Armadilhas e Ardis da Memória
(algumas reflexões sobre Artur Paredes)
António Manuel Nunes
Não sendo guitarrista, desde há muito que a memória de Artur Paredes me acompanha, primeiro pela mão de Afonso de Sousa, depois pelo próximo e continuado contacto com Jorge Gomes, ensinante para quem Paredes era e é considerado o “Divino Mestre”.
Em dia de rememoração, seja-me permitido divagar sobre ardis que obstroem o acesso pleno à obra do artista.
-a obra fonográfica de juventude de Artur Paredes, gravada em Maio de 1927, continua por resgatar, num tempo em que se procedeu à recuperação dos primitivos raros de Carlos Galdel, Caruso, Tomás Alcaide e Amália Rodrigues. Afonso de Sousa, confrontado com as reedições de Edmundo Bettencourt e António Menano (década de 1980) tinha grande mágoa neste particular. A seu pedido cheguei a enviar propostas escritas à Valentim de Carvalho por 1989, sugerindo disponibilizar à editora as matrizes sonoras que porventura não tivesse em arquivo. Não houve resposta alguma favorável. Em 2003, no âmbito da Coimbra Capital Nacional da Cultura, voltei a insistir no resgate da obra de Artur Paredes. Em vão. Em 2005, tendo a Câmara Municipal de Coimbra anunciado a candidatura da CC a Património da Unesco, persisti na recuperação do espólio parediano. Sem sucesso, para consternação minha e de José Moças. Contas feitas, apenas a Tradisom recuperou na década de 1990 um dos originais primitivos de Artur Paredes, o que é muito pouco, original esse que tem sido reproduzido por outras editoras.
-a transcrição musical da obra de Artur Paredes continua por realizar e editar. Em 2002, na sequência das recolhas levadas a cabo sobre Flávio Rodrigues da Silva, ainda se conjecturou implementar um plano global de recolha de peças e respectiva transcrição musical. Contudo, nunca foi possível conjugar vontades e capitais suficientes para um empreendimento desta monta.
-não obstante ser um homem de convicções comunistas e republicanas, Artur Paredes não foi considerado no imediato após 1974 uma figura da oposição ao Estado Novo. Não teve direito a medalhas, placas toponímicas, bustos ou honrarias. Momentaneamente ofuscado pelo Neo-Realismo de seu filho Carlos Paredes, o velho Paredes parecia suspeito: não fora panfletarista, não fizera profissão de fé ao Realismo mais ortodoxo e dera colaboração aos programas da Emissora Nacional.
Por iniciativa de Afonso de Sousa, e estando em curso os primeiros seminários sobre o “Fado de Coimbra” descerrou-se uma lápide evocativa num prédio onde habitou nas Escadas do Quebra Costas. Em tempos de radicalismos exaltados, a placa seria vandalizada, tal qual aconteceu com outra dedicada a Edmundo Bettencourt, no Largo da Sé Velha. Infelizmente não tive oportunidade de proceder à recolocação da placa de homenagem a Artur Paredes na mesma altura em que se solucionou o problema da destruição da placa de Edmundo Bettencourt (25/11/1989). Até há muito pouco tempo, continuava por resolver a recolocação da placa no prédio do Quebra Costas, “desfeita” a todos os títulos desonrosa, sobretudo quando se fala com crescente insistência na revalorização do centro histórico de Coimbra.
Aquilo que venho a escrever, não sendo tudo, é seguramente muito. Afonso de Sousa considerava (e com inteira justiça) Artur Paredes o pai da Guitarra de Coimbra. Chegou a compará-lo a Miguel Ângelo, de tal modo a obra de juventude lembra o avassalador tecto da Capela Sistina, e a obra da maturidade o fresco do Juízo Final.
