropóloga querer ver ossos? Antro quê? Que raio de coisa, que até lembra os que comem gente, zuniu-me em viagem de autocarro para Celas. O sr. Duarte Pio de Bragança nem gosta que lhe mexam nos antepassados. Tem bons motivos para isso. Hiatos dinásticos são sempre complicados, emergem
segredos de alcova e bem lhe basta agora o fadista putativo. Daqui a nada estão por aí instaladas
controvérsias sucessórias à semelhança das ouriquices oitocentistas. Então não estava mesmo a calhar voltar-se à bandeira azul e branca? A menina dos olhos do Sr. Scolari definhou nas antenas dos carros e desbotou nas sacadas. Afinal não tem o verde da esperança ou dos pinhais e o vermelho do sangue dos heróis, mas o verde da Maçonaria (ou será da união ibérica?) e o vermelho da Carbonária (que horror!). Como o marchar contra os canhões foi partitura revisteira aproveitada no Ultimatum, melhor seria voltar ao Hino da Carta. Agora só se alguémmarchar contra mísseis teleguiados, que os canhões recolheram aos museus. Convenhamos que era mais fácil marchar contra os bretões, mas também não dava jeito por causa da velha aliança. Porque é que querem mexer nos ossos dos reis e não recuperam antes hino e bandeira de antanho, tudo tão lindo, tão sossegadinho, tão azulinho, tão processional e pronto? Quando entrei para o liceu, nas manhãs de sábado exercitava-se compulsivamente o esquerda volver e o em sentido não mexe. Trazia um S no cinto e decorei que o bom filiado educa-se a si próprio por sucessivas vitórias de vontade, cantando e rindo, levados, levados sim. Um dia o comandante de castelo, que andava no quinto ano e fardava de calças e botins, começou a exercitar-nos para um desfile frente à Igreja de Santa Cruz, feita de pedra morena como gemia o Menano. Não para ver rezar olhos que davam pena, que isso só aprenderíamos mais tarde, à margem da formatura e do rufar dos tambores. Íamos esperar e saudar a chegada da espada de D. Afonso Henriques, encher o peito de veneração e obrigados. Ora a espada do rei fundador, lia-se no livrinho da História e hiperbolizava o sr. Carmálio nas salas da Escola da Boavista, era um montante que pesava mais de quinze quilos. Nós imaginávamos um rei enorme, com uma espada que nem o moca de ferro e o arrasa montanhas dos serões, a cortar cabeças aos mouros, que eram uns trastes duns infiéis. O que era muito bem feito. Nenhum catecismo falava de direitos humanos (coisa de perigosos revolucionários) e de liberdade religiosa ou outra (o que só costuma dar para um lado). É o falas. D. Afonso Henriques até partiu uma perna e não sei como arranjou canadianas, que é assim como o fecho éclair de Filipe II, no poema do Gedeão. Se calhar a senhora antropóloga quer saber da calcificação, se foi um fémur, uma tíbia ou um perónio, coisas que não lembram ao diabo, só mesmo a cientistas das universidades. Voltando ao regresso da espada, a depor sobre o túmulo do primeiro rei. Estávamos todos bem alinhados na formatura, em posição de descansar, mãos atrás das costas e pernas afastadas, alinhavados com outras formaturas, num crescendo de ansiedade. Nós, Lusitos, ali à frente, entre as ruas da Sofia e Ferreira Borges (ou será a Visconde da Luz? Há uns setenta anos que não acerto com isto!), em posição privilegiada para contemplar o gigantesco montante. A população de Coimbra acotovelava-se em magotes, pelo Largo de Sansão e adjacências. Soou um clarim, quando se aproximou um carro do exército, onde vinha o tesouro. Posição de sentido e apresentar armas. E num ai… um magricelas como nós retirou do carro, sobre uma almofada vermelha (juro que era vermelha!), uma espadita tão leve como as de pau, as que fazíamos para as nossas guerras, completadas por capacetes feitos de jornais sabiamente dobrados, a fardar as cabeças. Naquele ai, desmoronou-se o mito. Gargalhadas sobrepuseram-se às notas das requintas de uma banda militar, sob olhares vigilantes e furibundos dos guardiães ou guardiões, tanto faz, do templo.
* Professor universitário
Da versão on line do semanário O DESPERTAR.

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