sábado, outubro 15, 2005

A Canção de Coimbra no Século XIX
(Era uma vez... ele há teorias e teorias)
VI. Nacionalismo e regionalismo, por António M. Nunes

O século XIX foi marcado pela construção da ideia de nação, nos planos político, ideológico e militar. Em termos de balização cronológica, os historiadores da música erudita europeia costumam apresentar o ano de 1810 como data marcante da transição do período Clássico para o período musical Romântico.
Se a cesura cronológica apontada serve bem a história da música erudita, a verdade é que nada significa em termos de música tradicional coimbrã, cuja tímida contaminação pelo ideário romântico não parece ser anterior à década de 1820.
Ao nível da produção musical, a afirmação do Romantismo assistiu ao “despertar musical das nações”, na feliz expressão de Kurt Pahlen[1]. A Polónia teve o seu Chopin, a Rússia o seu Tchaikovsky, a Noroega o seu Grieg, a Hungria o seu Lizt, a Itália o seu Verdi, a Alemanha o seu Wagner, com a música clássica lançada num verdadeiro processo de descoberta das sonoridades e melodias ditas folclóricas. Este processo de “descoberta” pautou-se pela incorporação de melodias “tradicionais” no seio da música erudita, tendo contaminado a sonata, o concerto, o sinfonismo germânico e a ópera italiana.
Podemos considerar figuras de proa deste percurso nacionalista os checoslovacos Smetana e Dvorák, o finlandês Sibelius e os espanhóis Albéniz e Granados.
As duas velhas potências coloniais ibéricas, Portugal e Espanha, menos referidas nas histórias da música ocidental quando comparadas com os grandes centros de produção da cultura musical erudita, constituíam reservatórios inexplorados, quer pela diversidade e riqueza dos seus folclores provinciais, quer pela larga recepção de danças e cantares vindos das suas “colónias”.
Desde o século XVII que os arquipélagos atlânticos e os portos da Península Ibérica tinham vindo a saudar a entrada de ritmos e danças afro-americanas como a Chacona, o Fandango, a Habanera, a Charamba, a Fofa, a Volta no Meio, o Lundum, a Calenda, etc.. Algumas destas danças fizeram época e furor nos Açores (Charamba, Fofa, Volta no Meio, Lundum), Espanha e Portugal (Fandango), ou simultaneamente no Brasil e em Portugal (Modinha, Lundum, Fado Batido), tendo passado a integrar sem grandes pruridos a “música tradicional” portuguesa.
Enquanto alguns dos espécimes musicais aqui referidos se quedam pela produção diminuta, outros tenderão a evoluir, doravante transformados em géneros musicais polarizadores da identidade musical de certas cidades e países. Enfileiram neste exemplo o Samba (Brasil), o Tango (Argentina)[2], largamente aplaudido em Portugal, a moda-dança do Fado Batido (Brasil, Portugal em geral).
Ao longo do período romântico, os compositores eruditos do norte e centro da Europa lançam-se à descoberta das sonoridades nacionais e exóticas. Eis o francês Bizet a estrear em 1875 Carmen, ópera de sugerência espanhola onde incrusta uma habanera. Mais ou menos pela mesma época, Chabrier faz as delícias do público com Espanha, enquanto Lalo compõe Sinfonia Espanhola (1873). O redescobrimento dos materiais exóticos passava tanto pela Espanha como pelo norte de África e Extremo Oriente. Camille Saint-Saens não deixou de escrever a cantata Nuit Persanne, o Caprice Arabe para piano, a Suite Algérienne, a fantasia África e uma Habanera para violino. Em Inglaterra, o compositor Elgar deixar-se-ia seduzir por Sevillana, Moorish Serenade e Spnanish Serenade.
Nacionalismo, exotismo e orientalismo campeiam ecleticamente nas partituras dos compositores europeus oitocentistas, muitas vezes reduzidos a incursões superficiais, a que se chegou a chamar depreciativamente “orientalismo de bazar”.
Enquanto os auditores europeus se deliciam nos teatros das grandes metrópoles musicais com ritmos exóticos, em Portugal assiste-se, nas cidades de Lisboa e Coimbra, a um processo quase anónimo polarizado em torno da prática e construção de géneros literário-musicais que, não obstante as penumbras que rodeiam as suas origens, passarão a ser vistos como paradigmas incontornáveis de identificação daquelas cidades.
Na síntese geral e reflexiva elaborada a propósito do Fado de Lisboa por Ruben de Carvalho em 1994 (As músicas do Fado, Porto, Campo das Letras, 1994), o autor salienta, enquanto dado relativamente consensual na comunidade sábia, a origem setecentista brasileira do fado-dança. E como canção coreográfica, particularmente nas modalidades de fado batido e de fado coreográfico, teria entrado nos bairros, tascas e prostíbulos de Lisboa na primeira quarentena de anos do século XIX, até se demudar paulatinamente em género cantado. Os primitivos fados coreográficos revelam pontos comuns com o tango-dança. Surgem ambos na viragem do século XVIII para o século XIX, imbricados a ritmos e coreografias afro-americanas. Os elementos que o Fado parece ter herdado do lundum encontram similitude nas ligações entre a milonga e o tango. Compassos binários, ritmos fortemente sincopados, vozes mordidas pelo peso da melancolia, tascas, bordéis, migrantes e emigrantes, grupos marginais e desenraizados, apontam para origens sócio-culturais estranhamente coincidentes.
A hipótese primiévica do fado-dança, registada por Ruben de Carvalho, traz o selo ratificador de José Ramos Tinhorão (Fado. Dança do Brasil, cantar de Lisboa. O fim de um mito, Lisboa, Caminho, 1994, págs. 1-52). Porém, em reflexão fundamentada, José Alberto Sardinha desconstrói esta hipótese, sugerindo que o Fado pode ter começado como canto, só mais tarde se tendo transformado em moda coreográfica[3]. E cinco anos volvidos, aquele ivestigador, especializado em música popular, volta a criticar o consensualismo instaurado em torno do mito fundador Brasil/Lundum/Fado Coreográfico/Lisboa/resto do país (Cf. José Alberto Sardinha, “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005, págs. 214-215).
O Fado de Lisboa breve se transformou no símbolo identificativo de certos grupos sociais da Capital (marinheiros e marujos, operários do pequeno comércio e serviços, prostitutas, nobreza miguelista). Em finais do século XIX tinha passado a identificar musical e miticamente a Capital do Império, tendo captado a simpatia crescente de jornalistas, militares, aristocratas, gente do toureio, actores e pessoal do teatro, adeptos da monarquia liberal e miguelista, operariado socialista e republicano, a pequena e média burguesia frequentadora dos salões e dos areais de Cascais.
Apreciado e praticado em Coimbra, tanto na modalidade de fado batido como na de fado cantado, o Fado ao estilo de Lisboa lograra trepar pela faixa costeira, espraiando-se nas tascas ribeirinhas portuenses e nos espaços de convívio balneares (Espinho, Granja, Leça da Palmeira).
O discurso ideológico que pretendeu ver no Fado de Lisboa um género literário e musical representativo da identidade nacional, embora em fase de lenta elaboração em finais do século XIX, terá de aguardar pelo século XX. A verdade é que, desde pelo menos finais da década de 1830 e alvores de 1840, aquilo a que se veio a chamar Fado de Lisboa, granjeou um espaço de incomensurável aceitação nos gostos, afectos e sentimentos de alguns grupos sociais lisboetas.
O processo de invenção e de reprodução do primitivo Fado de Lisboa decorreu quase anonimamente. Nada de grandes compositores, nada de maestros renomados. Um processo cultural de origens quase discretas e silenciosas, olhado com desconfiança pelas autoridades policiadoras da boa ordem social, tolerado pela classe culta e dirigente, namoricado pela saudosa nobreza miguelista.
Ernesto Vieira, musicólogo erudito que em 1890 deu à estampa um Dicionário Musical, (Dicionário Musical, Lisboa, Companhia Typographica Editora, 1890) atestou a imparável popularidade do Fado na cidade de Lisboa e em Coimbra. Na opinião daquele estudioso, não obstante o leque de subgéneros que haviam proliferado no interior do Fado, era ainda possível determinar com grande margem de segurança o fraseado paradigmático primitivo que lhe dera origem: uma frase moldada em oito compassos de ritmo binário, dividida em “dois membros iguais e simétricos e dois desenhos cada um”; o vazamento primacial em modos menores e o acompanhamento harpejado em semicolcheias, estruturado no esquema tónica e dominante com alterações de dois em dois compassos.
Enganava-se, porém, Ernesto Vieira ao reiterar na sua recensão que “O fado só é popular em Lisboa”, sendo “a canção mais popular de Lisboa e a mais predilecta dos estudantes de Coimbra”. Em bom rigor, o Fado, conquistara profundas simpatias e cultores em Coimbra, Porto, Açores, etc.. Penetrara mesmo em recônditas aldeolas, onde felizmente se preservou nas violas de arame, em formas singelas como o fado corrido utilizado nas desgarradas, em modas coreográficas bastante próximas do fado corrido em modo maior e compasso quaternário servidas por mandador, cantadores à desgarrada e marcações entre o “batido”, o “riscado” e o “marcado”, e em tunas rústicas e urbanas onde à falta de melhor até valsas e mazurcas foram indevidamente rotuladas de “fados”.
Um pouco na esteira de Ernesto Vieira, o jornalista Alberto Pimentel negou categoricamente, em 1904, a existência de fados na região de Santarém. Pimentel escorava-se numa carta de informes, fornecida pelo redactor de o Correio da Estremadura, João Arruda. João Arruda deu-se ao trabalho de consultar dois regentes de filarmónicas, tendo ambos declarado desconhecerem “fados locais”, mais informando que os únicos conhecidos eram importados de Lisboa (Alberto Pimentel, A triste canção do sul, 1904, pág. 280). Admitimos que os informadores de Alberto Pimentel conheceriam razoavelmente o panorâma cultural da cidade de Santarém, mas não as práticas musicais das aldeias e concelhos estremenhos. Torna-se hodiernamente indefensável que o Fadinho Ribatejano, tão presente em terras estremenhas, só tenha vingado depois de 1904. Para mais, a pergunta de Alberto Pimentel reportava-se apenas a fados cantados e não a fados coreográficos. Recorde-se que na década de 1890 o recolector e transcritor musical César das Neves editou um vastíssimo cancioneiro em três volumes, recheado de “fados” detectados em Penafiel, Porto, Évora, Braga, Coimbra, Avenca (Ovar), Figueira da Foz, Lisboa. Sem o querer admitir, por mero preconceito ideológico, o portuense Alberto Pimentel reconhece em 1904 a intensa prática do Fado na cidade do Porto oitocentista, aliás na esteira de Camilo Castelo Branco (outras confirmações em Maria da Conceição Meireles Pereira, “O Porto no Tempo de Garrett”, Porto, BPMP, 2000, pág. 38).
Em suma, uma coisa é os eruditos citadinos de finais de oitocentos, inícios de novecentos, apenas terem registado o fenómeno Fado em Lisboa e noutras poucas cidades, outra coisa é a efectiva radicação e prática do fenómeno nos meios provinciais e rústicos portugueses. Paralelamente ao Fado no Estilo de Lisboa, desenvolveu-se o Fado Menor entre as prostitutas e cegos ambulantes que calcorreavam o país de feira em feira (ex. Jorge e Juliana ou o Veneno da Moriana), o Fado Corrido próprio para despiques brejeiros e sobretudo o amado Fado Batido que fazia as delícias dos mandadores de conta, dos pares de baile e dos cantores de desafios. A guitarra era tocada onde efectivamente estava mais enraizada, pois em locais de menor devoção o Fado vinha servido pela Braguesa, pela Amarantina (estas duas na afinação dita “Fado da Mouraria”, pela Toeira, pela Viola da Terra, Bandolim, Rabeca e Acordeão.

