A OUTRA FACE DO ESPELHO
AS IRREPETÍVEIS SEGUNDAS-FEIRAS
José Henrique Dias*
Como quase toda a gente, segui com algum entusiasmo o último Mundial de Futebol. Futebol que não é um desporto, mas um jogo. Tem todos os ingredientes do aleatório, pesem embora os crescentes rigores tácticos e mourinhas metodologias. A bola bate na trave quando não deve, o ressalto inviesa a eficácia do remate, o pé mal metido trai a estirada do guarda-redes e fabrica o auto-golo. Nada pior do que auto-flagelações. Os que perdem falam de azar. É um jogo de azar. Com compra de clubes e mixórdia de apostas. Com apitos de pechisbeque a refulgir dourado. As multidões vibram e glorificam os seus heróis. Os que jogam e os que comandam o jogo. Com cartas viciadas. A despropósito, fala-se de orgulho nacional. No livro da Quarta havia um texto, Porque me orgulho de ser Português. Falava de gente das caravelas e de evangelhos. Não vinha lá o Nicolau nem o Faísca, que corriam a Volta a Portugal. Não há metro para estas coisas do orgulho nacional. No futebol como no orgulho e nas ciências humanas, falta o rigor da equação e a dosagem no tubo de ensaio. A tragédia está em ninguém poder saber (pelo menos para já) quando pesa uma tristeza ou mede uma angústia. António Damásio há-de dar uma mãozinha nisto. Apesar de tudo, também remoí alguma tristeza depois do golo do Zidane, mas não posso saber se maior que a que li no rosto de meu filho. De qualquer modo, soltaram orgulho pela conquista de um quarto lugar. É bonito festejar derrotas. Pobretes mas alegretes. Que importa o futuro da Segurança Social ou o voltarete da General Motors? Quero lá saber da guerra no Médio Oriente. Está aí de novo o campeonato, crismado de liga faites vos jeux! O senhor Duarte de Bragança tirou da arca uma condecoração paroquial. De vez em quando consta que existe e que pretende. Pretende o que não existe. A cervejeira que patrocina tinha obrigação de dar a carica dourada. Os rapazes merecem. De quando em vez retomo emoções dos verdes anos. Os jogos eram em Santa Cruz. (Prometo não me esquecer da Arregaça). Eram ao Domingo. De manhã, umas vezes os juniores, outras as reservas. À tarde as primeiras. Víamos dois jogos, com fulgurante empenho e silabado A-cadé-mi-ca. Quando andava pelos cinco anos foi a festança pela vitória na primeira taça, ganha ao Benfica. São horas de emalar a trouxa / Boa noite, ó tia Maria/ Que a malta ganhava a taça/ Já toda a gente sabia. O que toda a gente sabia é que, sempre arrumadinho, o Tibério defendia quase tudo, o José Maria Antunes e o César Machado eram muralhas, o Alberto Gomes era um virtuoso e o Arnaldo Carneiro ganhava de cabeça ao mais pintado. Quem passava pelo Faustino? Se passava a bola não passava o homem. O Teixeira, um marranica conhecido por gasogénio, mordeu-lhe a barriga. Logo seguiu um açaimo para a sede do Benfica. Não vou enumerar a todos, mas seria capaz de repetir, de um jacto, a equipa até o Pimenta ou o Peseta. Como repetir algumas das equipas que se seguiram, com o Vasco na baliza e o Micael a ponta direita. Deste, sabe-se agora que teria missões secretas para além dos centros bem medidos. Revejo o talento do Nini, a oportunidade do Lemos e chego à geração do Bentes, que aos dezassete anos estreou o derby coimbrão. Jogo memorável para os unionistas e tertúlias do Café Santa Cruz. Da squadra azurra da Arregaça, lembro-me bem do Velha, beque direito durinho, do Celso, um excelente quiper, e de dois craques, como agora se diz, o Jesus e o Ermitério. Tenho dúvidas se o nome se escreve assim, mas não tenho agora maneira de verificar. Qualquer leitor da velha guarda será capaz de corrigir, se for caso disso.
