Da árdua definibilidade da “Canção de Coimbra” *
Armando Luís de Carvalho HOMEM
Entre 1978 e 1983 tiveram lugar cinco Seminários sobre o «Fado de Coimbra», organização da Comissão Municipal de Turismo, com apoios como o da Associação dos Antigos Estudantes, o da Reitoria da Universidade e o da Faculdade de Letras (onde decorreu a maior parte das sessões). Destaque, nesses anos sucessivos, para moderações de mesa ou intervenções de fundo como as de [e cito um pouco ao acaso da rememoração] António Brojo (1927-1999), Manuel Louzã Henriques, Afonso de Sousa (1906-1993), Luiz Goes, Francisco Faria, Florêncio de Carvalho (1924-1981), António Portugal (1931-1994), José Miguel Baptista, Jorge Morais («Xabregas»), Fernando Rolim ou J. Mendes Silva[1]. Organizações de primordial importância no relançar do género musical que é o nosso, tais Seminários propiciaram importantes reflexões, audição de novas peças, notabilíssimas Serenatas na Sé Velha – de que alguns possuirão precárias gravações, a partir de transmissões, televisiva[2] ou radiofónicas (RDP/Centro) – e, talvez acima de tudo, momentos de ímpar convívio entre os participantes.
Uma coisa, no entanto, os Seminários não lograram: definir o que seja (e como seja) a «Canção de Coimbra». E, vinte / vinte e cinco anos volvidos, há que concluir que nem legítimo era tal poder esperar-se. Houve, é certo, tentativas interessantes[3]:
o Como a de Francisco Faria (III Seminário, 1980), ao apontar a importância, na viragem do século, da passagem do binário ao quaternário, na construção de temas cantados.
o Ou como, até mais acutilantemente, a de Fernando Rolim (V Seminário, 1983)[4], ao distinguir «Fado de Coimbra» em sentido restrito, como tema de duas quadras em verso de redondilha maior, as quais se cantam sucessivamente, repetindo a melodia, e «Fado de Coimbra» em sentido lato, aqui cabendo toda uma infinidade de formas musicais e poéticas (soneto, fado-canção, fado-serenata, balada, trova, etc.).
Mas é óbvio que nem essas nem outras intervenções, por importantes que tenham sido, resolveram o problema. Porque o que está no fundo em causa é, talvez algo impressionisticamente, uma certa forma de dizer, um certo tipo de emissão vocal, uma(s) certa(s) maneira(s) de dedilhar a guitarra, um certo aproveitamento de bordões e cordas agudas da viola. Daí a precaridade de qualquer definição; e talvez até seja relativamente mais viável dizer o que não é Coimbra, quando, porventura, algum outsider se afoita por estes terrenos...
Se é portanto complicado afirmar, normativa e definitoriamente, o que é Coimbra, talvez seja mais viável dizer o que Coimbra foi num dado momento, em função de determinadas gerações e/ou intérpretes: porque então teremos uma potencial fonte, de quase ilimitadas possibilidades – os discos e outros registos sonoros.
É no entanto evidente que não é isto que, por si só, nos desbrava o caminho. Perante uma gravação, qualquer um com um mínimo de bom-senso e bom-gosto pode avaliar da qualidade de um tema, de uma voz, de um executante instrumental. Mas se portador não for de um mínimo de cultura coimbrã ficará a bem dizer inabilitado a caracterizar os temas e os intérpretes em termos de estilo, dimensão temporal, tradição/inovação, etc. E assim, se pela via da utilização das fontes sonoras – em contraposição à simples rememoração vivencial – o Canto e a Guitarra de Coimbra se tornam tema de potencial abordagem científica, também é certo que essas fontes só o serão se portadoras de sentido para o eventual estudioso[5], que além do mais as terá que abordar despido de quaisquer preconceitos como os que marcaram (e continuam a marcar) um certo tipo de ensaísmo remontante aos anos 50 (ou 60 iniciais) ou, depois, a geração dos Amigos de Alex, mesmo que os amigos se tenham entretanto transmutado em Homens de Ciência (incluindo sociólogos e antropólogos !). Em suma: ser historiador do Canto e da Guitarra de Coimbra é viável; mas não será, no imediato, ofício para muitos…
Lisboa, Novembro de 1999
Armando Luís de Carvalho HOMEM
Entre 1978 e 1983 tiveram lugar cinco Seminários sobre o «Fado de Coimbra», organização da Comissão Municipal de Turismo, com apoios como o da Associação dos Antigos Estudantes, o da Reitoria da Universidade e o da Faculdade de Letras (onde decorreu a maior parte das sessões). Destaque, nesses anos sucessivos, para moderações de mesa ou intervenções de fundo como as de [e cito um pouco ao acaso da rememoração] António Brojo (1927-1999), Manuel Louzã Henriques, Afonso de Sousa (1906-1993), Luiz Goes, Francisco Faria, Florêncio de Carvalho (1924-1981), António Portugal (1931-1994), José Miguel Baptista, Jorge Morais («Xabregas»), Fernando Rolim ou J. Mendes Silva[1]. Organizações de primordial importância no relançar do género musical que é o nosso, tais Seminários propiciaram importantes reflexões, audição de novas peças, notabilíssimas Serenatas na Sé Velha – de que alguns possuirão precárias gravações, a partir de transmissões, televisiva[2] ou radiofónicas (RDP/Centro) – e, talvez acima de tudo, momentos de ímpar convívio entre os participantes.