Este ângulo de análise, de fundamental importância para se captar o grau de recepção e reprodução que o Fado conquistou nos mais variados espaços regionais portugueses escapou ao grupo, organizado na sequência do evento Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994 que então levou a cabo um importante trabalho de reflexão sobre as origens, evolução e imaginário do Fado de Lisboa[4].
Em 1987, o grupo musical Ronda dos Quatro Caminhos, baseado nas recolhas de José Alberto Sardinha, gravou um LP intitulado Fados Velhos (LP Contradança, 87-01), reconstituindo interessantes espécimes regionais. Refiram-se o Fadinho, detectado em Castro Daire, o Fado Velho (=Pezinho Novo), da Ilha de São Miguel, o Fado Batido repescado no Douro Litoral. Mas poderíamos indicar outros espécimes, recolhidos por grupos folclóricos, a exemplo do Fado Beirão (Viseu), o Fado Furado (Ilha de São Miguel), o Fado Batuque (Ilha de São Miguel), o Fadinho (freguesia de São João, Ilha do Pico).
Na Beira Litoral são conhecidos, através de recolhas efectuadas por grupos folclóricos os fados riscados e fados mandados, nomenclaturas populares que variam em função do tipo de coreografias que vão desde a roda singela ao cruzamento ao centro. Os fados coreográficos da Beira Litoral, ou fados beirões, foram bailados e cantados entre a Figueira da Foz, Soure, Penacova, Cantanhede, Montemor-o-Velho, Coimbra e Oliveira do Hospital.
Há notícias deles em romarias, nas Fogueiras de São João e nas tabernas coimbrãs. Obedecem, na sua maioria a uma estrutura musical padronizada, sendo elementos comuns o compasso quaternário, o modo maior, o canto à desgarrada, e formas de acompanhamento singelas. A relativa pobreza melódica dos fados coreográficos beirões é, no entanto, superada pelo virtuosismo das tocatas, onde detectamos violões, bandolins, flauta, tambor, harmónio, viola toeira e guitarra, pela criatividade assinalada nas vozes dos mandadores e pela maior ou menor capacidade vocal dos cantadores e das cantadeiras.
Não existem elementos seguros quanto aos polos germinadores destes fados beirões, embora não seja dislate destacar Coimbra e a Figueira da Foz. Não há qualquer argumento válido que permita continuar a afirmar que germinaram única e exclusivamente em Lisboa e daí foram difundidos para a Beira Litoral. Da audição atenta destes espécimes se pode inferir que os fados riscados e mandados “redescobertos” na Região de Coimbra obedecem a uma estrutura ritmica comum, constituindo uma espécie de variação uns dos outros, cujas potencialidades e limites se esgotam em cada um dos espécimes territorializados em função dos peculiarismos da tocata, da coreografia, do virtuosismo dos cantadores.
Explicitando, o Fado de Pereira do Campo (Montemor), o Fado de Maiorca (Figueira da Foz), o Fado de Paleão (Soure), o Fado de Zagalho (Penacova), o Fado dos Palheiros (Ceira, Coimbra), os três fados localizados em Vila Nova de Cernache (Coimbra), e o Fado de São Paio de Gramaços (Oliveira do Hospital), sem dúvida tributários do fado corrido, de elementos do lundum, das desgarradas populares e dos ritmos da chula beirã, não estão na origem do chamado “Fado de Coimbra” nem parecem transpirar a tão invocada transição do Lundum para o Fado.
Aliás, as poucas árias não coreográficas de Coimbra, tributárias do fado corrido, cifram-se em escassos exemplares. São elas Às Estrelas, fado corrido de autor desconhecido, cuja 1ª parte é de finais da década de 1840, que fazia parte do repertório cantado de Augusto Hilário; o Fado Corrido de Coimbra, do primeiro quartel do século XX, gravado pela primeira vez em 1927 pelo cantor-guitarrista Lucas Junot; os Fado Corrido Nº 1 e Fado Corrido Nº 2, ambos interpretados por Manassés de Lacerda nos alvores do século XX, e ainda os corridos detectados no amador local Francisco Caetano (“Fado Corrido” e “Fado Corrido em Ré Menor”). Qualquer um dos exemplares citados configura uma melodia estática, na medida em que dos fados corridos não germinaram os fados-serenatas de Coimbra. O mesmo se poderá afirmar quanto a outro antiquíssimo “fado”, recolhido em Coimbra no ano de 1857, respectivamente o Fado da Figueira da Foz (conhecido desde a década de 1840).
Outra fonte sonora, de grande utilidade para o estudo da disseminação regional do Fado, encontra-se nas edições discográficas orientadas por José Alberto Sardinha em 1982 (Lisboa, Contradança), e em 1997 (Porto, Jornal de Notícias). De acordo com a recolha citada, destaquemos: Fado, recolhido em Castro Daire, no ano de 1987, com acompanhamento de violinos, banjolim e violão; Fado Alto, gravado na Sertã, em 1989, com acompanhamento de harmónio; Fado Baixo, gravado na Sertã, em 1989, com acompanhamento de harmónio.
Novo e importante contributo para o conhecimento da reprodução e aceitação regional do Fado foi dado em 2000 com o projecto discográfico Fado do Porto recuperado pelo Rancho Folclórico do Porto[5]. Presente nas tabernas da ribeira portuense pelo menos desde a década de 1840, o fado espraiou-se pela região nortenha através de espécimes como Fado do Marinheiro, Tenho Vida Amargurada (Fado da Severa), Fado das Salas, Fado Visconti, Fado Celta, Fado Corrido, Fado Batido, Fado Mousão, Fado das Ruas, Fado de Leixões, Fado do Leça, Fado de Matosinhos) e até em coreográficos detectados no folclore do Concelho de Marco de Canavezes e nas “fadadas” das tunas activas nas aldeias da Serra do Marão (utilização de fados em ré menor para fazer serenatas rurais. Cf. José Alberto Sardinha, “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005, pág. 182).
Por seu turno, o Grupo Folclórico de Coimbra procedeu em 1999 à reconstituição de alguns “fados” que tendo feito voga na Coimbra do século XIX se achavam completamente esquecidos: Fado de Coimbra (canção), Fadinho da Bodas (descante com a mesma melodia do Fado Campestre), o Marujo[6], Jorge e Juliana, num trabalho que caso tivesse outro fôlego traria também ao de cima o fado para ilustração do operariado socialista e republicano local, tendo em conta o longo cortejo de décimas que o poeta-operário Adelino Veiga fez na década de 1880 para serem cantadas com as melodias em voga no país (Fado do Conde da Anadia, Fado do Leça, Fado Corrido, etc.).
Relativamente ao Fadinho do Ribatejo, o folclorista Bertino Coelho Martins segue e teoria interpretativo-genética avançada por Porfírio Rebelo Bonito, segundo a qual o fado é de origem portuguesa e derivado da chula[7]. Para Bertino Martins, na abordagem da génese do fado reveste crucial importância introduzir um novo elemento interpretativo: os espécimes designados fados, detectados na música popular, não são necessariamente fados, embora possam apresentar uma estrutura melo-rítmica fadográfica mesclada de motivos tomados de empréstimo às modas populares tipo chulas e descantes[8]. Bertino Martins publicou em 1997 trinta solfas de fadinhos ribatejanos, na sua maioria coreográficos, presentes nos repertórios de grupos folclóricos, posicionados entre Benfica do Ribatejo, Bairro de Santarém, Almeirim, Freixianda, Torres Novas.
Entre as décadas de 1970-1990, José Alberto Sardinha detectou fados coreográficos estremenhos nos concelhos de Peniche, Mafra, Torres Vedras, Lourinhã, Sintra, Cadaval, Caldas da Rainha e Óbidos[9].
Os argumentos propostos por Bertino Martins a propósito do Fadinho Ribatejano são aplicáveis à leitura do Fado Beirão, manifestação musical-coreográfica da Beira Litoral que na opinião do folclorista Nelson Correia Borges não pode ser lida apenas em função de uma ligação directa e unilateral ao Fado de Lisboa. No tocante aos fados-coreográficos detectados na Ilha de São Miguel a partir do século XIX, o folclorista Tenente Francisco José Dias furta-se a avançar qualquer motivação fundadora[10], embora refute a possível germinação prostibular lisboeta.
Uma das mais ancestrais canções populares divulgadas nos Açores com o título de “fado”, foi justamente o Fado do Marujo (Triste vida a de um marujo), cuja letra Teófilo Braga recolheu e publicou na década de 1860, ressalvando as similitudes com o espécime cantado em Coimbra. Fado do Marujo deve ter entrado nos Açores pelo século XVIII, sendo contemporâneo do Rema, moda de marear com variantes em quase todas as ilhas. A variante das ilhas do Pico e Faial cantava-se em compasso ternário, enquanto a da Ilha das Flores estava vazada em compasso de 6/8[11]. Invoque-se uma antiga moda bailada na Ilha de São Miguel, cuja coreografia se perdeu, vinda do Brasil setecentista, a Fofa. Não sendo exactamente um fado, a Fofa também não deixa de lembrar vagamente um fado, não obstante o seu compasso 4/4 e a parte harmónica de resolução excepcional. Mas já são “fados” O Pezinho Novo, o Balho Furado (Fado Furado) e o Balho da Povoação/Fado da Povoação[12].
E a propósito da Freguesia de São João, do Concelho das Lajes do Pico, anotemos para finais do século XIX/alvores do século XX, a apaixonada divulgação do “Fado do Thysico” (A luz da vida que ilumina o nada), monótona cantoria em menor, onde um rapaz letrado que viajava entre os Açores e Demerara West Índias na barca “Falisberta”, por se crer erradamente tuberculoso, cantou a sombra da morte. Provém daquela aldeia açoriana um caderno de letras datado de 1919-1922, destinadas a serões invernais e actos de variedades de grupos teatrais amadores, de que foram ensaiadores o mestre capela David Leal Ferreira e Maria Cristina Alvernaz, onde detectamos letras de fados tiradas directamente de brochuras de quiosque, enquanto outros são de feitura local. Citem-se Fado da Paixão (?), A Guitarra Amorosa (?), Fado Liró (Lisboa, Nicolino Milano), Canção do Porto (Porto, recolha César das Neves), Canção à Lua (Lisboa, Rafael Ferreira Roquete), Despedida do Soldado (local), Amor de Mãe (?), Fado de Amores (local), Saudades de Aldeia (Coimbra?, recolha César das Neves) e Fado do Tísico[13].
Em recolhas atinentes ao período 1915-1920, mas apenas dadas à estampa em 1960, Júlio Andrade refere idênticos fenómenos de circulação, importação continental e de produção local para a cidade da Horta e aldeias limítrofes no tocante a teatrinhos amadores, ranchos natalícios e tunas rurais (Cf. “Bailhos, rodas e cantorias”, Horta, 1960, pág. 313). Júlio Andrade cita o caso de Fado dos Cegos, escrito em Lisboa no ano de 1910 pelo aplaudido maestro Filipe Duarte, que na Ilha do Faial foi cantado pelas mães como embalo. Por conseguinte, a teoria monológica e monofocal do Fado surgido em Lisboa e divulgado em todo o país a partir unicamente de Lisboa, carece de ampla revisão. Os fenómenos de produção regional simultânea que apontámos para o lapso temporal balizado entre finais do século XIX/1º quartel do século XX, não se terão verificado afinal desde os alvores da emergência do Fado em Portuga Continental e Insularl[14]?
Trata-se de um curioso fenómeno de produção plurifocal, de permuta e de transformação, pois enquanto os padrões mais ancestrais do Fado tendem a evoluir em Lisboa para o canto masculino e feminino nas modalidades de Fado Corrido, Fado Mouraria e Fado Menor, em muitas terras provinciais preservaram-se géneros aparentemente mais arcaicos como o fado batido e o fado riscado.

