sábado, dezembro 24, 2005

A Canção de Coimbra no século XIX (1840-1900)
A Memória e os Sons
Por António M. Nunes
II. Serenatas dos futricas e das tricanas
O desaparecimento físico de instrumentistas populares como José Lopes da Fonseca (1883-1976), Flávio Rodrigues da Silva (1902-1950), de compositores como José das Neves Elyseu (26/05/1872; 13/11/1924), e de cantores como Alexandre Louro, Francisco e Alberto Caetano, ditou o silenciamento da memória das serenatas futricas.
Outras condicionantes podem ser enunciadas, entre elas, o avassalador predomínio de gravações discográficas académicas concretizadas na segunda metade da década de 1920, a maior visibilidade dos “fados e guitarradas” estudantis que no país e estrangeiro acompanhavam a Tuna e o Orfeon, o crescente grau de poluição sonora que foi ditando a “morte” de lugares de extraordinária acústica natural (Largo do Romal, encosta de Montarroio, Alto de Santa Clara, Mondego), a decadência dos ranchos dos bairros que outrora animavam arraiais populares, romarias, festas da Rainha Santa e Fogueiras de São João com as suas danças e cantorias.
Em 1942 o Estado Novo iniciou a demolição de parte substancial da antiga Alta Salatina, forçando os moradores à migração para os novos bairros de casas económicas construídos na Arregaça e em Celas. As medievais Fogueiras de São João Baptista da Alta entraram em franca desagregação, engolidas pela voragem das demolições. A derradeira, animada apenas com cordofones, teve lugar em Junho de 1947 no Largo do Castelo. À roda de 1960, na Baixa, o antigo rancho do Romal (Flores da Mocidade) ensaiava os derradeiros passos. Os moradores “expulsos” da Alta faziam por manter viva no Bairrinho de Celas uma tradição que quase chegou às vésperas do 25 de Abril de 1974. Num apontamento tomado em Celas pelo Emissor Regional nesses anos crepusculares, ouvem-se quase em requiem a voz rouca do mandador, um acordeão, um clarinete, e o que restava das velhas danças (Marinheiro do Mar Largo, Fogueiras do São João, À Porta do Lúcio, etc. ). Uma dor de alma!
Em 1970, o jornalista Álvaro Perdigão conseguiu reunir, para efeitos de registo em cassete, o antigo tocador de violão José Lopes da Fonseca (Zé Trego), Alexandre Louro (cantor), Guilhermina Peixoto (cantadeira, nascida por 1888) e Esmeralda Peixoto. Da recolha então efectuada resultou um programa exibido no Emissor Regional, onde se recordaram antigas modas das Fogueiras, fados-canções populares ou tradicionalizados, marchas e as esquecidas serenatas fluviais dos futricas e das tricanas[1].
Não se sabe ao certo quando tiveram verdadeiramente início as decantadas serenatas fluviais futricas. O primeiro testemunho documental de que dispomos reporta-se ano de 1892. A serenata fluvial em honra da Rainha Santa parece traduzir o esforço de modernização do programa tradicional, ao adoptar diversões aptas a satisfazer os gostos do público de finais de oitocentos, como as corridas velocipédicas e a tourada. O certo é que em 1892, a comissão de festas da Rainha Santa Isabel decidiu diversificar o tradicional programa, nele incluindo uma serenata fluvial em barcas serranas.
A partir de finais de Junho de 1892, a imprensa regional começa a noticiar a “vellada no rio”, solicitando a colaboração dos barqueiros, e noticiando que uma das poetisas convidadas foi Amélia Jany. Sabe-se que Amélia Jany escreveu um conjunto de quadras destinadas à valsa-serenata “Jovens Sereias”. Os jornais não explicitam quem foram os artistas ou grupos encarregues da serenata, mas não é de excluir a hipótese de ter sido realizada pela tocata e vozes do Rancho do Largo do Romal, grupo que costumava manter armado o pavilhão das festas sanjoaninas até Julho, servindo de arraial popular nos anos em que havia festejos da Rainha Santa.
O regente da Banda de Infantaria, António José Ribeiro Alves terá participado na realização do evento, com melodias de estilo popular, a exemplo de uma canção destinada a ser cantada nas festas da Rainha Santa no pavilhão da Praça Velha (BGUC, Secção de Músicas, MM-79).