O Bentes, como não voltar ao Bentes, era galáctico. Foi à Selecção tirando o lugar ao Rogério, o Pipi do Benfica, e electrizou bancadas que lhe gritavam allez, allez petit! De baixa estatura, tinha um raro poder de elevação (fora campeão de salto em altura lá pela Portalegre de onde veio) e tinha velocidade de rato atómico. O poema de Manuel Alegre, que é praça da canção do meu tempo, regista a dimensão poética do génio futebolístico. Ele, o Bentes, era sempre a derradeira esperança. Fugia pela esquerda, com a bola colada ao pé, fintava quem aparecia pela frente, e metia a bola fora do alcance de todos os azevedos e barriganas que voavam nas balizas. É preciso dobrar a língua: Barrigana, não, senhor Barrigana no plural, emendava ele os atrevidos. A Académica era a nossa alegria. Quando corria mal a culpa era do árbitro. Fora o Ref!, gritava-se na bancada. O Ref de Referee. Então os defesas eram backs e os médios half-backs, o guarda-redes era keeper, os cantos eram corners e ainda se dizia freekick nos livres. Pois é, aquilo veio de Inglaterra, por isso a equipa da RAF, Royal Air Force, deu dez a zero à nossa Selecção. O grande ícone de então era Stanley Mathews. Que morreu Sir. Por cá havia alguns génios, que morreram pobres. A bola era pesada e os campos enlameados. Quando veio o relvado do Calhabé, à mão de semear do liceu feminino, era outro jogo. Viva o Bentes e os
passes do Nana! Irrepetivelmente diferentes as segundas-feiras. Discutíamos o jogo nos intervalos das aulas, com os jogadores. Eram nossos colegas e viviam como nós a mística da Briosa. Outros tempos, com certeza. Impossíveis no capitalismo asselvajado (deixem-me dizer assim, que sabe bem) do futebol de hoje. Gente leiloada no mercado o chuto. Orçamentos milionários. Milionários sem orçamentos. Bem sei que ainda equipam de preto. Talvez ainda haja o pontapé no rabo no dia da estreia. Mas também sei do OA de Organismo Autónomo. Novos tempos, dir-me- ão. E sempre ressoa, silabado, o grito A-cadé-mi-ca. Ecoa na memória. Reverbera no brilhozinho dos olhos. Onde a simbólica laranjada como prémio de vitória?
Quantos se encontram nos intervalos das aulas? Apesar do bichinho na maçã da alma, certo, certo, é que nada temos com os estranhos rumores de hoje.
* Professor Universitário
José Henrique Dias*
Como quase toda a gente, segui com algum entusiasmo o último Mundial de Futebol. Futebol que não é um desporto, mas um jogo. Tem todos os ingredientes do aleatório, pesem embora os crescentes rigores tácticos e mourinhas metodologias. A bola bate na trave quando não deve, o ressalto inviesa a eficácia do remate, o pé mal metido trai a estirada do guarda-redes e fabrica o auto-golo. Nada pior do que auto-flagelações. Os que perdem falam de azar. É um jogo de azar. Com compra de clubes e mixórdia de apostas. Com apitos de pechisbeque a refulgir dourado. As multidões vibram e glorificam os seus heróis. Os que jogam e os que comandam o jogo. Com cartas viciadas. A despropósito, fala-se de orgulho nacional. No livro da Quarta havia um texto, Porque me orgulho de ser Português. Falava de gente das caravelas e de evangelhos. Não vinha lá o Nicolau nem o Faísca, que corriam a Volta a Portugal. Não há metro para estas coisas do orgulho nacional. No futebol como no orgulho e nas ciências humanas, falta o rigor da equação e a dosagem no tubo de ensaio. A tragédia está em ninguém poder saber (pelo menos para já) quando pesa uma tristeza ou mede uma angústia. António Damásio há-de dar uma mãozinha nisto. Apesar de tudo, também remoí alguma tristeza depois do golo do Zidane, mas não posso saber se maior que a que li no rosto de meu filho. De qualquer modo, soltaram orgulho pela conquista de um quarto lugar. É bonito festejar derrotas. Pobretes mas alegretes. Que importa o futuro da Segurança Social ou o voltarete da General Motors? Quero lá saber da guerra no Médio Oriente. Está aí de novo o campeonato, crismado de liga faites vos jeux! O senhor Duarte de Bragança tirou da arca uma condecoração paroquial. De vez em quando consta que existe e que pretende. Pretende o que não existe. A cervejeira que patrocina tinha