Após o triunfo liberal de 1834, polarizado em torno das hostes de D. Pedro IV, os estudantes da Universidade de Coimbra começam a elaborar lentamente um conjunto de novas instituições políticas, culturais e recreativas. Aquilo que muitos memorialistas apodaram de “tradições medievais”, “muito antigas”, são na verdade fruto de uma autêntica invenção, e nalguns casos reinvenção, ocorrida ao longo do século XIX.
As grandes irrupções da cultura “tradicional” académica, ocorridas ao longo da centúria de oitocentos, feitas como contra-cultura identitária, tiveram uma base essencialmente oral. Esta visão do mundo, esta percepção do tempo e do espaço, foi-se alicerçando em contraposição às investidas centralizadoras e niveladoras do poder emanado de Lisboa, da cultura erudita da própria Universidade, e de algumas vivências masculinas da Sociedade Futrica. O seu pendor regionalista, o seu espírito de insubmissão à massificação, a sua fuga sistemática aos postulados da civilização urbana, condenaram as instituições culturais e políticas da Sociedade Tradicional Académica Coimbrã a uma espécie de elefante branco posicionado entre o exótico, o típico e o castiço, sobrevivência marginal presente em livros de memórias, situada extra-órbita das eruditas histórias de Portugal.
Não sendo uma sociedade sem história, ou situada fora do tempo da história, a verdade é que as instituições, cerimónias e ritos académicos pouco ou nada interessaram os historiadores, de tal arte que lendas e mitos acabaram por ser erroneamente erigidos à categoria de objecto histórico.
Alguns dos ritos de passagem e festividades cíclicas adoptadas pelos estudantes universitários no século XIX estavam bastante mais próximos da cultura popular portuguesa provincial do que realmente se pensa. Por exemplo, as Latadas celebrativas do fim de ano escolar revelam manifestas similitudes com o “tocar latas”, “cornetadas”, “cencerradas”, “chocalhadas” assinaladas pelos etnógrafos em diversos pontos do país. Em Portugal tardou muito a separação entre “cultura popular” e cultura das elites”, para invocarmos a obra de Robert Muchembled (“Culture populaire et culture dês élites dans la France Moderne. XVe-XVIIIe siècle”, Paris, Flammarion, 1978). Em muitos aspectos, a cultura tradicional académica coimbrã, com os seus ritos e cerimónias festivas cíclicas, prolongou na cidade instituições da vida rural[15].
Ao promover a emancipação e ascensão social dos caloiros no fim do ano escolar, primeiro as Latadas, na sua modalidade de festa arcaica, e mais tarde a Queima das Fitas, na sua vertente de festa moderna, aproximavam-se de certos ritos de passagem experimentados em tribos africanas, ou mesmo da Festa dos Rapazes, a última observada pelo Abade do Baçal em diversas aldeias situadas no Distrito de Bragança. Por outro lado, a dimensão sacrificial e satírica do ritual da Queima das Fitas pode, em certa medida, constituir uma réplica à antiquíssima tradição conimbricense da Queima do Judas.
A Queima das Fitas dos quartanistas de Direito, registada timidamente na década de 1890, parece filiar-se nas festividades cíclicas populares balizadas entre o fim da penitência quaresmal e a renovação do ano com a chegada da Primavera/Páscoa[16]. Em meu entender, Queima das Fitas, Enterro do João (Terras da Maia), Queima do Galheiro (Vila do Conde), Queima do Judas (Coimbra, Minho), Serração da Velha (Leiria), Enterro do Bacalhau (Penela), Enterro do Ano (Universidade de Aveiro), Enterro da Bicha (Liceu de Ponta Delgada), Enterro da Gata (Liceu de Braga; Universidade do Minho), pertencem ao mesmo ciclo festivo.
Passemos em revista uns quantos exemplos significativos:

-a grande festa celebrativa do fim do ano escolar, conhecida por Queima das Fitas, começa a dar os primeiros passos na década de 1890. Anteriormente, o término do ano escolar era festejado com cortejos alegórico-burlescos, as Soiças que, na segunda metade do século XIX se designavam estritamente por Latadas, ou mais genericamente por Festa do Ponto/Festa das Latas.
-o trajo académico masculino, de figurino e talho clerical, sofre inúmeras e irreversíveis transformações laicizadoras, até à sua cristalização definitiva em capa singela, casaca negro-burgesa, colete e calça comprida, fenómeno que não se acha consolidado nem uniformizado antes da Revolução de 1910.
-após efémera experiência orfeónica, encetada por José Cristiano de Medeiros em 1851, só em 1880 seria fundado o Orpheon Académico, instituição que levará décadas a enveredar por uma prática musical dotada de continuidade.
-só em 1888 foi oficialmente fundada a Tuna Académica (TAUC), não obstante a longa ascendência de tunas espontâneas;
-a fundação oficial da Associação Académica de Coimbra (AAC), enquanto associação de estudantes, data de 1887, fruto de uma longa caminhada onde a Academia Dramática e o Clube Académico vieram desaguar.
-a Festa de Despedida dos Quintanistas, vulgo Récita, sem dúvida a mais importante manifestação festiva académica do século XIX coimbrão, não arranca antes 1869, sendo durante muito tempo uma organização dos estudantes de Direito. Por seu turno, a mais antiga canção de despedida de quintanistas até hoje conhecida reporta-se ao ano lectivo de 1876/1877. Aliás, entre 1876/1877 e 1891/1892, as canções de despedida dos quintanistas de Direito são “Hinos do Curso” e não “Baladas da Despedida”, nem tão pouco “Fados da Despedida” os quais não aparecem antes de 1901 (engenhosa invenção que permitiu cantar despedidas em palco com acompanhamento de guitarra, em vez da tradicional orquestra).

Permanecem, é certo, ancestrais rituais praxísticos, de cariz iniciático e punitivo, traduzidos na estratificação social, nos temíveis canelões à Porta Férrea, nas policiadoras trupes nocturnas, nos graus (julgamentos de caloiros), com as boladas ou palmatoadas, os cortes de cabelo, as bigodaças pintadas, os discursos estrambóticos, a tourada, as mobilizações para serviço doméstico. Rituais criticados pela sua aparente inadequação aos lustros da civilização, nem o literato Antero de Quental deixou de assestar a moca e a palmatória sobre os costados dos alunos do Liceu, proeza que lhe valeu prisão académica.
Não obstante as críticas de que foi alvo, a violência simbólica e ritualizada, dado o seu enquadramento praxístico, não atingia o grau de crispação vivênciado por certas formas de delinquência estudantil, detectadas na segunda metade do século XIX: insultos e esperas nocturnas aos professores, tiros, rixas nas tabernas e prostíbulos, bofetões, pedradas, uma ou outra morte, estudantes conduzidos à Cadeia Académica, estudantes expulsos da Universidade[17].
Os naturais da cidade (futricas) ripostavam como podiam, os reitores ordenavam à Polícia Académica o cumprimento escrupuloso do respectivo Regulamento, O Conimbricense de Joaquim Martins de Carvalho pugnava pelo civismo dos comportamentos e atitudes, a Academia congregava-se em incendiárias Assembleias Magnas para exigir defesa da honra e não ia sem azucrinar a paciência do velho maçon e liberal Martins de Carvalho, alcunhando-o de Lord Latas.
Esta Academia, arruaceira, folgazã e briosa confrontava-se quotidianamente com a violência, a rixa e os comportamentos excessivos. Muitas destas práticas, condenadas dentro e fora dos meios académicos, tendiam a persistir, porquanto consideradas imagem de marca do viver boémio[18].
O século XIX universitário foi por excelência o tempo e o espaço do sincretismo cultural. Registam-se a sobrevivência de práticas e de comportamentos herdados do Antigo Regime. Assiste-se à invenção de instituições que a breve trecho serão consideradas tradições e, nessa qualidade, passarão a ser vistas e lidas como matrizes basilares da identidade sócio-cultural estudantil.
Ilustra bem a última afirmação o prolongado processo de construção semântica e musical sofrido pela CC ao longo da segunda metade do século XIX, pois que, à semelhança do actual trajo académico, festa da Queima das Fitas, Tuna, Orfeon, Repúblicas, Sociedade Filantrópico-Académica, Associação Académica, Récitas dos Quintanistas, Baladas de Despedida, não emerge antes da Revolução de 1820 enquanto movimento artístico autónomo.
Ao enunciar as “instituições fundamentais” que permitem caracterizar a Academia de Coimbra como Sociedade Tradicional até à Crise Académica de 1969, António Rodrigues Lopes refere[19]:

-a Praxe (rituais punitivo-iniciáticos, hierarquias sociais, direito consuetudinário);
-a Associação Académica;
-o Conselho de Veteranos;
-as Repúblicas e o Conselho de Repúblicas;
-os rituais de iniciação dos caloiros;
-a fraternidade/solidariedade;
-a formatura;
-as reuniões de curso;
-o trajo académico;
-as latadas;
-a Queima das Fitas;
-o Foro Musical Coimbrão.