A preparação desta primeira serenata fluvial, inserta no programa oficial das festas da Rainha Santa, achava-se em curso na parte das músicas e coros, conforme notícia de “O Tribuno Popular”, de 28 de Junho de 1892. Na edição de 20 de Julho de 1892, “O Tribuno Popular” informava que a serenata teria lugar na noite de 22, em presença de Suas Magestades El- Rei D. Carlos, Dona Amélia, e do Príncipe D. Luís Filipe. A comissão organizadora da serenata pensava deslocar-se ao Pátio da Universidade e repetir a serenata ante as régias visitas. A serenata teve lugar numa sexta-feira, dia 22 de Julho de 1892, entre a 23 horas e a meia noite. Sairam as barcas, belamente engalanadas com balões venezianos e bandeiras, da Lapa dos Esteios em direcção ao cais e ponte velha. As barcas traziam tocatas e ranchos de raparigas. Suas Magestades observaram e ouviram a serenata das janelas do Observatório Astronómico, ao Pátio da Universidade (“O Tribuno Popular”, de 23/07/1892).
Enorme ajuntamento de povo, postado no Cais fluvial e nos parapeitos da ponte de ferro acolheu e ovacionou a serenata. Não se repetiu a serenata no Pátio da Universidade, dado o atraso verificado no passeio fluvial, mercê do encalhamento inesperado de algumas barcas. A serenata futrica de 1892 foi um ritual misto onde participaram elementos masculinos e femininos, que visou homenagear a Rainha Santa e a Família Real portuguesa.
A serenata voltaria a realizar-se no dia 6 de Julho de 1894, num Sábado. As barcas sairam da Lapa dos Esteios às 21. 30 horas, tendo chegado ao Cais às 23 horas. A tocata popular, as tricanas cantadeiras e o repertório de canções populares receberam palmas e saudações entusiásticas da multidão apinhada na ponte, Largo da Portagem e cais (“O Tribuno Popular”, de 7/07/1894).
A terceira serenata oficial em honra da Rainha Santa ocorreu numa sexta-feira, pelas 22 horas do dia 10 de Julho de 1896 (“O Tribuno Popular”, de 11/07/1896). A serenata fluvial de 1896 ficou na memória popular, pois segundo a imprensa regional foi neste ano que pela primeira vez se iniciou o culto da Rainha Santa Nova, notável escultura artística de Teixeira Lopes, ofertada à Confraria e à cidade pela Rainha Dona Amélia. O projecto andava em preparativos desde a visita régia de 1892, e nos festejos de 1894 o povo admirara o novo andor concebido por António Augusto Gonçalves e executado em Vila Nova de Gaia sob orientação de Teixeira Lopes[2]. Postada em cima de um estrado na Praça 8 de Maio, Guilhermina Peixoto cantou uma “Saudação” à Rainha Santa nova (que ainda entoou na entrevista de 1970).
Relativamente aos festejos de Julho de 1898, a comissão anunciou que não realizaria a tradicional serenata fluvial, em virtude da exagerada e anormal secura da corrente (“O Tribuno Popular”, de 15/06/1898). De acordo com “O Tribuno Popular”, de 22 de Junho de 1898, a comissão programadora substituiu a serenata por uma grande marcha musical, com tocata, cantadeiras, balões, que vinda do Vale do Inferno desaguou no Largo da Portagem entre vivas e aplausos.
A serenata de 1900 teve lugar no dia 6 de Julho. As barcas saíram da Lapa dos Esteios pelas 21:00 horas e vogaram na direcção do Cais fluvial antigo, junto à Ponte. Acostadas as barcas, segiu-se um desfile de cantorias e archotes pela Portagem e ruas circundantes (“O Conimbricense”, de 26/06/1900 e 10/07/1900).
Nos festejos seguintes, a serenata fluvial ocorreu num Sábado, dia 12 de Julho de 1902, organizada pelos músicos dos Bombeiros Voluntários e ranchos do Pátio da Inquisição e Alto de Santa Clara (“O Tribuno Popular”, de 12/07/1902). O Rancho do Pátio da Inquisição ensaiou expressamente e estreou nesta serenata a “Balada do Mondego”, com música de José das Neves Elyseu e letra de Henrique Martins de Carvalho (“O Tribuno Popular”, de 16/07/1902). Integrava a tocata do Pátio da Inquisição o tocador de violão José Lopes da Fonseca.
No ano de 1904 a serenata foi realizada na noite de 9 de Julho (“O Tribuno Popular”, de 22/06/1904), embora a imprensa seja bastante comedida na ventilação de pormenores. Em Julho de 1906, “O Tribuno Popular”, de 13 de Junho de 1906 anunciava a repetição da serenata fluvial “com ranchos”, efectivamente realizada, dela havendo notícia em “O Tribuno Popular”, de 11 de Julho de 1906.
A partir de 1892, a serenata fluvial futrica em honra da Rainha Santa rapidamente se transformou numa tradição que logrou manter-se nos programas oficais até à implantação da República. Apenas não ocorreu nos anos em que a escassez de corrente ameaçou fazer encalhar as barcas, a exemplo do sucedido nos festejos de 1898.