Há quem procure matizar ou até diminuir a originalidade artística de Artur Paredes, para tanto esgrimindo os seguintes argumentos:
-no caso das soluções digitantes avançadas na década de 1920 elas não seriam tão originais quanto se pretendeu pois em Lisboa o guitarrista Armandinho também estaria a desenvolver trabalho semelhante;
-no caso da transformação da antiga Guitarra de Coimbra na nova Guitarra, os louros caberiam essencialmente ao construtor João Pedro Grácio;
-Artur Paredes teria sido artisticamente ultrapassado por seu filho Carlos Paredes;
-não sendo uma figura de proa do Neo-Realismo, importaria olhar para Artur Paredes como um pai opressor e um artista perturbado por bizarrarias e taras…
Os argumentos são, sem dúvida, merecedores de madura reflexão. Para já, e quanto à primeira objecção, é oportuno frisar que Artur Paredes e Armandinho trabalharam em universos culturais, musicais e organológicos distintos. Não está sequer documentado que tenham convivido ou trocado experiências. No caso de Armandinho, muitas vezes considerado um guitarrista invulgar e original, a audição de discos de Fado de Lisboa gravados entre 1902 e 1910 vem provar que algumas das inovações erradamente atribuídas a Armandinho já existiam antes dele se ter afirmado. Relativamente ao contexto conimbricense, a originalidade de Artur Paredes é um dado inquestionável, seja como solista de composições instrumentais, seja como acompanhador de cantores. Não havia nenhuma “escola” antes dele onde o guitarrista pudesse colher “receitas”. Quanto à transformação do instrumento, o processo reformador tem de ser imputado a Artur Paredes, tomando como alfa a antiga Guitarra de Coimbra e não a Guitarra de Lisboa. Antes de João Pedro Grácio ter feito a sua entrada no processo, os passos decisivos foram dados por Artur Paredes, Guilherme Barbosa e Joaquim Grácio. Deixo os outros argumentos para mentes mais especulativas. O contexto familiar dos Paredes é efectivamente atravessado por relações de violência, temperamentos coléricos e quebras de relações. As circunstancias mais conhecidas reportam-se a Artur, mas há resíduos orais para Gonçalo e sobrevivências desestruturantes em Carlos. As historietas não passam disso mesmo. Não estamos bem a enxergar de que modo o Artur Paredes que sai de uma agência funerária com uma prancha de pau preto ao ombro e entra no eléctrico desajeitadamente com a dita, pancada aqui, empurrão ali, contribua de forma ponderosa para fazer uma boa biografia.
Até ao advento de Artur Paredes existiam basicamente três “estilos” assentes em três tipos regionalizados de guitarras:
a) o estilo de Lisboa, praticamente confinado ao universo do Fado, de todos o mais fortemente codificado em termos de afinações e de toques, cujo instrumento nuclear evolucionara a partir da Cítara;
b) o estilo do Porto, baseado no emprego da afinação natural, muito voltado para a prática regional do Fado, serenatas, rapsódias populares, composição clássicas, actuações em salões, assembleias e cafés, numa clara herança da Guitarra Inglesa (para a música de índole mais popular usava-se a viola braguesa);
c) o estilo antigo de Coimbra, assente na afinação natural e num modelo regional de guitarra recentemente definido grosso modo a partir da Guitarra Inglesa/Guitarra do Porto, com fortes incursões nos campos do Fado de Lisboa que localmente se cultivava, Canção de Coimbra e folclore regional.
O acesso à discografia anterior a 1950 prova inquestionavelmente que aquilo a que se viria a chamar o “estilo de Coimbra” resultou da naturalização do Estilo Artur Paredes. Como tal, a crítica (por vezes pertinente) aos assomos de idolatria parediana não deverá sonegar à Guitarra de Coimbra o seu Código Genético.
Se a obra guitarrística de Artur Paredes permanece inacessível (tendo os ensinantes e as escolas de se socorrer de cópias), o que dizer quanto à sua biografia? Relativamente ao local de nascimento, levantaram-se dúvidas na década de 1990. Julgo que o Dr. Carlos Serra, na fase em que esteve mais ligado ao Museu Académico, chegou a devassar registos paroquiais e terá mesmo arrimado à posse de dados que ligariam membros da família Paredes a Ançã.