Relativamente às instituições culturais e políticas apresentadas por António Rodrigues Lopes como argumento de autoridade para uma caracterização diferenciada do imaginário académico coimbrão, pode dizer-se que tais instituições só adquiriram a sua consistência formal e ideológica após a Revolução Republicana de 1910 e durante o longo período do Estado Novo. Anteriores à Revolução de 1820 são apenas o Conselho de Veteranos, os rituais de iniciação de caloiros, alguns aspectos punitivos da praxe, as latadas na sua vertente de soiças, bem como o trajo académico, pese embora com um figurino totalmente diferente do modelo que se consagrou no século XX. As restantes instituições foram emergindo após o advento do liberalismo oitocentista, e nalguns casos podem mesmo datar-se com grande margem de segurança.
Assim:
-a primeira casa comunitária de estudantes que se intitulou República foi justamente a República do Carmo, instalada em 1838 no extinto Colégio do Carmo à Rua da Sofia. Ou seja, quatro anos após a nacionalização dos bens da Igreja e da extinção das ordens religiosas, temos uma República constituída por estudantes delinquentes. Não será abusivo pretender que as primeiras casas comunitárias de estudantes, governadas em regime de autogestão, surgiram num período de crise de alojamento, de vivas ao liberalismo, do culto do secretismo e das sociedades secretas, de consolidação do associativismo, de adesão aos ideais revolucionários esquerdistas bem presentes no movimento da Revolução de Setembro.
-o gosto pela prática do teatro de inspiração política, histórica e patriótica-cívica, culmina na fundação da Academia Dramática, corria o ano de 1837. Reorganizada em 1838, a Nova Academia Dramática passou a dispor de um grupo de teatro, dotado de sala de espectáculos desde 24 de Junho de 1839.
-a militância política, à qual tradicionalmente parecia bastar o ancestral parlamento académico (a ancestral Assembleia Magna), instituição não periódica designada por Assembleia Magna, sofre alterações de vulto com o aparecimento do Clube Académico no ano de 1861. Com uma existência crispada, o Clube Académico deixaria o seu nome ligado a diversas greves, tumultuosas assembleias magnas, e campanhas eleitorais onde se degladiavam listas afectas ao Partido Regenerador e ao Partido Progressista. A Academia Dramática e o Clube Académico não só partilham as mesmas instalações como se fundem em 18 de Março de 1866, naquilo a que poderemos chamar uma verdadeira associação de estudantes.
-o filantropismo e os ideais da solidariedade formal também encetam importantes passos em 23 de Dezembro de 1849, data em que o estudante funchalense Feliciano Correia toma a iniciativa de instituir a Sociedade Filantrópico-Académica.
-o Orpheon Académico seria criado em 29 de Outubro de 1880 por João Marcelino Arroyo. O grupo viverá uma existência bastante irregular nas décadas seguintes. Desactivado em 1882, volta a surgir esporadicamente 1899-1900, e 1905, para retomar uma actividade mais regular a partir de 23 de Janeiro de 1909.
-após duas tentativas goradas, presentes na constituição de uma Assembleia Académica Filarmónica (1844-1845) e de uma Sociedade Dramático-Musical, a Tuna Académica ensaia os primeiros passos em Março de 1888, então com a designação de Estudantina Académica.
-de acordo com as investigações levadas a cabo por Maria Eduarda Cruzeiro, o termo Praxe não é anterior à segunda metade do século XIX, embora se reporte a rituais punitivos mais antigos[20]., pois que anteriormente se usava falar em investidas, boa feição, caçoadas e troças.
-a “tradição” das cartas fotográficas de curso não aparece antes de finais da década de 1860, em ligação estreita com o desejo de perpetuar uma memória visual e fisionómica intimamente ligada à implantação dos primeiros estúdios fotográficos na cidade[21].
Desde finais da década de 1970 que diversos autores começaram a insistir no facto incontroverso de que um lote significativo de costumes estudantis, anteriormente considerado de grande antiguidade, tinha emergido após a Revolução de 1820. Encontram-se nestas circunstâncias Maria Eduarda Cruzeiro[22], Nelson Correia Borges[23], João Lourenço Roque[24], Manuel Louzã Henriques[25] e Alberto Sousa Lamy[26].
Filha do Romantismo, colada às imagens da noite e aos cantados lugares da memória citadina, a CC apropria-se do mediévico ritual das serenatas e em cantoria de serenata se transforma, embora a serenata nunca tenha logrado esgotar a riqueza e diversidade do novo fenómeno musical.
As origens desta tradição inventada no século XIX são obscuras. O esforço de pesquisa tem de contentar-se com hipóteses, comparações, fragmentos dispersos. Saliente-se porém: nenhuma novidade quanto à febre gerada em torno da prática da serenata, ritual alicerçado no tocar e cantar durante a noite, documentado pelo menos desde o século XV em certos países europeus[27]. Nenhuma novidade quanto à composição da tocata, sendo incontroverso o recurso aos instrumentos em voga na cidade, primacialmente a viola toeira, a flauta travessa, o bandolim, a rabeca, guitarra inglesa e algumas vezes a cítara-bandurra popular. As novidades e surpresas acham-se presentes em aspectos mais subtis como os estilos vocais e os reportórios.
Acontece que a reconstituição possível desses reportórios não permite concluir de forma categórica que as árias cantadas, ou tão só tocadas instrumentalmente, eram Fado de Lisboa, ou adaptações locais elaboradas a partir do Fado de Lisboa. Permite-nos, outrossim, afirmar que o Fado no estilo de Lisboa marcou forte e continuada presença, que diversas modas do Fado de Lisboa foram tocadas e cantadas em Coimbra e que, não obstante eventuais modificações, nunca perderam a sua feição fadística. Fado de Lisboa, cantado e interpretado instrumentalmente nas Fogueiras de São João, tabernas, convívios estudantis, repúblicas, bordéis, ruas da Baixa onde se lamuriavam ceguinhos e mendigos, terreiros de feiras, palcos de teatrinhos ambulantes, mas não em serenatas. Os espécimes oriundos do Fado de Lisboa que figuraram em serenatas coimbrãs sofreram aculturação local, a exemplo do Fado da Saudade (Hermínio dos Anjos), e do Fado Sepúlveda.
O discurso monogenista e unicausal que pretendeu ver no chamado “Fado de Coimbra” um sucedâneo directo do Fado de Lisboa, afigura-se excessivamente redutor, na medida em que ignora e desvaloriza um fenómeno genético onde pesaram, e não pouco, outros géneros e manifestações musicais. Os diversos fados ao estilo de Lisboa, cantados ao longo de décadas na urbe mondeguina, não só estão perfeitamente identificados, como nunca perderam a sua marca de origem, mesmo quando verificada uma ou outra tentativa de adaptação, como sucedeu com o Fado da Severa, Variações sobre o Fado em Dó, Fado Corrido, Fado do Conde de Anadia, Fado dos Cegos, Fado Liró, Fado Espanhol, Fado dos Beijos, etc..
Outros géneros musicais ocuparam o seu lugar na moldagem dos gostos dos cantores e instrumentistas coimbrãos. A marcha, a modinha, a contradança, a sonata, a jiga, o rondó, o lundum e o minueto, já eram cultivados na segunda metade do século XVIII, e continuaram a sê-lo pelo menos até meados de oitocentos, tendo a marcha chegado até ao século XX na qualidade de peça instrumental.
As árias e arietas, directamente inspiradas na obra de compositores clássicos italianos e franceses fizeram época nas vozes e instrumentos dos serenateiros gratos a Domenico Cimarosa, Rossini, Belinni, Meyerbeer (a sua “Dinorah” ou “Le Pardon de Ploermel” foi coroa de glória de José Dória na viola toeira) e Verdi (especialmente a Traviata). O tango, oriundo da América Latina, conheceu os seus cultores entre 1850 e a década de 1940 (sendo um dos últimos o guitarrista José Maria Amaral).
A valsa, a mazurca (Brunet e Chopin), o nocturno, a polca (Mazzi, Michielis, Lima de Macedo), entrados em Portugal no século XIX, granjearam enorme popularidade nos meios coimbrãos. A valsa é um género musical que percorre a CC a partir de meados do século XIX e atinge o último quartel do século XX. Entre os mais notáveis executantes de valsas do século XIX contam-se José Dória, Gonçalo Paredes e Manuel Ribeiro Alegre (transladadas de Waldteufel, António Viana, Simões Barbas, Depret, Saldanha Júnior).
A pavana (Brisson) também conquistou adeptos, tendo continuado a fazer-se ouvir no século XX (Alfonso Correia Leite) nas guitarras de António Portugal e Carlos Paredes.
A contradança, de origem inglesa, entrada em Portugal no século XVIII, terá sido inicialmente uma dança de salão. Assinalada na década de 1780 por Francisco da Silveira Malhão, fez época nas décadas de 1870 e 1880, particularmente entre os tocadores populares activos nas Fogueiras de São João do Largo do Romal.
A música espanhola, muito presente em Coimbra, graças às trupes teatrais que vinham representar entremezes, deixa rasto palpável nos hinos (Hino de Riego, Marcha de Cadiz), paso-dobles (Espinoza, Simões Barbas), e jotas instrumentais (Simões Barbas).
A música popular da Beira Litoral e a divulgação de canções tradicionais pelo Orfeon de João Arroyo cativararam os guitarristas dos anos 1880-1890, no género rapsódia (o guitarrista Ricardo Borges de Sousa gravou uma “Ronda pelas Fogueiras”, infelizmente ainda não recuperada).
A opereta ligeira marcou forte e duradouramente os cenários musicais coimbrãos do século XIX, tanto a nível da Sociedade Académica como ao nível da Sociedade Futrica, mercê da sua presença nos teatros e récitas, tendo deixado rasto nos Hinos de Despedida, dondo promanam as Baladas de Despedida dos Quintanistas.

Em finais de oitocentos tinha um sentido muito peculiar debater as ideias de beleza e as eventuais funções sociais da arte. Temia-se que a poesia pudesse perecer por via da desnaturalização. Vico, recebido por intermédio de Jules Michelet, cometera à poesia um substracto popular. A recolha do romanceiro e cancioneiro popular, iniciada com Almeida Garrett em 1825, conhecera entusiastas em João António Ribas, Teófilo Braga, Adelino das Neves e Melo, César das Neves, Pedro Fernandes Tomás.
August Comte e Herbert Spencer concediam papel destacado às “artes manuais” e à expressão popular, ideias aproveitadas por Ramalho Ortigão na obra O culto da arte (1896). Com os republicanos positivistas de oitocentos, afirma-se a teorização da “raça”, e a demanda dos “remédios” antidecadentistas de lastro etnográfico. Sendo a sociedade um organismo biológico, a poesia e música arriscavam um projecto reeducador de matriz popular provincial.
Em 1880, o Orfeon Académico dirigido por João Arroyo lançava um projecto popular e nacionalista pioneiro, muito aplaudido pelas elites portuguesas. Faziam parte do repertório do coral Camões e Inês de Castro (ambas de Arroyo), e modas tradicionais do Minho, Douro Litoral, Alentejo e Beira Litoral (Oh Ana só tu és Ana, Toma limão verde, Canção da Lousã, etc..).
A música, o canto coral, deveriam revelar-se instrumentos de redescoberta da identidade portuguesa. Em Coimbra, onde de há muito os serenateiros vinham a cantar redondilhas maiores, João de Deus, António Fogaça, António Nobre, Teixeira de Pascoais, Afonso Lopes Vieira e muitos outros produziam quadras para as serenatas e Fogueiras de São João.
De tal arte iam ao encontro do imaginário popular, que muitas se vulgarizaram por todo o país. Evocando em 1913 a sua Coimbra de “há vinte anos”, onde estudara e poetara com António Nobre, Alberto de Oliveira dizia:

A geração de que fiz parte restabeleceu na nossa literatura o culto das tradições nacionaes que a ephemera corrente naturalista pozera de parte. (...) Coimbra voltou a ser a terra de encantos onde as raparigas teem olhos cor de choupo e os choupos são pallidos e esguios como ellas. Percebeu-se de novo que cada rua da cidade é uma página de historia e de arte e cada monte ou valle dos seus arredores um manancial perenne de inspiração e emoção (Alberto d’Oliveira, Pombos Correios, Coimbra, França Amado, 1913, págs. 196-198).

Em 1892, o musicólogo Manuel Ramos apresentou em Madrid uma palestra onde defendia a necessidade de criação de uma nova música nacional baseada no folclore português. A memória assinada por Manuel Ramos constitui o prefácio do terceiro volume do Cancioneiro de Músicas Populares (César das Neves), publicado no Porto em 1898. O ensino das canções regionais nas escolas primárias era um imperativo. Manuel Ramos elogiava a traços largos a acção pedagógico-nacionalista lentamente erigida por Domingos Ciríaco Cardoso (opereta portuguesa), João Marcelino Arroyo (canções de temática nacional, recolhas populares), Sá Noronha (O Arco de Santana), Marques Pinto (três rapsódias sobre motivos populares), Francisco Arroyo (rapsódia sinfónica), José Viana da Mota (1ª Rapsódia Portuguesa, Cenas Portuguesas, 5 canções portuguesas, A Pátria, Vito), Alexandre Rey Colaço (Canção do Mondego), Victor Hussala, Alfredo Keil (A Portuguesa, Serrana).
Na década de 1890, Coimbra e a música tradicional mondeguina atraiam vultos do mundo da música, entre eles José Viana da Mota (um habitué) e o pianista Alexandre Rey Colaço. O último fez publicar em Janeiro de 1904 uma rapsódia de fados para piano, com inclusão do Fado Serenata do Hilário a par de outros no estilo Coimbra.
A histeria nacionalista gerada pelo Ultimato Britânico de 1891 ajudou a glorificar Augusto Hilário, poeta mediano alinhado pelo cancioneiro popular. O guitarrista Antero da Veiga, amigo de Hilário e conviva de Viana da Mota e de Rey Colaço nutriu, desde cedo, profundo interesse pela música regional portuguesa. Entre 1894 e 1910, Antero da Veiga procedera a “recolhas” no Minho (Bailados do Minho), Douro Litoral (Chula do Douro), Águeda (Miscelânea de cantos), Coimbra (Miscelânea e Bailes Regionais), e Beira Baixa (Erva Cidreira do Campo). Em poema-dedicatória ao guitarrista, datado de 1910, o poeta Afonso Duarte apodava-o de “verbo incarnado da canção popular” e agente regenerador da decadência nacional. Antero da Veiga estaria para a utilização urbana do folcore como Raul Lino para a invenção esteriotipada da “casa portuguesa”.
Na óptica das elites, nem todas as expressões musicais serviriam proficuamente de remédio antidecadentista. E definitivamente não serviria os propósitos regeneradores nacionais o Fado de Lisboa – “triste canção do sul” lhe chamou xenofobamente o jornalista portuense e romancista Alberto Pimentel – classificado como produto negativo, parceiro dos “factores mórbidos da decadência nacional”, lado a lado com a prostituição, a delinquência, o alcoolismo, as doenças venéreas, a epilepsia.