Nos anos que se seguiram à Revolução de 5 de Outubro de 1910 as festas da Rainha Santa atravessaram um período de crise, fruto do conflito surgido entre o Estado e a Igreja Católica. A “Gazeta de Coimbra”, ao divulgar o programa das festas atinente ao período 1911-1913, não faz a menor alusão às antigas serenatas, o que à primeira vista nos leva a supor terem desaparecido. Mas não desapareceram. Continuaram a realizar-se, por vezes com dois a três grupos distintos numa só noite ou em noites diferentes, sem que delas constasse referência em programas impressos pela Confraria.
O já mencionado relato do barbeiro José Lopes da Fonseca (Zé Trego) reporta-se ao período de inauguração da Praia Fluvial entre a Ponte de Santa Clara e o muro do Parque Dr. Manuel Braga. Um testemunho oral prestado pela filha de José Trego, Maria José Sousa Lopes Morais, em Junho de 2001, confirma esta inferência. Relata Maria José Sousa Lopes Morais, que sendo rapariguinha de sete para oito anos (nasceu em 1929) se lembra de ter assistido à derradeira serenata fluvial realizada numa barca serrana, que engalanada e iluminada com tigelas de barro e azeite vogou junto à amurada do Parque Dr. Manuel Braga. A fazer fé neste testemunho, as últimas três serenatas fluviais futricas tiveram lugar em Julho de 1936, em três noites distintas (1 – Serenata do Grupo Salsichon; 2 – Serenata do Rancho do Alto de Santa Clara; 3 – Serenata da Alta Salatina).
Ouçamos o próprio José Lopes da Fonseca:
“As serenatas no Mondego eram feitas em barcas serranas, umas barcas póprias que vinham de Penacova, por aí abaixo, quando havia água para navegarem esses barcos. A primeira serenata que se fez (sic) foi com um grupo que havia na (Rua) Sofia, o Salsichon, em que eu tomava parte também na orquestra. Era só a orquestra, não se cantava. Fomos pelo rio acima, e tal, e chegamos a certo ponto, viemos pelo rio abaixo, a tocar (e tal, etc.), muitas palmas de um lado e doutro.
Passados oito dias, isto era quando existia a praia artificial, passados oito dias, fez-se uma serenata de Santa Clara: em que apresentava o barco pintado com o Convento Velho. Aí já metiam mulheres. Ensaiaram... e tal. Também tomei parte na orquestra, a tocar. Foi a segunda serenata.
E da nossa Alta que foi sempre caprichosa – a nossa Alta: vai-se fazer também uma serenata no Mondego! Ensaiou-se. A gente foi mais fina do que os outros. Porque a primeira serenata que se fez veio pelo meio do rio abaixo e as águas captavam a orquestra. Quando foi o segundo rancho de Santa Clara, também chegou a meio do rio e não se ouvia como devia ser. Disse: não!, a nossa serenata há-de-se ouvir (...). Ao fundo do Parque – e ainda existe essa rampa que vai ter ao rio - , o barco parou aí, entrou tudo (para dentro), e tínhamos então três mulheres já veteranas que cantavam muitíssimo bem.
E portanto, o barco saiu dali encostado ao Parque da Cidade. Quem estava no Parque da Cidade ouvia distintamente a serenata. E tivemos a sorte do vento estar pró lado de Santa Clara (...). Foi a serenata que mais brilho teve.” (termina o relato com uma interpretação da “Balada do Mondego”)

Na primeira década do século XX, as serenatas fluviais faziam furor na cidade de Coimbra, rivalizando entre si os ranchos de São João actuantes nos vários bairros (Romal, Pátio da Inquisição, Santa Clara, Rua Larga, Largo de São João de Almedina, Rua do Borralho) para apresentar as melhores novidades musicais, os mais excelentes instrumentistas e vozes. Cada rancho de bairro tinha os seus tocadores, cantores, compositores e ensaiadores, produzindo e estreando anualmente novidades que rapidamente se tradicionalizavam. Os defensores do folk-lore “puro”, isto é, supostamente rural, anónimo e multissecularmente imaculado, faziam vistas grossas a esta produção musical conimbricense, negando-lhe legitimidade “folclórica”. Para os anos de 1900-1907 podemos citar os seguintes títulos autografados num caderno de solfas manuscritas, interpretados no Largo do Romal, Praça Velha e serenatas fluviais, com indicação expressa de “acompanhamentos para guitarra”: O Raiar da Aurora (passe calle), Devaneios, Estrela do Romal, Que Saudade, Mondego, O São João Novo, e Marianinha.