A data e as circunstâncias da morte do pai do guitarrista, Gonçalo Paredes, continuam por desvendar. Há quem fale em assassinato, relato oral que nunca consegui confirmar. Afonso de Sousa chegou a aventar a possibilidade de Artur Paredes, já órfão, ter habitado no Colégio dos Órfãos da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Acontece que na fase de preparação da sua tese de mestrado sobre o ensino da guitarra em Coimbra Fernando Marques pesquisou demoradamente os livros da referida instituição e neles nada achou sobre Artur Paredes.
Muito menos estão esclarecidos os motivos extra-profissionais que levaram Artur Paredes a fixar-se em Lisboa no Inverno de 1934, nem o pesado corte de relações com o ramo familiar de Coimbra, polarizado por seu tio, o guitarrista Manuel Rodrigues Paredes.
Como se tais lacunas e dificuldades não fossem suficientemente gravosas, impõe-se abrir as portas a delicadas nuances, cuja natureza pode ajudar a perceber uma certa má relação entre Coimbra e Artur Paredes.
Quem habitualmente zela pela memória de Artur Paredes é a Academia de Coimbra, que não os populares de Coimbra. Artur Paredes desde muito jovem ligou-se à Academia e a artistas amadores estudantes. Com eles gravou discos, com eles percorreu Portugal, Espanha, Brasil e França. Tudo isto aconteceu num tempo em que as relações entre estudantes e futricas obedeciam a códigos de conduta muito tipificados.
A aproximação de Artur Paredes à Academia mereceu a reprovação dos seus pares, tendo sido considerada uma espécie de “traição”. Daí a alcunha o “Doutor”, atribuída desdenhosamente pelos futricas a Artur Paredes. Por seu turno, Artur Paredes responderia com altivez a estas desconsiderações da sua gente.
As gravações realizadas por Paredes em finais da década de 1920 suscitaram enorme polémica nos meios locais. Dizia-se que não respeitava a tradição, pois as gravações feitas com Bettencourt em nada se assemelhavam às concretizadas por António Menano/Flávio Rodrigues. Se os arranjos de acompanhamento eram “estranhos”, o que dizer das guitarradas, cuja afinação e dedilhação não lembravam à outiva dos novos nem dos mais antigos nada que se parecesse com o Mansilha, o Borges de Sousa, o Antero da Veiga, o Chico Menano? Aquilo não era “fado de Coimbra” nem “música de Coimbra”, acrescentava-se.
Adoptado pela Academia de Coimbra, Artur Paredes viu-se enjeitado pela Sociedade Tradicional Futrica que passou a reclamar como símbolo identitário Flávio Rodrigues da Silva. Anos mais tarde, duas outras questiúnculas contribuíram para o agravamento da situação.
A primeira prende-se com o facto de Artur Paredes ter gravado a melodia da “Balada de Coimbra” em 1927 sem que na etiqueta do disco viesse anotada a autoria de José das Neves Eliseu. Logo começou a correr que Artur Paredes tentara apropriar-se ilegitimanente da melodia, incorrendo em enriquecimento sem injusta causa, com prejuízo dos herdeiros de Eliseu. O retumbante sucesso deste tema nos programas da Emissora Nacional voltaria a agravar as tensões entre o guitarrista e os descendentes de José Eliseu. Confrontado com um processo judicial, decidido a favor dos filhos de José Eliseu, Artur Paredes confirmou aquilo que sempre reclamara: era autor não da música original mas dos arranjos para guitarra. O desfecho do pleito judicial em nada contribuiu para aproximar Paredes e a sua obra artística da Sociedade Tradicional Futrica.