No entanto, Antero da Veiga não se distingue dos guitarristas Reynaldo Varela, Tomás Ribeiro ou Júlio Silva, pelo tipo de cordofone que utiliza, mas como “pintor”-guitarrista naturalista que exibe com enorme sucesso rapsódias elaboradas com base em “recolhas” de danças populares da Beira Baixa, Beira Litoral, Minho e Douro Litoral. E nem sequer importava aferir na época se algumas dessas “miscelâneas” eram um embuste, como sucedia com “Bailes Regionais de Coimbra”, onde Rosa Tirana (trecho nº 1) era uma moda oriunda do Porto e o Vira (trecho nº 2) era o Vira do Minho e não o Vira de Coimbra. Enquanto Antero da Veiga se deleitava numa autêntica nostalgia ruralista e provincial, solando a parte melódica de peças instrumentais tidas por vernáculas num cordofone a que por ódio ao estrangeiro se começa a chamar “guitarra portuguesa”, o guitarrista académico Alberto de Morais limitava-se a tratar a questão epidermicamente pela enunciação de títulos: Fado do Algarve, Fado de Monchique, Fado de Linda-a-Velha. Nem o divino Manuel Mansilha (ele que “fazia chorar as pedras”) escapou à sedução do “Fado de Coimbra em Lá Maior”, uma guitarrada que nem sequer tinha estrutura fadográfica, tocada numa Guitarra do Porto em afinação natural.
Quanto ao resto, as composições de Alberto de Morais não ilustram os títulos propostos, nem ao nível poético (as quadras são de assunto desconexo) nem ao nível das melodias (estas não são “folclóricas”). Será este o caminho trilhado futuramente por Manassés de Lacerda, com as suas famosas brochuras de “Fados e Canções Portuguezas” (onde apenas os títulos das peças aludem a Coimbra, Guimarães, Porto, Estoril, Montemor, etc., mas não as melodias nem os poemas), por Paulo de Sá (Fado de Aveiro), e sobretudo por António Menano, o último com expressas ligações às produções de Afonso Lopes Vieira, José Marques da Cruz, Ruy Coelho e António Correia de Oliveira.
Por seu turno, no caderno editado por José Viana da Mota em 1895, “Cinco Canções Portuguesas”, as melodias não são regionais, sendo os textos extraídos de Camilo Castelo Branco, João de Deus e Garrett. A Condessa de Proença, na maioria das canções elaboradas na década de 1890, cuja brochura intitulou “Os nossos poetas. Melodias Portuguezas”, assina as músicas sobre textos de Tomás Ribeiro, Fernando Caldeira, Conde de Monsaraz, Sousa Monteiro e António Correia de Oliveira.
O compositor e antigo estudante de Direito António Rodrigues Viana integrou o movimento nacionalista a que nos nos vimos reportando, com pelo menos quatro brochuras de “Canções Portuguezas”, dadas a lume entre circa 1910-1926. As suas valsas e canções foram sobejamente conhecidas dos cantores e instrumentistas activos em Coimbra. Em 1929, Almeida d’Eça gravou deste compositor Pequenina e Eterna Canção.
A partir da década de 1920, o nacionalismo/regionalismo conheceria outras interpelações, por via das propostas ensaiadas por Edmundo Bettencourt/Artur Paredes, fazendo inflexão ao nacionalismo de veia integralista com homens com Armando Goes/António Sardinha. No entanto, era ainda o recurso ao “regional”. Um falso regionalismo, inventado pelas elites urbanas, que conforme as épocas e os protagonistas foi conseguindo sobreviver penosamente até finais do século XX.
Hilário terá sido um moderado consumidor destes ingredientes. A atentarmos na sua produção, podemos dizer que o que aproxima o cantor-guitarrista da cultura popular é o recurso à redondilha maior (burilada em termos de acidentes métricos e de concordâncias gramaticais). Nacionalista/regionalista, um homem que utilizava guitarras que nada tinham de regional-conimbricense, e que se dizia intérprete do Fado (não viera o Fado do Brasil?).
NOTAS
[1] Citado por Leonardo Acosta, Música e descolonização, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, pág. 21.
[2] Sendo de ressalvar que o Tango-Dança nos seus primórdios não era ainda um género coreográfico-musical identificativo de Buenos Aires. O designativo terá origem no século XVIII, na palavra Tangano ou Tambo, uma coreografia africana transportada para o Haiti e Cuba pelos escravos negros, donde terá transitado mais tarde para a Argentina e Uruguai. Estamos pois muito distantes de Buenos Aires e de Carlos Gardel. Vale a pena frisar que o Tango-Dança utiliza recorrentemente o compasso binário sincopado e letras em décimas, conforme decorre de um antíquíssimo tango uruguaiano de 1816 (Décimas del año 1816). A estrutura poético musical enunciada lembra-nos uma outra, a do primitivo Fado de Lisboa, com os seus compassos binários sincopados e o emprego de décimas. Devo estas informações ao Sr. Coronel José Anjos de Carvalho, em carta datada de 8 de Janeiro de 2000.
[3] José Alberto Sardinha, Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, TRADISOM, 2000, pág. 361, nota 374.
[4] Cf. Ruben de Carvalho, As músicas do Fado, Porto, Campo das Letras, 1994; Joaquim Pais de Brito (direcção), Fado. Vozes e sombras, Lisboa, Electa, 1994.
[5] Cf. Rancho Folclórico do Porto, Fado do Porto, Porto, DCD 1051, 2000, com acompanhamento de viola braguesa, violão, bandolim e cavaquinho. O trabalho de reconstituição do Grupo Folclórico do Porto, baseado no Cancioneiro de Músicas Populares/César das Neves, merece algumas objecções. Aquilo a que o Grupo chama “Fado do Porto” é, em bom rigor, Fado no Estilo de Lisboa. Apenas se detectam peculiarismos ao nível da tocata (bandolim, viola braguesa, rabeca) e da pronúncia regional. Não se utilizou neste trabalho um elemento, a meu ver fundamental, a guitarra do Porto. A solfas de fados publicadas abundantemente no Porto pela Casa Eduardo da Fonseca eram fados ao estilo de Lisboa. Dias de Sousa, executante de violão, empregado nos Telégrafos do Porto, jornalista amador, acompanhante do guitarrista António Mouson, tocava ao estilo de Lisboa. Numerosas letras para fados, editadas no Porto desde 1880, eram em décimas. António Mouson, guitarrista e cantor natural do Porto, discípulo de João Maria dos Anjos, com discos gravados na década de 1920, tocava ao estilo de Lisboa. O mesmo sucedia com os guitarristas locais, Chico Brandão e Guilherme de Campos. Cite-se ainda o contributo de J. Robles, autor do Fado Robles (ou Artilheiro), popularizado no Porto por 1890 quando o autor ali prestou serviço militar. Mas, o Porto foi, no último quartel do século XIX, um grande foco de serenatas, destacando-se neste período o guitarrista, cantor e compositor Reinaldo Varela. Pode afirmar-se, sem exagero, que a cidade do Porto reuniu as mesmas condições que as tradicionalmente apontadas a Coimbra para criar um “fado regionalizado”. Será caso para perguntar porque razão se pretendeu que o “transformismo” ocorreu apenas em Coimbra e não na cidade do Porto?
[6] Cf. Grupo Folclórico de Coimbra, Cantares de Coimbra, Coimbra, , GFC-01, 1999.
[7] Bertino Coelho Martins, Músicas e danças tradicionais do Ribatejo. Análise, conceitos e divulgação, Santarém, Assembleia Distrital de Santarém, 1997, págs. 95-105.
[8] Bertino Coelho Martins, op. cit., pág. 98.
[9] José Alberto Sardinha, Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, TRADISOM, 2000, pág. 365.
[10] Tenente Francisco José Dias, Cantigas do Povo dos Açores, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1981 (com transcrições musicais).
[11] Cf. Júlio Andrade, Bailhos, rodas e cantorias. Subsídios para o registo do folclore das ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo, Horta, Edição do Autor, 1960, págs., 337-340.
[12] Partituras musicais em Tenente Francisco José Dias, Cantigas do Povo dos Açores, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1981, págs. 89-106 e 312-314. Mais recentemente, o extraordinário tocador de viola da terra, Miguel Pimentel, recolheu no norte da Ilha de São Miguel (Freguesia da Maia) um Mouraria e um Corrido. Ouça-se o CD Sons d’Outrora, Ponta Delgada, Disrego, DRD-00-06, 1997, faixas nºs 6 e 19 (Com Miguel Pimentel na viola da terra e Emanuel Medeiros no violão). Devo a mestre Pimentel a graciosa oferta deste notabilíssimo trabalho. Nas recolhas musicais levadas a cabo em 1960 pelo professor Artur Santos constam fados. Sobre este assunto mencione-se a notável reedição O Folclore Musical dos Açores. Antologia Sonora da Ilha de São Miguel (campanha de 1960), Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2002, CD nº 4 (Fado Velho, Fadinho e Fofa)
[13] Caderno manuscrito que me foi emprestado por Cecília Viana, filha de mestre David Ferreira, em Setembro de 2005.
[14] Reflexões feitas a partir do estímulo teórico de José Alberto Sardinha, após troca de impressões em Agosto de 2005.
[15] Aspecto salientado em António M. Nunes, “As praxes académicas de Coimbra. Uma interpelação histórico-antropológica”, revista Cadernos do Noroeste. Nº 6, Volume 22, 2004, págs. 133-149.
[16] Coteje-se Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1884.
[17] Mais desenvolvimentos em Margarida Rosa Coimbra, “Subsídios para o estudo da delinquência estudantil em Coimbra, 1871-1886”, in Universidade(s), História, Memória, Perspectivas, Actas do Congresso de História da Universidade, Volume 3, Coimbra, 1991, pág. 321 e seguintes. Os surtos de delinquência estudantil registados no século XIX, não confundíveis com a violência simbólica e ritualizada das “praxes académicas”, parecem não diferir grandemente das práticas quotidianas observadas nas comarcas da Região de Coimbra na mesma época. Vide Maria Irene Vaquinhas, Violência, Justiça e sociedade rural. Os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova de 1858 a 1918, Porto, Edições Afrontamento, 1995.
[18] Prolongando práticas delinquentes também detectadas no século XVIII. Veja-se Maria Rosalina da Ponte Delgado, “Estúrdias académicas do “Anno Noticioso e Historico” (1740-1745)”, in Universidade(s), História, Memória, Perspectivas, Actas do Congresso de História da Universidade, Volume 3, Coimbra, 1991, pág. 233 e seguintes. Quanto aos comportamentos boémios, consulte-se nas actas supra mencionadas a comunicação de Manuel Louzã Henriques, “Considerações sobre a boémia estudantil no século XIX”, Volume 3, Coimbra, 1991, pág. 345 e seguintes.
[19] António Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra, s/e, 1982, págs. 39-126.
[20] Cf. Maria Eduarda Cruzeiro, “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, in Análise Social, Volume XV (60), 1979, pág. 805 e seguintes.
[21] Assunto solidamente detalhado por Alexandre Ramires, Revelar Coimbra. Os inícios da imagem fotográfica em Coimbra (1842-1900), Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro, 2001, págs. 7-16.
[22] Op. cit. 1979, págs. 795-838.
[23] Nelson Correia Borges, “Espectáculo convívio. Apresentação do Grupo Folclórico de Coimbra”, in Alta de Coimbra. História, Arte, Tradição. 1º encontro sobre a Alta de Coimbra. Coimbra, 23, 24, 25 e 28 de Outubro de 1987. Actas., Coimbra, GAAC, 1988, págs. 257-264. Segundo o investigador citado, “O Fado de Coimbra, que respeitamos e de que gostamos, tem cem anos”. Cf. op. cit., pág. 258.
[24] João Lourenço Roque, “Coimbra na 2ª metade do século XIX. Estudantes e sociabilidade urbana (Alguns aspectos)”, in Universidade (s), História, Memória, Perspectivas. Actas do Congresso de História da Universidade, Volume 3, Coimbra, 1991, págs. 257-275. Na esteira dos trabalhos de Maria Eduarda Cruzeiro, o autor salienta as novidades do associativismo, filantropismo, festa cívica, fado-serenata.
[25] Manuel Louzã Henriques, “Considerações sobre a boémia estudantil no séc. XIX”, in Universidade (s), História, Memória, Perspectivas, Actas do Congresso de História da Universidade, Volume 3, Coimbra, 1991, pág. 345 e seguintes.
[26] Alberto Sousa Lamy, A Academia de Coimbra (1537-1990), Lisboa, Rei dos Livros, 1990, em diversas matérias tratadas ao longo dos extensos capítulos.
[27] Nas Ordenações Filipinas, de 1603, Livro V, Título LXXXI, “Dos que dão música de noite”, podia ler-se: “Por se evitarem os inconvenientes, que se seguem das músicas, que algumas pessoas costumam dar de noite, cantando ou tangendo com alguns instrumentos às portas de outras pessoas; defendemos que pessoa alguma, de qualquer condição que seja, não se ponha só, nem com outros a tanger, nem a cantar à porta de outra pessoa, desque anoitecer até que o Sol seja saído. E sendo achados dando as ditas músicas, mandamos que assim os que tangerem e cantarem, como os que a isso assistirem, sejam presos (…)”. O Dr. Cândido de Almeida, que coordenou esta reedição no Rio de Janeiro em 1870, anotou que eram “serenatas”, as quais não eram “presentemente crime” (Cf. op. Cit., Volume V, pág. 1230, da reedição Caloust Gulbenkian).