À semelhança das serenatas italianas de Antigo Regime e do Romantismo, bem como da serenata organizada em 1880 pela Academia de Coimbra, aquando das festas comemorativas do Tricentenário de Camões, as serenatas fluviais futricas foram as primeiras a configurar um carácter de consistência e durabilidade, na sua vertente de serenatas-espectáculos, ritual onde não podemos deixar de descortinar influências das serenatas-espectáculo venezianas e napolitanas associadas ao elemento água, e ainda às tradicionais serenatas fluviais académicas celebrativas do fim do ano escolar (Medicina, Teologia, Direito).
Mas aquilo que se estava a fazer em Coimbra não era radicalmente diverso das aclamadas serenatas-espectáculo que então se realizavam anualmente na época estival na Baía de Nápoles. As serenatas fluviais futricas integradas nos programas festivos da Rainha Santa Isabel atingiram enorme reputação na cidade e fizeram nome pelo país, fruto dos milhares de peregrinos que de dois em dois anos acudiam a Coimbra. Tanto assim foi que as tricanas de Aveiro e as lavadeiras de Matosinhos/Leça da Palmeira também começaram a realizar serenatas no Rio Vouga e no Rio Leça. No último quartel do século XIX, a modernização do programa religioso das Festas da Agonia, em Viana do Castelo, comportou inclusão de regatas, festivais no jadim público e serenata (Cf. Albertino Marques, “A minhota trajada à vianesa: a construção histórica de um ícone da cultura popular”, in Cadernos do Noroeste. Série Sociologia, Universidade do Minho, Volume 18, 2002, pág. 134).
O agrupamento musical Salsichon, da Rua da Sofia, incluia instrumentos de corda e sopro e teria um perfil similar a outro que visualizamos numa fotografia antiga cedida pelo Dr. António Ralha[3]. A sua composição estaria muito próxima do Grupo Musical de Coimbra, trupe da regência do músico Ricardo Campos, que em 1913 dava serenatas instrumentais no Mondego e efectuava excursões fluviais dominicais entre Coimbra e Montemor-o-Velho (“Gazeta de Coimbra”, de 23/04/1913). Foi aliás um agrupamento deste género que pelas 22 horas de 4 de Junho de 1905 abrilhantou as festas da Queima das Fitas e Enterro do Grau – uma serenata fluvial em barcos iluminados e engalanados, com tocata e tricanas interpretando canções populares, oferta da classe comercial à Academia.
Qual o repertório das serenatas fluviais futricas? Confrontando os relatos de imprensa com um caderno de partituras manuscritas do Rancho do Romal, pode afirmar-se que os temas interpretados eram canções em voga nas Fogueiras de São João, valsas, mazurcas, barcarolas, contradanças, serenatas, baladas, passe-calles e marchas. Dos muitos espécimes recolhidos da tradição oral, ou editados em partituras, citemos: Não Ames, Ó Águia, Filha do Guadalquivir, Morena, Jovens Sereias, Noite de Primavera, Noite Serena, Despedida de Coimbra, Fado João de Deus, Balada da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1891-1892, Flores Tristes, Guitarra Geme, Fado de Condeixa, Fado Amoroso, Olhos Negros da Guiné, Às Estrelas, Fado do Rancho Alegre Mocidade (1907), Fado do Largo de São João de Almedina (1910), Barquinho Ligeiro, Balada de Coimbra, Barquinha Feiticeira, Balada do Mondego, Toutinegra, diversas marchas dos bairros e da Rainha Santa, Dá-me um Teu Beijo, Folguedos, Na Roda sem Par, Balada do Largo de São João de Almedina, O Beijo, etc..
Que instrumentos musicais eram mais utilizados? Essencialmente os cordofones que marcavam presença nas Fogueiras (violas toeiras, violões de cordas de aço, bandolins, cavaquinhos, rabecas, guitarras dos tipos Lisboa e Porto, por vezes o rabecão), instrumentos de sopro (flauta, clarinete), podendo ocorrer o pandeiro e os ferrinhos.
Na transição do século XIX para o século XX alguns dos instrumentos mais queridos da velha tradição popular estavam a desaparecer, face à consagrada hegemonia da guitarra. Era o caso da flauta travessa, do cavaquinho e da viola toeira. Alguns jornais regionais, com assento na cidade, não deixaram de constatar e de lamentar tal facto. Num breve artigo sobre as Fogueiras de Junho de 1902, realizadas no Pátio da Inquisição, Largo das Olarias, Montarroio, Couraça de Lisboa, Rua Larga, Largo do Teatro Sousa Bastos, Arregaça e Alto de Santa Clara, “O Tribuno Popular”, de 21 de Junho de 1902, criticava a rarefacção da viola de arame, e perante o desaparecimento do cavaquinho chegava ao ponto de escrever “cavaquinho é morto”[4].