Uma coisa, no entanto, os Seminários não lograram: definir o que seja (e como seja) a «Canção de Coimbra». E, vinte / vinte e cinco anos volvidos, há que concluir que nem legítimo era tal poder esperar-se. Houve, é certo, tentativas interessantes[3]:
o Como a de Francisco Faria (III Seminário, 1980), ao apontar a importância, na viragem do século, da passagem do binário ao quaternário, na construção de temas cantados.
o Ou como, até mais acutilantemente, a de Fernando Rolim (V Seminário, 1983)[4], ao distinguir «Fado de Coimbra» em sentido restrito, como tema de duas quadras em verso de redondilha maior, as quais se cantam sucessivamente, repetindo a melodia, e «Fado de Coimbra» em sentido lato, aqui cabendo toda uma infinidade de formas musicais e poéticas (soneto, fado-canção, fado-serenata, balada, trova, etc.).
Mas é óbvio que nem essas nem outras intervenções, por importantes que tenham sido, resolveram o problema. Porque o que está no fundo em causa é, talvez algo impressionisticamente, uma certa forma de dizer, um certo tipo de emissão vocal, uma(s) certa(s) maneira(s) de dedilhar a guitarra, um certo aproveitamento de bordões e cordas agudas da viola. Daí a precaridade de qualquer definição; e talvez até seja relativamente mais viável dizer o que não é Coimbra, quando, porventura, algum outsider se afoita por estes terrenos...
Se é portanto complicado afirmar, normativa e definitoriamente, o que é Coimbra, talvez seja mais viável dizer o que Coimbra foi num dado momento, em função de determinadas gerações e/ou intérpretes: porque então teremos uma potencial fonte, de quase ilimitadas possibilidades – os discos e outros registos sonoros.
É no entanto evidente que não é isto que, por si só, nos desbrava o caminho. Perante uma gravação, qualquer um com um mínimo de bom-senso e bom-gosto pode avaliar da qualidade de um tema, de uma voz, de um executante instrumental. Mas se portador não for de um mínimo de cultura coimbrã ficará a bem dizer inabilitado a caracterizar os temas e os intérpretes em termos de estilo, dimensão temporal, tradição/inovação, etc. E assim, se pela via da utilização das fontes sonoras – em contraposição à simples rememoração vivencial – o Canto e a Guitarra de Coimbra se tornam tema de potencial abordagem científica, também é certo que essas fontes só o serão se portadoras de sentido para o eventual estudioso[5], que além do mais as terá que abordar despido de quaisquer preconceitos como os que marcaram (e continuam a marcar) um certo tipo de ensaísmo remontante aos anos 50 (ou 60 iniciais) ou, depois, a geração dos Amigos de Alex, mesmo que os amigos se tenham entretanto transmutado em Homens de Ciência (incluindo sociólogos e antropólogos !). Em suma: ser historiador do Canto e da Guitarra de Coimbra é viável; mas não será, no imediato, ofício para muitos…
Lisboa, Novembro de 1999
* Reprodução parcelar de um texto inserido no desdobrável que acompanha o duplo CD de José Mesquita, Coimbra dos poetas/Coimbra das canções, trovas e baladas, s.e., 1999, pp. 6-10.
[1] Presidente, ao tempo, da Câmara Municipal, moderou grande parte da edição de 1983. Morreria anos decorridos (1992), em acidente de viação.
[2] Apenas da Serenata que coroou a 1.ª edição (Mai.1978).
[3] E realce-se também, para além das intervenções nos Seminários, a edição, justamente pela Comissão Municipal de Turismo, de opúsculos de Afonso de Sousa e de Francisco Faria.
[4] Na linha, aliás, de uma intervenção que já tivera num dos programas da série Cantos e Contos de Coimbra (RTP/2, Verão de 1982, coord. de Sansão Coelho).
[5] V.g um conhecimento mínimo da escala e da afinação da guitarra e da viola e o reconhecimento dos tons em que os temas são executados.
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