Conjunto de 4 marcadores de livro publicado pela Delegação Regional de Cultura do Norte, do Ministério da Cultura, aquando de um concerto de Paulo Soares em Vila Real (acompanhado à viola por Rui Namora) Posted by Picasa

A Canção de Coimbra no século XIX
(Era uma vez... ele há teorias e teorias)

V. Um Património à espera, por António M. Nunes


Património cultural é o conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais que, pelo seu reconhecido valor intrínseco, são ou podem vir a ser considerados como de interesse relevante para a permanência e identidade da cultura portuguesa, seja ela nacional ou de âmbito regional.
Até à Revolução de 1974, o Estado e os poderes municipais tiveram do património uma visão estreita, essencialmente alicerçada na ideia de monumento. Visão estreita e monumentalista[1], porquanto o património não se cinge apenas aos castelos, conventos, igrejas, pelourinhos e espólio depositado nas variegadas instituições museológicas. Este estado de coisas começou a sofrer erosões, não tendo cessado de alargar-se depois da Revolução de 1974.
Três anos após os acontecimentos de 1974, o Decreto-Lei 79/77, de 25 de Outubro, cometia às Assembleias Distritais competências para deliberarem sobre problemas atinentes à investigação, inventariação, divulgação e conservação dos valores concelhios. Este diploma terá, porventura, pesado na proposta da Dra. Maria Judite Mendes de Abreu, Presidente da Câmara Municipal de Coimbra que sacralizou o repto para a realização do 1º Seminário do Fado de Coimbra (1978).
Não obstante as querelas surgidas entre os participantes – para uns, o “chamado Fado de Coimbra” estava definitivamente morto, restando tão só a hipótese de o estudar; para outros, “os clássicos” estavam mortos, devendo revitalizar-se apenas as trovas e baladas de intervenção; para outros, ainda, nada estava morto - , resultou claro que a CC deveria ser entendida na categoria de Património Cultural.
Em Janeiro/Fevereiro de 1978, a RTP exibiu uma série de cinco programas sobre os percursos da CC (“Coimbra Musical”), projecto que suscitou grande interesse e motivação entre os adeptos do género. A propósito da série exibida na RTP e do “1º Seminário do Fado de Coimbra” que se avizinhava para breve, o semanário Expresso enviou a Coimbra o repórter António Luís Peralta. Ouvidos os testemunhos de António Portugal, António Pinho de Brojo e Joaquim Pinho, os entrevistados não hesitaram no emprego da palavra “património” (“O Fado de Coimbra ou a propósito do semi-silêncio dos rouxinóis do Mondego”, Expresso, 11/02/1978).
O mesmo foi afirmado imperativamente por Afonso de Sousa na parte final da palestra O Fado propriamente dito e o chamado Fado de Coimbra. Na sua edição de 21 de Maio de 1978, o Jornal de Notícias efectuou um breve balanço das actividades e propostas desenvolvidas e afloradas na tarde do dia 20 de Maio de 1978. Além do tema apresentado por Afonso de Sousa, tinham sido postos a debate “O canto, a música e a poesia”, “A guitarra e a viola”, “O solo e o acompanhamento”, tendo exercido a função de moderadores Florêncio de Carvalho (música), Manuel Louzã Henriques (poesia), António Portugal (acompanhamento), António Brojo (solo). Durante a primeira sessão fora distribuído um documento intitulado “Achegas para as conclusões do Seminário”, em cujas páginas se podia ler:

-o reconhecimento do valor cultural da CC;
-a necessidade de um plano de salvaguarda urgente;
-a feitura e publicação de uma História da CC;
-a recolha/inventário de “letras” e “músicas”;
-a criação de uma “escola” de formação, ensino e transmissão de conhecimentos;
-a promoção de encontros anuais de antigos e actuais cultores/executantes[2].

Património cultural digno de estudo, preservação e divulgação, assim o entendeu a Câmara Municipal de Coimbra, instituição que nos anos imediatos promoveu novos seminários e apoiou directamente a criação da Escola Municipal do Chiado (1978-1990).
O regime jurídico do património cultural português foi regulamentado pela Lei nº 13/85, de 6 de Julho, em articulação com as directrizes consignadas na Constituição da República Portuguesa. O diploma de 1985 (Lei do Património Cultural Português), não chegava a falar em património musical, embora o artigo 8º, alínea d) permitisse subentender tal interpretação. Competia directamente ao Estado promover o estudo e salvaguarda do património, e incrementar a sua inventariação e protecção, por intermédio do Ministério da Cultura. Mais se adiantava que o processo de classificação poderia ser aberto pelo Estado, regiões autónomas, municípios, ou quaisquer pessoas singulares ou colectivas. O Instituto Português do Património Cultural ficava incumbido das tarefas a realizar, devendo cooperar com as associações de defesa do património.
Por seu turno, os direitos de autor estão regulamentados e protegidos desde longa data. Recordem-se o Decreto-Lei nº 13.725, de 27 de Maio de 1927 (Regime de Propriedade Literária Científica e Artística), e o Decreto-Lei nº 46.980, de 27 de Abril de 1966 (Código de Direito de Autor), diplomas que positivavam normas de protecção de direitos autorais e morais.
A antiga legislação portuguesa sofreria desactualizações decorrentes do confronto com diplomas produzidos no estrangeiro e posteriormente ratificados internamente. Refira-se a adesão de Portugal aos actos de revisão da Convenção de Berna para a Protecção de Obras Literárias e Artísticas (Decreto nº 73/78, de 26 de Julho), e da Convenção Universal sobre o Direito do Autor (Decreto nº 140-A/79, de 26 de Dezembro), elaborados em Paris a 24 de Julho de 1971. Outrotanto, não poderiam ser ignoradas as propostas da Convenção de Roma para Protecção de Artistas, Intérpretes ou Executantes, de Produtores de Fonogramas e dos Organismos de Radiodifusão (1961), bem como a Convenção de Genebra para Protecção dos Produtores contra Reprodução não Autorizada dos seus Fonogramas (1971).
A primeira tentativa interna de actualização destas matérias encontrou eco no Decreto-Lei nº 63/85, de 14 de Março, mediante o qual se procedeu à aprovação do Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos. O novo instrumento jurídico veio a sofrer importantes actualizações, presentes na Lei nº 45/85, de 17 de Setembro.
O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos positiva um importante conjunto de normas, da maior relevância para a dignificação da CC.
Assim:

-as criações de autor são consideradas obras juridicamente protegidas (art. 1º);
-são obras originais as composições musicais, com ou sem palavras e as obras fonográficas (art. 2º);
-são equiparados a obras originais os arranjos e instrumentações (art. 3º);
-o título original da obra é protegido (art. 4º);
-o direito de autor abrange direitos patrimoniais e de natureza moral (art. 9º);
-após a extinção dos direitos patrimoniais e independentemente daqueles, o autor goza de direitos de protecção moral, podendo reivindicar a paternidade, genuidade e integridade da obra;
-a faculdade de introduzir modificações numa obra original depende do acordo expresso do respectivo autor (art. 15º);
-consideram-se autores da obra fonográfica os autores do texto ou da música fixada e ainda o realizador (art. 24º);
-salvo disposição em contrário, o autor é o criador intelectual da obra (art. 27º);
-a referência ao autor da obra abrange o sucessor e o transmissário dos respectivos direitos (art. 27º);
-o exercído do direito de autor caduca cinquenta anos após a morte do criador da obra (art. 31º);
-a obra anónima, ou de autor anónimo, é alvo de protecção durante cinquenta anos após a primeira publicação/registo sonoro (art. 33º). No tocante às edições fonográficas (1ª matriz) o direito de reedição caduca ao fim de 50 anos após a primeira edição, caso o editor não volte a reeditar o fonograma. Adquire a titularidade dos direitos fonográficos o primeiro reeditor;
-a autorização concedida a terceiros pelo autor para divulgar, utilizar, explorar ou gravar, não implica a transmissão do direito de autor (art. 41º);
-se o titular do direito de reedição se recusar a exercê-lo ou a autorizar a reedição, uma vez esgotadas as edições feitas, poderá qualquer interessado requerer autorização judicial para tal efeito (art. 52º);
-compete aos tribunais definir as condições a que deve obedecer a reedição, tendo em conta “o interesse público” (art. 52º);
-os direitos morais são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, perpetuando-se após a morte do autor, competindo aos respectivos herdeiros exigir a integridade da obra enquanto esta não cair no domínio público (arts. 56º e 57º);
-a defesa da obra após cair no domínio público é exercida pelo Ministério da Cultura (art. 57º);
-não são admitidas modificações da obra sem o consentimento do autor, que deve ser dado através de carta registada com aviso de recepção (art. 59º);
-cabe aos herdeiros do autor decidir sobre a utilização e publicação de obras inéditas (art. 70º);
-em princípio, a utilização da obra para fins científico-investigativos, pedagógicos, reprodução na comunicação social, não carece de autorização do autor (art. 75º), ficando os utilizadores obrigados a indicarem o nome do autor, o título da obra e demais elementos identificativos (art. 76º);
-a utilização da obra para fins de representação cénica (espectáculos, actuações), carece da autorização do autor (art. 108º);
-a representação não autorizada, ou que viole o conteúdo da autorização, confere ao autor o direito de fazer cessar a representação (art. 112º);
-a entidade promotora do espectáculo deve afixar previamente o respectivo programa, indicando correctamente os títulos das obras e respectivas autorias (art. 122º);
-a entidade promotora do espectáculo dever fornecer ao autor, ou ao seu representante, uma cópia do programa (art. 122º);
-carece de autorização expressa do autor a fixação fonográfica da obra por terceiros (art. 141º)[3];
-a autorização de fixação fonográfica (gravação em disco, vídeo, filme, etc.) deve ser requerida ao autor por escrito (art. 141º);
-nos fonogramas (discos), devem constar o título da obra e respectiva autoria (art. 142º)[4];
-a transformação da obra original, por meio de adaptações, arranjos instrumentais, modificação do texto, depende de autorização escrita do autor (art. 146º);
-são ilícitas as utilizações que desfigurem uma obra original ou atinjam o autor na sua honra (art. 182º);
-comete crime de usurpação quem, sem autorização do autor, utilizar a obra (art. 195º);
-comete crime de contrafacção quem utilizar fraudulentamente, como sendo criação sua, uma obra de autor (art. 196º);
-incorre em violação dos direitos morais de autor quem se arrogar fraudulentamente a paternidade de obra alheia (art. 198º), ou quem atentar contra a integridade e genuidade da obra, por forma a desvirtuá-la, afectando a honra do autor (art. 198º);
-o procedimento criminal contra os fautores não depende de queixa do ofendido, excepto quando a infracção disser respeito à violação de direitos morais (art. 200º);
-tratando-se de obras caídas no domínio público, a queixa deverá ser apresentada pelo Ministério da Cultura (art. 200º).