obrigação de dar a carica dourada. Os rapazes merecem. De quando em vez retomo emoções dos verdes anos. Os jogos eram em Santa Cruz. (Prometo não me esquecer da Arregaça). Eram ao Domingo. De manhã, umas vezes os juniores, outras as reservas. À tarde as primeiras. Víamos dois jogos, com fulgurante empenho e silabado A-cadé-mi-ca. Quando andava pelos cinco anos foi a festança pela vitória na primeira taça, ganha ao Benfica. São horas de emalar a trouxa / Boa noite, ó tia Maria/ Que a malta ganhava a taça/ Já toda a gente sabia. O que toda a gente sabia é que, sempre arrumadinho, o Tibério defendia quase tudo, o José Maria Antunes e o César Machado eram muralhas, o Alberto Gomes era um virtuoso e o Arnaldo Carneiro ganhava de cabeça ao mais pintado. Quem passava pelo Faustino? Se passava a bola não passava o homem. O Teixeira, um marranica conhecido por gasogénio, mordeu-lhe a barriga. Logo seguiu um açaimo para a sede do Benfica. Não vou enumerar a todos, mas seria capaz de repetir, de um jacto, a equipa até o Pimenta ou o Peseta. Como repetir algumas das equipas que se seguiram, com o Vasco na baliza e o Micael a ponta direita. Deste, sabe-se agora que teria missões secretas para além dos centros bem medidos. Revejo o talento do Nini, a oportunidade do Lemos e chego à geração do Bentes, que aos dezassete anos estreou o derby coimbrão. Jogo memorável para os unionistas e tertúlias do Café Santa Cruz. Da squadra azurra da Arregaça, lembro-me bem do Velha, beque direito durinho, do Celso, um excelente quiper, e de dois craques, como agora se diz, o Jesus e o Ermitério. Tenho dúvidas se o nome se escreve assim, mas não tenho agora maneira de verificar. Qualquer leitor da velha guarda será capaz de corrigir, se for caso disso.
O Bentes, como não voltar ao Bentes, era galáctico. Foi à Selecção tirando o lugar ao Rogério, o Pipi do Benfica, e electrizou bancadas que lhe gritavam allez, allez petit! De baixa estatura, tinha um raro poder de elevação (fora campeão de salto em altura lá pela Portalegre de onde veio) e tinha velocidade de rato atómico. O poema de Manuel Alegre, que é praça da canção do meu tempo, regista a dimensão poética do génio futebolístico. Ele, o Bentes, era sempre a derradeira esperança. Fugia pela esquerda, com a bola colada ao pé, fintava quem aparecia pela frente, e metia a bola fora do alcance de todos os azevedos e barriganas que voavam nas balizas. É preciso dobrar a língua: Barrigana, não, senhor Barrigana no plural, emendava ele os atrevidos. A Académica era a nossa alegria. Quando corria mal a culpa era do árbitro. Fora o Ref!, gritava-se na bancada. O Ref de Referee. Então os defesas eram backs e os médios half-backs, o guarda-redes era keeper, os cantos eram corners e ainda se dizia freekick nos livres. Pois é, aquilo veio de Inglaterra, por isso a equipa da RAF, Royal Air Force, deu dez a zero à nossa Selecção. O grande ícone de então era Stanley Mathews. Que morreu Sir. Por cá havia alguns génios, que morreram pobres. A bola era pesada e os campos enlameados. Quando veio o relvado do Calhabé, à mão de semear do liceu feminino, era outro jogo. Viva o Bentes e os
passes do Nana! Irrepetivelmente diferentes as segundas-feiras. Discutíamos o jogo nos intervalos das aulas, com os jogadores. Eram nossos colegas e viviam como nós a mística da Briosa. Outros tempos, com certeza. Impossíveis no capitalismo asselvajado (deixem-me dizer assim, que sabe bem) do futebol de hoje. Gente leiloada no mercado o chuto. Orçamentos milionários. Milionários sem orçamentos. Bem sei que ainda equipam de preto. Talvez ainda haja o pontapé no rabo no dia da estreia. Mas também sei do OA de Organismo Autónomo. Novos tempos, dir-me- ão. E sempre ressoa, silabado, o grito A-cadé-mi-ca. Ecoa na memória. Reverbera no brilhozinho dos olhos. Onde a simbólica laranjada como prémio de vitória?
Quantos se encontram nos intervalos das aulas? Apesar do bichinho na maçã da alma, certo, certo, é que nada temos com os estranhos rumores de hoje.
* Professor Universitário
Da versão on line do semanário O DESPERTAR.
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