O segundo pleito relaciona-se com as transformações operadas na antiga guitarra, a tal ponto que desde ca. 1940 passou a comportar mais avantajadas dimensões e sonoridade potente, dotada de certa agressividade. A rápida adopção do novo tipo de cordofone na Academia de Coimbra (implementada até 1954) não encontrou simpatizantes nos meios populares. Argumentou-se que a verdadeira guitarra representativa da cultura futrica e salatina era a de modelo antigo, cuja sonoridade se revelaria mais apropriada ao folclore e às serenatas da velha urbe.
Retirado dos palcos desde ca. 1960, Artur Paredes viveu os últimos anos em crescente isolamento. Vieram o esfriamento de relações com o filho Carlos, a morte da filha, a morte dos velhos amigos Bettencourt, Paradela e Armando Goes, a viuvez e os padecimentos do aparelho urinário. Mesmo assim, continuava a ser muito solicitado e visitado por Teotónio Xavier, Frias Gonçalves, Carlos Figueiredo e Octávio Sérgio. Visitava-se Artur Paredes com um misto de curiosidade, alvoroçado temor e veneração. E quem teve o privilégio de o visitar, sabe que não era a mesma coisa que ir a casa de um simples tocador de guitarra. Ele era o "pontifex maximus da Guitarra de Coimbra".
Na sua obra artística da maturidade, Artur Paredes evoluíra para uma espécie de maneirismo refinado, marcado pela busca da perfeição. Não voltou a gravar com cantores, mas sabe-se que estava muito próximo das soluções do Novo Canto formuladas na 2ª metade da década de 1960 por Luiz Goes/João Bagão. E quem diz Artur Paredes, diz Edmundo Bettencourt e Afonso de Sousa.
O espólio sonoro não industrial de Artur Paredes tem suscitado dúvidas e melindres. Contava Afonso de Sousa que Artur Paredes tinha na sua casa de Lisboa um compartimento reservado com diversas guitarras, bobines, unhas postiças, gravadores e discos. Estas declarações foram já confirmadas por outros frequentadores da sua casa. Teotónio Xavier adianta que Artur Paredes lhe pediu insistentemente para guardar esse material, pedido que recusou. Após a morte de Carlos Paredes (2004), Teotónio Xavier tem questionado Luísa Amaro quanto ao paradeiro desses materiais. De acordo com outros testemunhos, houve frequentadores da casa de Artur Paredes que na fase terminal lhe surriparam muito material. Outros ainda acrescentam que o próprio guitarrista antes de falecer procedeu à destruição do grosso da sua documentação sonora, com receio de que no futuro alguém se aproveitasse do seu trabalho.
Uma outra pergunta, esperançosamente formulada, prende-se com os arquivos da Emissora Nacional. Terá a antiga Emissora Nacional guardado registos gravados (bobines de fita de aço) dos concertos dados entre a década de 1940 e inícios dos anos 50 pelo trio Artur Paredes/Carlos Paredes/Arménio Silva? A resposta infelizmente é negativa. Não existe rigorosamente nada no Museu da RDP reportado às actuações de Artur Paredes, à semelhança do que aliás aconteceu na Emissora Regional de Coimbra com as Serenatas dos anos de 1940 e 1950. Ou não se gravaram as actuações, ou as bobines foram reutilizadas para outros fins.
Como se pode constatar, a herança de Artur Paredes não é apenas um caso de “má vontade” ou “ignorância” de certas editoras.
Caberá certamente às gerações em processo de afirmação no contexto da Galáxia Sonora Coimbrã a implementação de planos de salvaguarda do legado cultural de Artur Paredes. O alargamento do conceito de património e o acesso a novas tecnologias poderão constituir mais valias na desobstrução de dificuldades que as gerações de passado não lograram remover.
(algumas reflexões sobre Artur Paredes)
António Manuel Nunes
Não sendo guitarrista, desde há muito que a memória de Artur Paredes me acompanha, primeiro pela mão de Afonso de Sousa, depois pelo próximo e continuado contacto com Jorge Gomes, ensinante para quem Paredes era e é considerado o “Divino Mestre”.