Nos dias 8 e 9 de Novembro de 1991, no Luxembro, durante a 1ª Cimeira Europeia das Federações Musicais dos Estados Membros da Comunidade Europeia, foi aprovada a Carta dos Músicos Amadores da Comunidade Europeia (transcrição em Noémia Leitão e José Machado Lopes, Munda, nº 24, Novembro de 1992, págs. 31-32). Os governos dos países membros eram invectivados a criarem mecanismos jurídicos aptos a forneceram apoio moral, social e financeiro aos praticantes de música amadora, e aos indivíduos e associações vocacionados para “a salvaguarda e desenvolvimento do património cultural”.
Nas décadas de 1980 e 1990, o conceito de património não cessou de alargar as suas fronteiras, tendo atingido horizontes anteriormente inimagináveis, onde passaram a ter guarida as várias expressões de música tradicional, a gastronomia, o ambiente, as reservas naturais, falares e dialectos locais, os animais e espécies em vias de extinção. Um tal alargamento levou Marques de Almeida e Pedro Barbosa a perguntarem “preservar o quê?”, ou quando é que um bem cultural ganha a qualificação de património (Cf. “O património Local e Regional, Lisboa, Ministério da Cultura, 1998, págs. 16 e 19-25), inquietação que também se faz sentir junto dos juristas da especialidade (José Casalta Nabais, “Introdução ao Direito do Património Cultural”, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 15-23).
Reflectindo os novos modos de olhar o património, a Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro, veio estabelecer as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural. Estruturado em 12 títulos e 115 artigos, o diploma enfatiza o valor do património cultural, enquanto traço basilar da identidade nacional (art. 1º).
Passam a integrar o conceito e âmbito do património cultural “todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização” (art. 2º). O interesse cultural estende-se a manifestações linguísticas, históricas, arqueológicas, arquitectónicas, documentais, artisticas, etnográficas, sociais, paleontológicas, consideradas comprovadamente antigas, raras, autênticas, originais, singulares ou exemplares. Integram o conceito de património cultural os bens imateriais considerados parcelas estruturantes da identidade e da memória. A cultura tradicional e a cultura tradicional popular passam a ocupar posição de relevo na política do Estado em termos de protecção e valorização. Cabe ao Estado em geral e aos orgãos regionais representativos do Estado apoiar, salvaguardar, valorizar, promover o estudo do património cultural (art. 3º).
São igualmente tipificados os critérios de apreciação com vista à classificação e inventariação dos bens culturais, entre eles:
a) o carácter matricial do bem;
b) o génio do respectivo criador;
c) o interesse do bem como testemunho simbólico;
d) o interesse do bem como testemunho notável de vivências ou factos históricos;
e) o valor estético intrínseco do bem;
f) a extensão do bem e o que nele se reflecte do ponto de vista da memória colectiva;
g) a importância do bem do ponto de vista da investigação histórica ou científica;
h) as circunstâncias susceptíveis de acarretarem diminuição ou perda da perenidade ou da integridade do bem.
São património alvo de protecção registos audio-visuais e fonográficos (art. 89º). O artigo 91º incide sobre formas de cultura oral e de cunho etnoantropológico, assinalando-se a premência dos registos e recolhas. Constituem deveres do Estado (art. 92º) e dos municípios (art. 93º) apoiar, proteger e valorizar o património cultural tradicional, para tanto atribuindo fundos e comparticipações. A classificação dos bens culturais de interesse municipal incumbe às câmaras municipais (art. 94º).

Por força do etnocídio que conduziu à captura ideológica e morte simbólica da CC entre as décadas de 1960/1970, este género artístico passou a ser tacitamente entendido como um Património Cultural digno de interesse e preservação junto dos seus cultores e consumidores mais esclarecidos. A nova maneira de olhar e de conceber a CC emergiu quase isoladamente em contexto agonístico, na década de 1960, numa época em que ainda prevaleciam princípios discutíveis como o usar e abusar irresponsavelmente, a falsificação de autorias, o estropiamento de textos e títulos, a violação dos direitos de autor, o utilizar e deitar fora. Era o princípio do Utilizador Irresponsável.
Em Dezembro de 1970, nas vésperas do nonagésimo aniversário da fundação do Orfeon Académico, a CC, na sua vertente mais “clássica” achava-se irreversivelmente minada pelas triunfantes e agressivas arremetidas polarizadas em torno do Movimento da Trova e da Balada. À entrada da década de setenta, o Movimento da Trova, enquanto contracultura, conquistara invejável espaço de afirmação junto de certas elites restritas, pese embora as dificuldades de aceitação no interior de algumas franjas da Sociedade Académica.
O modelo cultural-tradicional dominante, em fase acelerada de decomposição desde 1969, rejeitava assimilar as novas contra-instituições. Só verdadeiramente depois da Revolução de 1974, e em conjuntura de revitalização das instituições tradicionais, se viria a operar a assimilação/recuperação parcial da contracultura dos “sixties” pela cultura tradicional dominante.
Em ambiência de luto e de perplexidades, o Orfeon Académico remeteu em 2 de Dezembro de 1970 uma carta-convite aos seus antigos membros e colaboradores. A carta anunciava a realização de um “Colóquio” que se debruçaria “não tanto sobre a origem e história”, “mas sobre o momento que ele atravessa, sobre a evolução que vem sofrendo e sobre o seu futuro previsível e desejável”.
O “Colóquio sobre o Fado de Coimbra”, organizado pela direcção do Orfeon Académico, teve lugar entre os dias 4 e 6 de Dezembro de 1970 no Instituto de Coimbra. Participaram, entre outros, Manuel Julião (cantor), Jorge de Morais Xabregas (guitarrista), Ângelo de Araújo (compositor), Afonso de Sousa (guitarrista), Luís Goes (cantor), Fernando Rolim (cantor), Augusto Camacho (cantor), Ernesto de Melo (guitarrista), Eduardo de Melo (guitarrista), José Miguel Baptista (cantor), Durval Moreirinhas (violonista), António Andias (guitarrista), José Horácio de Miranda (cantor), Hermínio Menino (guitarrista), Manuel Vaz Craveiro (cantor) e José Adelino Gomes Leitão (cantor).
É já em ambiente de velório e de morte simbólica da CC que o formador Jorge Gomes inicia em 1972, e de modo sistemático, o ensino da guitarra coimbrã (núcleo sediado no Complexo das Piscinas Municipais). Às atitudes isoladas e pontuais registadas antes de 1974 sucede uma consciência patrimonial perante um mundo de melodias, instrumentos, poemas cantáveis, emoções, que pareciam ecoar tumularmente do fundo de um tempo perdido. Mais ou menos na mesma altura o antigo cultor Afonso de Sousa, radicado em Leiria, e o coleccionador e investigador Divaldo Gaspar de Freitas, domiciliado no Brasil, distanciam-se dos movimentos mais radicais e insistem no conceito de “património” a preservar.
Em tempo de aliviar luto, gerações de antigos e de jovens universitários, a Câmara Municipal de Coimbra (1978) e a titubeante Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra (fundada em 1980) desempenharam um papel activo na recuperação/revitalização da CC.
Porém, em 1990, a Câmara Municipal de Coimbra mandava suspender as actividades da Escola do Chiado[5], deixando o árduo trabalho de formação a cargo da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra (AAC) e de uma escola aberta na Tuna Académica (TAUC).
A CC tem sido considerada um Património Cultural, postura reiterada por Luiz Goes e demais participantes nos dias um e dois de Maio de 1998, no decurso das “Comemorações dos 20 Anos do 1º Seminário do Fado de Coimbra”, e no colóquio “A Canção de Coimbra em 17 de Abril de 1969 e 2001”. Neste último colóquio, organizado pela Minerva Coimbra, em 17 de Abril de 2001, Jorge Cravo terminou a sua intervenção enunciando oito propostas atinentes à valorização cultural e patrimonial da CC. Propunha o palestrante a abertura de novas escolas de ensinança, o apoio a oficinas de construção de instrumentos, o incentivo a trabalhos de pesquisa e de investigação, o mecenato como apoio à gravação discográfica de jovens grupos, a criação de uma revista apostada na divulgação regular de trabalhos, projectos de divulgação internacional, etc..
Escusado será dizer que até ao crepúsculo do século XX não se registou qualquer atitude, seja da parte dos variegados organismos culturais académicos, seja da parte da Reitoria da UC, seja da parte da Câmara Muncipal de Coimbra, seja da parte da Associação de Antigos Estudantes e suas ramificações regionais, no sentido de formalizar um estatuto jurídico para um Património Cultural escassamente conhecido.
A CC não necessita, em bom rigor, de um estatuto jurídico para sobreviver. Mas dele poderia extrair extensos benefícios, em termos de investigação, inventariação, desocultamento de contrafacções e fraudes, reedição de fontes sonoras esgotadas no mercado, edição de fontes sonoras inéditas, publicação de antologias documentais, restauro e reconstrução de instrumentos, incentivos de gravação a grupos jovens, celebração de protocolos de resgaste fonográfico com instituições como a RTP, RDP, RDP-Centro. E não menos importante, traria aos cultores e executantes no activo uma outra atitude de responsabilização e dignificação perante um bem cultural frequentemente abusado e sujeito a contrafacções. A instituição que se arroga defensora desta modalidade de manifestações culturais, o Ministério da Educação, não conhece a CC, e que saibamos, jamais disponibilizou verbas destinadas a trabalhos de campo, gravações, investigação, restauro e construção de instrumentos, edição de fontes[6]. Não se pode defender nem apoiar aquilo que se desconhece, ou que se olha de soslaio como epifenómeno “menor”[7]. O mesmo se diga da Sociedade Portuguesa de Direitos de Autor, foco onde foram convergindo as mais temíveis contrafacções e falsificações de autorias e de obras[8], uma vez que a SPA aceita as declarações de autorias mas não tem capacidade de verificação da autenticidade do teor das declarações prestadas.
Em finais do século XX, diversos municípios portugueses haviam procedido à outorga da categoria de património de interesse municipal aos bens mais impensáveis, mesmo em se tratando de queijos holandeses. Outros ainda, como Paços de Ferreira e Armamar, travaram batalhas em prol dos chamados produtos com “Denominação de Origem Protegida”. Em Coimbra, perante um Património Cultural progressivamente ameaçado de desterritorialização, nenhuma atitude, nenhuma movimentação[9]. Preservar o valor patrimonial de um determinado género musical não significa cercear a prática aberta e livre fruição do mesmo. Cabe interrogar directamente um poder municipal que entre 1990-2002 se serviu da CC para efeitos de afirmação da sua imagem interna e externa, com amnésico esquecimento das suas responsabilidades: “Fado Académico” ou Canção de Coimbra? “Guitarra Portuguesa” ou Guitarra de Coimbra? Percorrendo a agenda cultural da Câmara Municipal de Coimbra para os meses de Julho/Agosto de 2001, ali se via importante amostra de grupos intérpretes da Canção de Coimbra, alinhados para efeitos de representação[10]. O município usa mas não se responsabiliza. Nós entendemos precisamente o contrário: usar com consciência jurídica e ética, à luz do princípio do Utilizador Responsável.
No espectro cultural proposto pela agenda Coimbra Viva eram apresentados o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Ceira (1962), Grupo Folclórico Os Camponeses de Vila Nova de Cernache (1982), Grupo Folclórico e Etnográfico As Tecedeiras de Almalaguês (1977), Grupo Folclórico Os Camponeses do Mondego/Ribeira de Frades (1975), Rancho Típico de Vila Nova de Cernache (1974), Grupo Regional de Danças e Cantares do Mondego/Fala (1977), Grupo Folclórico de Torre de Bera/Almalaguês (1938), Grupo Folclórico e Etnográfico de Arzila (1974), Rancho Típico da Palheira (1971), e Grupo Folclórico de Coimbra (1986).
Na nota de apresentação, praticamente todos os grupos se declaravam classificados na categoria de “agrupamento de interesse folclórico” pela Câmara Municipal de Coimbra. Quer isto significar que o grosso dos agrupamentos “folclóricos” activos no Concelho de Coimbra passou a nortear a sua actividade por sólidas regras de rigor na reconstituição de danças, cantares, trajos populares, rituais de dimensão etnográfica e religiosa.
Ora, se o Pelouro da Cultura da Câmara Muncipal de Coimbra classifica, reconhece e certifica a música popular detectada nos povoados do Concelho como bem cultural digno de interesse, considerado o trabalho sério e rigoroso levado a cabo pelos grupos de etnografia e folclore, representa esta atitude um grande avanço em relação ao passado recente. Falta, no entanto, o segundo e não menos importante passo que é atribuir à CC o estatuto de Património Cultural de Interesse Municipal, uma vez que a CC também é parte integrante da Música Tradicional de Coimbra (não obstante a sua identidade peculiar).
A formalização jurídico-administrativa do processo CC/Património Cultural de Interesse Municipal como que se tornou inevitável nos horizontes dos debates teóricos.
Até que se verifique uma sólida e notória mudança de atitudes, a CC demora e demorará um “Património à espera...”. Até aqui abordou-se a questão em termos culturais, antropológicos e psico-sociológicos. A abordagem estritamente jurídica coloca-nos perante outro tipo de dificuldades.
Vejamos resumidamente[11]:

-da leitura atenta da actual Lei de Bases do regime de protecção e valorização do Património Cultural (Lei nº 107/2001, de 8 de Setembro), não resulta suficientemente claro que géneros poético-musicais como a CC possam ser alvo de classificação e de consequente protecção jurídica. No plano do direito comparado, não existem antecedentes para géneros como a Canção Napolitana, o Tango ou o Jazz[12].
-o objecto cultural que se pretende classificar padece ainda de uma ausência de definição musicológica rigorosa. As tentativas de definição conhecidas são meramente empíricas.
-levanta-se a questão da extensão do Bem a classificar. Seria possível classificar a CC no seu todo, quando o seu todo ainda não foi estudado? O objecto considerado, além de eclético, é vasto em produções. Como tal, dificilmente se poderia classificar segundo os operadores usuais em imóveis, artesanato ou receitas de culinária.
-o processo de classificação/protecção exige um trabalho de inventariação exaustiva de títulos e de autorias que anda longe de concretizado[13].
-a protecção jurídica do Bem não lesaria por algum meio os legítimos direitos dos autores e seus herdeiros? Além do mais, no tocante a este ponto, a Lei nº 45/85, de 17 de Setembro (Código do Direito de Autor) define o quadro legal de protecção dos direitos autorais. Como tal, grande parte das matérias positivadas naquele diploma já conferem protecção a um género musical que nas suas traves mestras é fruto de produções de autor(es). Coisa diversa é objectar-se que os instrumentos de protecção/fiscalização presentes no Código do Direito de Autor não têm encontrado aplicação prática no tocante às lesões habitualmente desferidas sobre a CC.
-a protecção do Bem não colidiria com os interesses das editoras discográficas detentoras dos direitos de edição de determinadas etiquetas?
-em vez de uma tentativa de protecção genérica, talvez seja mais procedente começar pela classificação parcelar de lotes de partituras, edições discográficas de certos e determinados vocalistas ou instrumentistas, pela designação deste género musical ou pela própria Guitarra de Coimbra.
-por fim, caso se obtivesse a protecção genérica do Bem, não se correria o risco de integrar no conceito de Património projectos fonográficos de menor valia estética, com manifesto proveito dos comerciantes de emoções e prejuízo do objecto protegido?

Rematando: algumas das ideias afloradas neste capítulo, redigidas entre 2000-2002, sofreram desactualizações face aos acontecimentos ocorridos em 2004-2005, desde logo:
-em 3/09/2003, aprovação da proposta de publicação de um cancioneiro literário-musical da CC em 6 tomos, pelo Pelouro da Cultura a CMC (transferido para o projecto Unesco em Abril de 2004, mas não concretizado);
-em 15/03/2004, aprovação por unanimidade no Executivo Municipal de Coimbra da candidatura da CC a Património Oral Imaterial da Humanidade junto da UNESCO;
-em 15/04/2004, constituição de uma Comissão de trabalho e aprovação do projecto de investigação/edição para apoio da candidatura;
-em 11/05/2004, celebração de um acordo entre a CMC e a Reitoria da Universidade de Coimbra com vista a uma eventual integração da CC no projecto de candidatura do Paço das Escolas a Património Mundial da UNESCO;
-em 2/12/2004, protocolo entre a CMC e a Reitoria da UC visando a integração do projecto CC enquanto Património Imaterial no projecto de candidatura da UC.
Porém, desde Maio de 2004 até finais de 2005 a Comissão não conseguiu viabilizar qualquer dos projectos editoriais alinhavados por total falta de cabimentação orçamental.
NOTAS:
[1] A expressão “monumentalista, historicista, culturalista e elitista” foi apresentada em 1987 pelo jurista Vital Moreira. Cf. Vital Moreira, “O património e a lei”, in Alta de Coimbra. 1º Encontro sobre a Alta de Coimbra, Coimbra, 23, 24, 25 e 28 de Outubro de 1987, Coimbra, GAAC, 1988, pág. 267.
[2] Sendo de lamentar a não edição das actas dos seminários realizados entre 1978-1983, cuja documentação era dada como extraviada, ou com paradeiro desconhecido em 2004.
[3] Recorde-se o caso do Dr. Eduardo Manuel Tavares de Melo (1924-1992) que em Agosto de 1988 me denunciou a sua discordância relativamente à gravação de “Incerteza” por José Afonso, registo efectuado sem pedido de autorização ao legítimo autor. Ou o corte de relações entre António Pinho de Brojo e José Maria Amaral, pelo facto de Brojo ter procedido a alterações não autorizadas pelo autor nos temas “Variações em Mi Menor” e “Variações em Lá menor” (o esfriamento de relações surgiu com o boicote à serenata do Seminário de Maio de 1983 e radicalizou-se com as “adulterações” não autorizadas em peças “arranjadas” para o álbum vinil Tempos de Coimbra).
[4] Com efeito, é nas fichas técnicas dos discos lançados no mercado que se observam as mais graves violações no tocante à falta de respeito pelos títulos originais das obras, autorias de letras e músicas, a que acrescem estropiamentos de letras. Para um exemplo acabado deste modo de proceder, leia-se a recolha aleatória de José Ribeiro de Morais, Colectânea de fados e canções de Coimbra, 2ª edição, Porto, Almeida & Leitão, Lda., 1998, obra que logo no tema de abertura apresenta “Saudades de Coimbra” como “Saudação a Coimbra”.
[5] Não se pode considerar revitalização da extinta Escola do Chiado a inauguração da Escola dos Antigos Orfeonistas, em Maio de 2002, confiada à orientação do guitarrista Paulo Soares.
[6] Refiro-me a uma política cultural consistente e não subsídios episódicos, como o atribuído pelo Ministério João de Deus Pinheiro em 1986 à obra de Carlos Manuel Simões Caiado, Antologia do Fado de Coimbra, Coimbra, 1986.
[7] O que esperar de ministros da cultura ou de antigos ministros da pasta, quando em declarações a um jornal, com data de 17 de Março de 2004, o antigo ministro do Governo Socialista de António Guterres e agora Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, José Sasportes, aconselhava a que o “chamado Fado de Coimbra” se fundisse com o Fado de Lisboa para efeitos de candidatura única ao estatuto de património cultural da UNESCO?
[8] Para se aquilatar o grau de interesse da SPA pela actualização da sua base de dados, cite-se a querela havida entre a instituição e a Tuna Académica da Univiversidade de Coimbra no último semestre de 2001. A propósito do CD Orquestra da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, Public-Art Editora 19301, lançado em 16 de Dezembro de 2001, pretendeu o Director da Tuna, Adamo Caetano, registar correctamente o nome do autor do “Hino Académico de Coimbra”. A SPA objectou que não poderia ficar José Cristiano de Medeiros (Açores, 1827; Leiria, 1908), pois que do registo constava Jota Ponto Medeiros. Assim, por obra e graça da estultícia burocrática muito à portuguesa, José Cristiano Ó Neil de Medeiros é “Jota Ponto Medeiros”. Outro episódio caricato: em Outubro de 2002, o guitarrista Francisco Dias remeteu à SPA a ficha técnica de um disco em preparação onde se pretendia alinhar “Bailados do Minho”. Para surpresa de todos, a SPA exigiu que este tema, da autoria de Antero da Veiga, trouxesse apenso o nome de António Portugal.
[9] Saliente-se a atitude do Dr. Mário Nunes, vereador do Pelouro da Cultura da CMC (Março de 2002-Outubro de 2005). Entre os cultores da CC e a RDP/Centro (antigo Emissor Regional da Emissora Nacional) existia de certa forma um litígio implícito, resultante do facto da mesma RDP/Centro manter os arquivos sonoros teimosamente fechados a qualquer hipótese de pesquisa. Dizia-se que os arquivos sonoros da RDP/Centro eram valiosíssimos para a História da CC no período Dezembro de 1946/Abril de 1974. Face ao mutismo da RDP/Centro corriam rumores não oficialmente confirmados, onde desaguavam coisas como “as antigas bobines estão perdidas porque foram reutilizadas”; “as transmissões mais antigas não foram gravadas em bobine”. Em Março de 2002 a situação de mal estar agravou-se com outra notícia também não oficialmente confirmada: a RDP pretendia transferir a curto prazo todo o arquivo sonoro do antigo Emissor Regional de Coimbra para Lisboa. A notícia originou de imediato uma reunião de emergência no gabinete do vereador da Cultura, onde marcaram presença os Drs. Mário Nunes e Jorge Cravo e ainda a Presidente da Secção de Fado da Associação Académica. Nesta reunião se firmou um acordo de cavalheiros no sentido de a Secção de Fado da AAC criar uma fonoteca, com base num protocolo entre a CMC e a RDP/Centro. Numa vistoria por mim efectuada aos referidos arqquivos, em Maio de 2004, constatei que as antigas bobines de fita de aço relativas às “serenatas” realizadas entre 1946-1960 não haviam sido conservadas. Posteriormente, no primeiro semestre de 2005, o grosso do arquivo discográfico da RDP/Centro deu entrada na Fonoteca Municipal de Coimbra.
[10] Eram eles Grupo Verdes Anos, Quarteto Aeminium, Guitarras do Mondego, Guitarras de Coimbra, Tradição de Coimbra, Quinteto de Coimbra, Saudade Coimbrã. Cf. Coimbra Viva. Agenda nº 15, Julho/Agosto 2001, Coimbra, Edição da CMC, 2001.
[11] As reflexões apresentadas em epígrafe são resultado de uma mesa redonda informal, organizada em casa do autor, no dia 1 de Maio de 2002. Participaram os magistrados e antigos estudantes de Coimbra Dra. Carla Silveira, Dr. Paulo Sérgio Ferreira, Dr. Pedro Menezes, e ainda a Dra. Rosário Marques, especializada em arqueologia e museologia pela Universidade do Porto, técnica no Museu Municipal de Penafiel.
[12] O Tango e o Flamenco, melhor conhecidos internacionalmente, já intentaram candidatar-se ao galardão da UNESCO, mas sem sucesso. Em inícios de 2004 a Câmara Municipal de Lisboa, presidida por Pedro Santana Lopes, também anunciou a intenção de candidatar o Fado de Lisboa, tendo precisado mais tarde que a intenção de protecção visava apenas as modalidades mais tradicionais do Fado, concretamente Fado Corrido, Fado Menor e Fado Mouraria.
[13] O Pelouro da Cultura da CMC, mediante ofício de 3 de Setembro de 2003, nomeava uma comissão de trabalho, coordenada pelo autor deste texto, com vista à produção de um cancioneiro geral literário-musical da CC em 6 tomos. Os trabalhos foram efectivamente organizados, em esforçada colaboração do Coronel José Anjos de Carvalho, mas até finais do mandado (Outubro de 2005) nada foi viabilizado em termos de transcrições musicais e de respectivas edições.

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