Outra vertente das serenatas futricas, agora em versão exclusivamente masculina, eram as serenatas de rua ou cortejamento, realizadas entre finais do século XIX e a década de 1940. Dos vários nomes tombados no anonimato ficaram registados na memória oral:

-o tenor Basílio, ajudante de barbeiro
-o cantor Luís Mesquita, tipógrafo (o Basílio e o Mesquita eram também os cantores de serviço no Teatro dos Borras, à Rua da Sofia, no primeiro decénio do século XX);
-os irmãos Francisco, José e Alberto Caetano. Instrumentistas e cantores afamados nos meios futricas (Francisco era primeiro tenor, Alberto era bom barítono), gravaram vários discos na década de 1920, emprestando voz, guitarra, piano e alaúde a canções das Fogueiras e temas serenis como a curiosa Não Ames, cuja melodia originou uma valsa erradamente atribuída a Flávio Rodrigues da Silva (=Valsa em Fá Maior);
-Alexandre Louro (1899-1985), cantor de temas como Ó Águia, O Beijo, Balada de Coimbra e Noite Serena. Terá ficado célebre, de acordo com o relato familiar, numa festa dada no Casino do Estoril por alturas da celebração do Armistício/Tratado de Versalhes, em que foi acompanhado por Flávio Rodrigues da Silva;
-o Trio Coimbra, formado pelo barbeiro e guitarrista Flávio Rodrigues da Silva, Augusto da Silva Louro e José Maria dos Santos (por 1923), tendo dado espectáculos, serenatas, e gravados discos Odeon em Paris, a solo e com António Menano, tendo na aocasião Flávio interpretado variações e uma versão instrumental da Marcha da Rainha Santa;
-Walter Figueiredo, primeiro tenor, bom cantor de música popular e de temas de serenata, activo entre as décadas de 1940-1980. Walter Figueiredo, filho de Violanta Rodrigues e de Manuel Figueiredo, nasceu em Manaus (Brasil), no dia 27 de Fevereiro de 1920 e faleceu em Coimbra a 18 de Dezembro de 1990. Veio para Coimbra com três anos de idade e viveu a juventude na Figueira da Foz. Cumpriu quatro anos de serviço militar nos Açores, durante a Segunda Guerra Mundial. Fez o curso comercial e foi escrituário na Fábrica de Curtumes de Coimbra. Fez inúmeras serenatas na 2ª metade da década de 1940, altura em que divulgou os temas da autoria de João de Oliveira Anjo (Morena dos meus abrolhos, Ó madrugada silente, etc.). Comunista e opositor ao regime de Salazar, colaborou assiduamente em récitas populares e no Grupo de Cordas do Ateneu de Coimbra. Nos inícios da década de 1980 cantou regularmente ao lado de António Ralha, Jorge Gomes, Manuel Dourado e Jorge Cravo.
-José das Neves Elyseu, tocador de rabeca, músico, compositor de modas destinadas ao Rancho do Pátio da Inquisição, funcionário na Escola Agrária de Coimbra, falecido em Novembro de 1924. Participou activamente em serenatas dadas em Penacova, Bencanta e Mondego. Autor de várias peças popularizadas, entre elas Balada do Mondego (vulgo de Coimbra), Barquinho Ligeiro (1912), e Não Ames, a última feita em homenagem ao lugar de Bencanta onde estava instalada a Escola de Regentes Agrícolas;
-José Lopes da Fonseca (8/03/1883; 22/04/1976). Barbeiro, funcionário da Escola do Magistério Primário de Coimbra, serenateiro, ensaiador de teatro infantil, actor amador, notável executante de violão de cordas de aço. Entre os anos 30 e 40 acompanhou frequentemente Flávio Rodrigues. Republicano e anticlerical, formado na linha ideológica do operariado coimbrão onde haviam militado figuras de proa como Adelino Veiga e António Augusto Gonçalves. Grande animador das serenatas fluviais futricas, terminadas por 1936. Colaborou com o Rancho do Pátio da Inquisição e Rancho das Tricanas de Coimbra, tendo figurado nas recolhas sonoras concretizadas por Armando Leça em 1940, registos onde canta a solo seu filho Rui Fonseca.
-Augusto da Silva Louro (1902-1927). Funcionário dos correios da Alta e executante de violão. Acompanhou Flávio Rodrigues e com ele gravou discos;
-Carlos da Silva Moreira (dito “Rouxinol de Coimbra”, 25/11/1904; 19/05/1976). Alfaiate de profissão, cobrador e funcionário municipal, tenor aplaudido, serenateiro e intérprete de canções populares. Foi acompanhado regularmente por Flávio Rodrigues;
-António Barbosa, ourives de profissão, acompanhador de Flávio Rodrigues em violão;
-José Maria dos Santos, de alcunha “Rei-Preto”, jornalista, funcionário da Biblioteca da Universidade, cunhado e acompanhador de Flávio Rodrigues em violão (15-08-1906; 19-05-1976);
-João de Oliveira Anjo. Músico profissional do exército português, nasceu em Ilhavo em 14 de Maio de 1916, tendo vindo para Coimbra em 1938. Genro de José Elyseu. Autor de músicas popularizadas como Morena dos Meus Abrolhos (1944). Conviveu com Flávio Rodrigues, Zé Trego, Manuel Eliseu (compositor, filho de José Elyseu), e com o mandador Calmeirão. Tocou clarinete nas Fogueiras do Largo do Romal. Fez serenatas na década de 1940, sendo responsaável pela divulgação de uma peça de Eric Coats (Lagoa Adormecida).