Em dia de rememoração, seja-me permitido divagar sobre ardis que obstroem o acesso pleno à obra do artista.
-a obra fonográfica de juventude de Artur Paredes, gravada em Maio de 1927, continua por resgatar, num tempo em que se procedeu à recuperação dos primitivos raros de Carlos Galdel, Caruso, Tomás Alcaide e Amália Rodrigues. Afonso de Sousa, confrontado com as reedições de Edmundo Bettencourt e António Menano (década de 1980) tinha grande mágoa neste particular. A seu pedido cheguei a enviar propostas escritas à Valentim de Carvalho por 1989, sugerindo disponibilizar à editora as matrizes sonoras que porventura não tivesse em arquivo. Não houve resposta alguma favorável. Em 2003, no âmbito da Coimbra Capital Nacional da Cultura, voltei a insistir no resgate da obra de Artur Paredes. Em vão. Em 2005, tendo a Câmara Municipal de Coimbra anunciado a candidatura da CC a Património da Unesco, persisti na recuperação do espólio parediano. Sem sucesso, para consternação minha e de José Moças. Contas feitas, apenas a Tradisom recuperou na década de 1990 um dos originais primitivos de Artur Paredes, o que é muito pouco, original esse que tem sido reproduzido por outras editoras.
-a transcrição musical da obra de Artur Paredes continua por realizar e editar. Em 2002, na sequência das recolhas levadas a cabo sobre Flávio Rodrigues da Silva, ainda se conjecturou implementar um plano global de recolha de peças e respectiva transcrição musical. Contudo, nunca foi possível conjugar vontades e capitais suficientes para um empreendimento desta monta.
-não obstante ser um homem de convicções comunistas e republicanas, Artur Paredes não foi considerado no imediato após 1974 uma figura da oposição ao Estado Novo. Não teve direito a medalhas, placas toponímicas, bustos ou honrarias. Momentaneamente ofuscado pelo Neo-Realismo de seu filho Carlos Paredes, o velho Paredes parecia suspeito: não fora panfletarista, não fizera profissão de fé ao Realismo mais ortodoxo e dera colaboração aos programas da Emissora Nacional.
Por iniciativa de Afonso de Sousa, e estando em curso os primeiros seminários sobre o “Fado de Coimbra” descerrou-se uma lápide evocativa num prédio onde habitou nas Escadas do Quebra Costas. Em tempos de radicalismos exaltados, a placa seria vandalizada, tal qual aconteceu com outra dedicada a Edmundo Bettencourt, no Largo da Sé Velha. Infelizmente não tive oportunidade de proceder à recolocação da placa de homenagem a Artur Paredes na mesma altura em que se solucionou o problema da destruição da placa de Edmundo Bettencourt (25/11/1989). Até há muito pouco tempo, continuava por resolver a recolocação da placa no prédio do Quebra Costas, “desfeita” a todos os títulos desonrosa, sobretudo quando se fala com crescente insistência na revalorização do centro histórico de Coimbra.
Aquilo que venho a escrever, não sendo tudo, é seguramente muito. Afonso de Sousa considerava (e com inteira justiça) Artur Paredes o pai da Guitarra de Coimbra. Chegou a compará-lo a Miguel Ângelo, de tal modo a obra de juventude lembra o avassalador tecto da Capela Sistina, e a obra da maturidade o fresco do Juízo Final.
Há quem procure matizar ou até diminuir a originalidade artística de Artur Paredes, para tanto esgrimindo os seguintes argumentos:
-no caso das soluções digitantes avançadas na década de 1920 elas não seriam tão originais quanto se pretendeu pois em Lisboa o guitarrista Armandinho também estaria a desenvolver trabalho semelhante;
-no caso da transformação da antiga Guitarra de Coimbra na nova Guitarra, os louros caberiam essencialmente ao construtor João Pedro Grácio;
-Artur Paredes teria sido artisticamente ultrapassado por seu filho Carlos Paredes;
-não sendo uma figura de proa do Neo-Realismo, importaria olhar para Artur Paredes como um pai opressor e um artista perturbado por bizarrarias e taras…
Os argumentos são, sem dúvida, merecedores de madura reflexão. Para já, e quanto à primeira objecção, é oportuno frisar que Artur Paredes e Armandinho trabalharam em universos culturais, musicais e organológicos distintos. Não está sequer documentado que tenham convivido ou trocado experiências. No caso de Armandinho, muitas vezes considerado um guitarrista invulgar e original, a audição de discos de Fado de Lisboa gravados entre 1902 e 1910 vem provar que algumas das inovações erradamente atribuídas a Armandinho já existiam antes dele se ter afirmado. Relativamente ao contexto conimbricense, a originalidade de Artur Paredes é um dado inquestionável, seja como solista de composições instrumentais, seja como acompanhador de cantores. Não havia nenhuma “escola” antes dele onde o guitarrista pudesse colher “receitas”. Quanto à transformação do instrumento, o processo reformador tem de ser imputado a Artur Paredes, tomando como alfa a antiga Guitarra de Coimbra e não a Guitarra de Lisboa. Antes de João Pedro Grácio ter feito a sua entrada no processo, os passos decisivos foram dados por Artur Paredes, Guilherme Barbosa e Joaquim Grácio. Deixo os outros argumentos para mentes mais especulativas. O contexto familiar dos Paredes é efectivamente atravessado por relações de violência, temperamentos coléricos e quebras de relações. As circunstancias mais conhecidas reportam-se a Artur, mas há resíduos orais para Gonçalo e sobrevivências desestruturantes em Carlos. As historietas não passam disso mesmo. Não estamos bem a enxergar de que modo o Artur Paredes que sai de uma agência funerária com uma prancha de pau preto ao ombro e entra no eléctrico desajeitadamente com a dita, pancada aqui, empurrão ali, contribua de forma ponderosa para fazer uma boa biografia.
Até ao advento de Artur Paredes existiam basicamente três “estilos” assentes em três tipos regionalizados de guitarras:
a) o estilo de Lisboa, praticamente confinado ao universo do Fado, de todos o mais fortemente codificado em termos de afinações e de toques, cujo instrumento nuclear evolucionara a partir da Cítara;
b) o estilo do Porto, baseado no emprego da afinação natural, muito voltado para a prática regional do Fado, serenatas, rapsódias populares, composição clássicas, actuações em salões, assembleias e cafés, numa clara herança da Guitarra Inglesa (para a música de índole mais popular usava-se a viola braguesa);
c) o estilo antigo de Coimbra, assente na afinação natural e num modelo regional de guitarra recentemente definido grosso modo a partir da Guitarra Inglesa/Guitarra do Porto, com fortes incursões nos campos do Fado de Lisboa que localmente se cultivava, Canção de Coimbra e folclore regional.
O acesso à discografia anterior a 1950 prova inquestionavelmente que aquilo a que se viria a chamar o “estilo de Coimbra” resultou da naturalização do Estilo Artur Paredes. Como tal, a crítica (por vezes pertinente) aos assomos de idolatria parediana não deverá sonegar à Guitarra de Coimbra o seu Código Genético.
Se a obra guitarrística de Artur Paredes permanece inacessível (tendo os ensinantes e as escolas de se socorrer de cópias), o que dizer quanto à sua biografia? Relativamente ao local de nascimento, levantaram-se dúvidas na década de 1990. Julgo que o Dr. Carlos Serra, na fase em que esteve mais ligado ao Museu Académico, chegou a devassar registos paroquiais e terá mesmo arrimado à posse de dados que ligariam membros da família Paredes a Ançã.