-Joaquim Casimiro Pessoa, cantor e serenateiro, cunhado de José Elyseu. Terá sido este cantor a vocalizar a primeira versão da Balada do Mondego (vulgo de Coimbra), numa serenata realizada em Penacova no ano de 1898, com Jose Eliseu na rabeca e Henrique Martins de Carvalho no violão;
-Joaquim Duarte Ralha, guarda livros da casa Martas & Companhia, guitarrista popular de relevo. Nasceu em Coimbra no dia 25 de Abril de 1911 e faleceu nesta mesma cidade a 4 de Maio de 1988;
-Fernando Rodrigues da Silva (19-01-1915; 2-12-1964), irmão de Flávio Rodrigues, barbeiro, executante de violão de acompanhamento, ensinante de violão e guitarra;
-António Rodrigues da Silva (circa 1870-1918), barbeiro e guitarrista, pai dos irmãos Rodrigues, ensinante de guitarra em afinação natural;
-José de Sousa Lopes (14-07-1913; 14-01-1987), filho de José Trego, funcionário bancário, membro do naipe dos violinos da Tuna Académica, executante de violão[5], com incontáveis actuações em arraiais sanjoaninos e serões de trabalhadores da antiga FNAT.

II.1 - Reconstituições
Em finais da década de 1980, o Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra lograra recolher apreciável amostragem de espécimes tocados e cantados nas “esquecidas” serenatas fluviais futricas. Após uma série de ensaios preparatórios na sede provisória do Grupo, ao Colégio dos Grilos, foi levada a cabo uma primeira tentativa de reconstituição nos festejos da Rainha Santa, em Julho de 1990. Os elementos do Grupo atravessaram o rio numa barca, na direcção Choupalinho-Cais Velho, tendo realizado a serenata na rampa e escadarias do cais. A comissão de festas convidou o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra, constituído por João Moura (guitarra), José Santos (viola) e António Nogueira (voz) que nesse evento interpretou a vertente académica das serenatas.
Estava aberto o caminho para o aprofundamento e reflexão sobre a história das serenatas futricas, ao tempo veementemente negadas como possibilidade histórica por diversos relatos académicos oficiais e elementos activos da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. A imagem da Canção de Coimbra de “capa e guitarra”, vista rudimentarmente como um “Fado de Coimbra”, solidamente massificada e cristalizada até 1960 mantinha-se imutável. Nessa imposição arbitrária e distorcida, omitia-se qualquer alusão aos contributos de elementos da Sociedade Tradicional Futrica (apesar de estarem vivos descendentes que a qualquer momento poderiam prestar testemunho), e parava-se nos alvores de 1960 negando todo o Segundo Modernismo da CC construído por agentes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Eduardo Melo, Nuno Guimarães, Luiz Goes, João Bagão, António Andias e outros. E se é verdade que nos programas televisivos dedicados pela RTP à CC entre 1978 e meados da década de 1980 se foram incluindo amostras soltas de obras e agentes do Segundo Modernismo, o mesmo se não dirá da prática da CC por cultores futricas.
No primeiro semestre de 1991, elementos do agrupamento académico Tertúlia Praxis Dixit apresentaram à direcção do Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade um projecto de realização de uma serenata futrica na Alta, antecedido de debate. A ideia conheceu bom acolhimento. No dia 18 de Abril de 1991 teve lugar no Arquivo da UC um colóquio, onde foram intervenientes Manuel Louzã Henriques (“Canção de Coimbra: génese, evolução e confluência de culturas”), e António M. Nunes (“Canção de Coimbra: recolha, preservação e divulgação”, apresentando como bons exemplos as práticas de José Alberto Sardinha e Maria Antónia Esteves).
No dia seguinte, 19 de Abril, o Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade levou a cabo uma hipótese de reconstituição designada “Serenata à Primavera”, no adro e escadarias da Igreja do Salvador, junto ao Museu Machado de Castro. Percebeu-se de imediato que o grosso do público posicionado acima dos 50 anos de idade trauteava em surdina quase todos os temas apresentados (algumas das compisições apresentadas contavam mais de 100 anos de existência).
Foram interpretados os seguintes temas:

-Esta Calçadinha (fragmento musical utilizado como indicativo instrumental. Canção popular, recolhida em 1870, cuja letra alude ao Largo do Romal);
-Jovens Sereias (valsa utilizada nas serenatas fluviais da década de 1890);
-Ó Querida , Gosto de Ti (modinha do século XIX, recolhida em 1878);
-A Toutinegra (balada do último quartel do século XIX, influenciada pela opereta);
-Fado do Rancho Alegre Mocidade (da Rua Larga, cantado no São João de 1907, com música de João Pinto Magalhães e letra de Augusto Pinto);
-Noite Serena (serenata da década de 1850, com música de José Dória, quadras de Camilo Castelo Branco);
-Ó Águia (Fado da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1905-1906, música de António Dias da Costa e letra de Camilo Castelo Branco. Foi interpretado na récita de 1906 pelo cantor-guitarrista Custódio José Vieira, tendo grangeado invulgar sucesso em Coimbra e nos mais diversos pontos do país. Nas festas de São João de Junho de 1906 fez parte do elenco de peças cantadas e dançadas pelo rancho Alegre Mocidade da Rua Larga. O mesmo rancho voltou a interpretar Ó Águia nos festejos da Rainha Santa, em inícios de Julho de 1906, em cantorias na Praça da República e na serenata fluvial A única gravação de Ó águia, de que temos notícia, foi efectuada pelo tenor futrica Francisco Caetano em finais da década de 1920.
-Flores de Coimbra (canção de 1932, música de Ricardo Campos, letra de Abel Aguiar Otêda);
-Cruz de Cristo (letra e música de José Traqueia Bracourt. Composto entre 1922 e 1926, na sequência da viagem aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, conforme se pode deduzir pelo teor da letra. Não será posterior a 1926, uma vez que nas gravações discográficas de Maio de 1927 Artur Paredes já incorpora um breve fraseado musical deste espécime nas suas Variações em Lá Menor);
-Noite de Primavera (serenata recolhida em 1892, com música de Frederico de Silos e letra de Ernesto Rebelo);
-Balada do Mondego (música de José Elyseu, letra de Henrique Martins de Carvalho. Peça de 1898, popularizada pelo rancho do Pátio da Inquisição no São João de 1902 e serenata fluvial de Julho do mesmo ano).

O Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra passou a realizar anualmente serenatas futricas, sob a direcção artística do Doutor Nelson Borges, entre 1990 e 1993. A actividade prosseguiu ao longo dos anos noventa, tendo por cenário o Arco de Almedina. Parte do repertório da serenata futrica do Grupo da Casa do Pessoal da Universidade veio a ser divulgado no CD “Flores de Coimbra”, Coimbra, AGITARTE, AGT 00399, ano de 1999 (Flores de Coimbra, Fado do Rancho Alegre Mocidade, Noite de Primavera, Sonhos Dourados, Despedida de Coimbra, Fado das Pedras, Oh querida eu gosto de ti).
Em 1994, o Doutor Nelson Borges fundou e passou a orientar o Grupo Folclórico de Coimbra, colectividade que manteve no seu projecto de realizações culturais uma serenata futrica anual nas escadarias da Igreja de São Tiago (Praça Velha). A título de exemplificação, foram interpretados na serenata de Junho de 2000 os seguintes temas: Ó Águia, Fado do Rancho Alegre Mocidade do Pavilhão da Rua Larga, Marcha das Rosas (música de José Eliseu, letra de Octaviano de Sá, 1907), Flores de Coimbra (música de Ricardo Campos, letra de Abel Aguiar Otêda, 1932), Flores Tristes (de José Delgado, século XIX), Às Estrelas (fado corrido), Filha do Gualdalquivir (música de Adelino Veiga, letra de Sousa Viterbo e Adelino Veiga, 1884), Fado do Largo de São João de Almedina (=Fado das Lapas, música de Francisco Menano, letra de Gustaf Adolf Bergstrom, 1910), Morena (música de Saldanha Júnior, letra de Henrique Martins de Carvalho, 1902), Não me deixe Meu Amor (canção recolhida da tradição oral), Tricana d’Aldeia (canção popular de inícios do século XIX, utilizada como indicativo), Noite de Primavera, Despedida de Coimbra (autoria anónima, recolhida em 1892).