A data e as circunstâncias da morte do pai do guitarrista, Gonçalo Paredes, continuam por desvendar. Há quem fale em assassinato, relato oral que nunca consegui confirmar. Afonso de Sousa chegou a aventar a possibilidade de Artur Paredes, já órfão, ter habitado no Colégio dos Órfãos da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Acontece que na fase de preparação da sua tese de mestrado sobre o ensino da guitarra em Coimbra Fernando Marques pesquisou demoradamente os livros da referida instituição e neles nada achou sobre Artur Paredes.
Muito menos estão esclarecidos os motivos extra-profissionais que levaram Artur Paredes a fixar-se em Lisboa no Inverno de 1934, nem o pesado corte de relações com o ramo familiar de Coimbra, polarizado por seu tio, o guitarrista Manuel Rodrigues Paredes.
Como se tais lacunas e dificuldades não fossem suficientemente gravosas, impõe-se abrir as portas a delicadas nuances, cuja natureza pode ajudar a perceber uma certa má relação entre Coimbra e Artur Paredes.
Quem habitualmente zela pela memória de Artur Paredes é a Academia de Coimbra, que não os populares de Coimbra. Artur Paredes desde muito jovem ligou-se à Academia e a artistas amadores estudantes. Com eles gravou discos, com eles percorreu Portugal, Espanha, Brasil e França. Tudo isto aconteceu num tempo em que as relações entre estudantes e futricas obedeciam a códigos de conduta muito tipificados.
A aproximação de Artur Paredes à Academia mereceu a reprovação dos seus pares, tendo sido considerada uma espécie de “traição”. Daí a alcunha o “Doutor”, atribuída desdenhosamente pelos futricas a Artur Paredes. Por seu turno, Artur Paredes responderia com altivez a estas desconsiderações da sua gente.
As gravações realizadas por Paredes em finais da década de 1920 suscitaram enorme polémica nos meios locais. Dizia-se que não respeitava a tradição, pois as gravações feitas com Bettencourt em nada se assemelhavam às concretizadas por António Menano/Flávio Rodrigues. Se os arranjos de acompanhamento eram “estranhos”, o que dizer das guitarradas, cuja afinação e dedilhação não lembravam à outiva dos novos nem dos mais antigos nada que se parecesse com o Mansilha, o Borges de Sousa, o Antero da Veiga, o Chico Menano? Aquilo não era “fado de Coimbra” nem “música de Coimbra”, acrescentava-se.
Adoptado pela Academia de Coimbra, Artur Paredes viu-se enjeitado pela Sociedade Tradicional Futrica que passou a reclamar como símbolo identitário Flávio Rodrigues da Silva. Anos mais tarde, duas outras questiúnculas contribuíram para o agravamento da situação.
A primeira prende-se com o facto de Artur Paredes ter gravado a melodia da “Balada de Coimbra” em 1927 sem que na etiqueta do disco viesse anotada a autoria de José das Neves Eliseu. Logo começou a correr que Artur Paredes tentara apropriar-se ilegitimanente da melodia, incorrendo em enriquecimento sem injusta causa, com prejuízo dos herdeiros de Eliseu. O retumbante sucesso deste tema nos programas da Emissora Nacional voltaria a agravar as tensões entre o guitarrista e os descendentes de José Eliseu. Confrontado com um processo judicial, decidido a favor dos filhos de José Eliseu, Artur Paredes confirmou aquilo que sempre reclamara: era autor não da música original mas dos arranjos para guitarra. O desfecho do pleito judicial em nada contribuiu para aproximar Paredes e a sua obra artística da Sociedade Tradicional Futrica.
O segundo pleito relaciona-se com as transformações operadas na antiga guitarra, a tal ponto que desde ca. 1940 passou a comportar mais avantajadas dimensões e sonoridade potente, dotada de certa agressividade. A rápida adopção do novo tipo de cordofone na Academia de Coimbra (implementada até 1954) não encontrou simpatizantes nos meios populares. Argumentou-se que a verdadeira guitarra representativa da cultura futrica e salatina era a de modelo antigo, cuja sonoridade se revelaria mais apropriada ao folclore e às serenatas da velha urbe.
Retirado dos palcos desde ca. 1960, Artur Paredes viveu os últimos anos em crescente isolamento. Vieram o esfriamento de relações com o filho Carlos, a morte da filha, a morte dos velhos amigos Bettencourt, Paradela e Armando Goes, a viuvez e os padecimentos do aparelho urinário. Mesmo assim, continuava a ser muito solicitado e visitado por Teotónio Xavier, Frias Gonçalves, Carlos Figueiredo e Octávio Sérgio. Visitava-se Artur Paredes com um misto de curiosidade, alvoroçado temor e veneração. E quem teve o privilégio de o visitar, sabe que não era a mesma coisa que ir a casa de um simples tocador de guitarra. Ele era o "pontifex maximus da Guitarra de Coimbra".
Na sua obra artística da maturidade, Artur Paredes evoluíra para uma espécie de maneirismo refinado, marcado pela busca da perfeição. Não voltou a gravar com cantores, mas sabe-se que estava muito próximo das soluções do Novo Canto formuladas na 2ª metade da década de 1960 por Luiz Goes/João Bagão. E quem diz Artur Paredes, diz Edmundo Bettencourt e Afonso de Sousa.
O espólio sonoro não industrial de Artur Paredes tem suscitado dúvidas e melindres. Contava Afonso de Sousa que Artur Paredes tinha na sua casa de Lisboa um compartimento reservado com diversas guitarras, bobines, unhas postiças, gravadores e discos. Estas declarações foram já confirmadas por outros frequentadores da sua casa. Teotónio Xavier adianta que Artur Paredes lhe pediu insistentemente para guardar esse material, pedido que recusou. Após a morte de Carlos Paredes (2004), Teotónio Xavier tem questionado Luísa Amaro quanto ao paradeiro desses materiais. De acordo com outros testemunhos, houve frequentadores da casa de Artur Paredes que na fase terminal lhe surriparam muito material. Outros ainda acrescentam que o próprio guitarrista antes de falecer procedeu à destruição do grosso da sua documentação sonora, com receio de que no futuro alguém se aproveitasse do seu trabalho.
Uma outra pergunta, esperançosamente formulada, prende-se com os arquivos da Emissora Nacional. Terá a antiga Emissora Nacional guardado registos gravados (bobines de fita de aço) dos concertos dados entre a década de 1940 e inícios dos anos 50 pelo trio Artur Paredes/Carlos Paredes/Arménio Silva? A resposta infelizmente é negativa. Não existe rigorosamente nada no Museu da RDP reportado às actuações de Artur Paredes, à semelhança do que aliás aconteceu na Emissora Regional de Coimbra com as Serenatas dos anos de 1940 e 1950. Ou não se gravaram as actuações, ou as bobines foram reutilizadas para outros fins.
Como se pode constatar, a herança de Artur Paredes não é apenas um caso de “má vontade” ou “ignorância” de certas editoras.
Caberá certamente às gerações em processo de afirmação no contexto da Galáxia Sonora Coimbrã a implementação de planos de salvaguarda do legado cultural de Artur Paredes. O alargamento do conceito de património e o acesso a novas tecnologias poderão constituir mais valias na desobstrução de dificuldades que as gerações de passado não lograram remover.
ADENDA: atendendo às sugestões de alguns leitores do Blog "guitarradecoimbra" quanto à necessidade de suprir a lacuna toponímica que rodeia o nome de ARTUR PAREDES, estão já em curso contactos com membros da Comissão Municipal de Toponímia de Coimbra para que no próximo ano de 2007 a cidade natal de Artur Paredes possa assinalar condignamente o nome daquele artista. Ao longo dos próximos meses esperamos conseguir dar conta da evolução da situação e agradecer publicamente ao nosso pronto e amável "mandatário".
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