Relativamente à Serenata Popular das Tricanas e dos Futricas, realizada pelo Grupo Folclórico de Coimbra nas escadarias da Igreja de São Tiago, na noite de 1 de Junho de 2001, pelas 23 horas, o programa oficial anunciava:

1 – Tricana d’Aldeia: indicativo instrumental, baseado numa canção popular da primeira metade do século XIX, muito em voga em Coimbra, Ponta Delgada e Vila Real;
2 – Marcha das Rosas: música de José das Neves Eliseu, letra de Octaviano de Sá, datada de 1907;
3 – Fado do Rancho Alegre Mocidade: música de João Pinto Magalhães, letra de Augusto Pinto, datado de 1907;
4 – Noite de Primavera: ária serenil, com música de Frederico de Silos, letra de Ernesto Rebelo, anterior a 1892;
5 – Fado do Largo de São João de Almedina: música de Francisco Paulo Menano, letra de Gustaf Adolf Bergstrom, datado de 1910. Trata-se da mesma melodia que António Menano viria a gravar na década de 1920, pese embora alterando o título original para Fado das Fogueiras, suprimindo o estribilho e introduzindo uma letra completamente diferente, da autoria do poeta Augusto Gil (Lisboa, 1928, Odeon 50.800 xxOg 674). Em recolhas de Costa Pinheiro e Carlos Caiado o título é Fado das Lapas. Augusto Camacho Vieira também gravou esta serenata em 1961 com António Brojo/Francisco Menano/Fernando Alvim. Por estranho que possa parecer o Dr. Francisco Menano aceitou sem reservas a letra de Augusto Gil;
6 – Sonhos Dourados: balada popularizada, música de José das Neves Elyseu, letra de Henrique Martins de Carvalho, datada de 1903. Na década de 1980 ainda era cantada por Walter Figueiredo (base da gravação instrumental de Artur Paredes conhecida por Balada do Mondego);
7 – Cruz de Cristo: canção popularizada, música e letra de José Traqueia Bracourt. O poema é uma homenagem a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, cerca de 1922-1926;
8 – Às Estrelas: fado corrido popularizado;
9 – Marzurca Espanhola: instrumental popular, datável de finais do século XIX;
10 – Fado do Rancho Esperança: música do estudante Isidro Aranha, letra de João de Deus Ramos (Filho), datado de 1909;
11 – Barquinha Feiticeira: serenata popularizada, com música e letra de autor desconhecido, recolhida em 1898. Divulgada nas Ilhas do Pico e Faial, Pedras Salgadas (Chaves), Póvoa do Varzim e Coimbra;
12 – Ó Águia: fado da despedida do 5º ano jurídico de 1905-1906, estreado no Teatro Avenida em 1906. Música de António Dias da Costa, letra de Camilo Castelo Branco. Popularizado em Coimbra pelo Dr. Custódio José Vieira e pelo Rancho Alegre Mocidade da Rua Larga;
13 – Malmequer: canção popularizada, música de Lamartine Tito, letra de Octaviano de Sá, datada de 1907;
14 – Fado de Condeixa: música de Francisco Lopes Lima de Macedo Júnior, letra de Ernesto Donato, datado de 1907;
15 – A Madrugada: marcha popularizada, música de Francisco Costa, letra de P. P., datada de 1904.

A 7 de Junho de 2002, também nas escadas da Igreja de São Tiago, teve lugar a Serenata de Homenagem a José Elyseu (1872-1924). O repertório expressamente recolhido e ensaiado pelo Grupo Folclórico de Coimbra com vista à celebração do primeiro centenário da estreia oficial da Balada do Mondego (Já branca lua alveja a terra) anunciava:
1 – Balada do Mondego: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1902;
2 – Marcha das Rosas: música de José das Neves Eyseu, versos de Octaviano de Sá, 1907;
3 – Canção do Mondego: música de José das Neves Elyseu, versos de Augusto Pinto, 1907;
4 – Trigueiras da Beira Mar: música de José das Neves Elyseu, versos de Octaviano de Sá, 1907;
5 – Fado do Rancho Alegre Mocidade: música de João Pinto Magalhães, versos de Augusto Pinto, 1907;
6 – Beijo: música de José das Neves Elyseu, versos de Davim, 1901;
7 – Coimbra a Lisboa: música de José das Neves Elisey, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1904 (conhecido como Chegam-se as Festas);
8 – Jóia Querida: música de José das Neves Elyseu, versos de Horácio Poiares, 1904;
9 – Balada de Coimbra: música de José das Neves Elyseu, versos de Tito Bettencourt, 1916;
10 – Sonhos Dourados: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1903;
11 – Ó Águia: música de António Dias da Costa, versos de Camilo Castelo Branco, 1906;
12 – Não Ames: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro e Henrique Martins de Carvalho, 1903;
13 – Marcha Popular: música de Ricardo Campos, versos de Alfredo Fernandes Martins, 1907(?);
14 – Chora a Cantar: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1903;
15 – Barquinho Ligeiro: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho e Antero de Quental, 1912;
16 – O teu Olhar: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1907;
17 – Guitarra Geme: música de José das Neves Elyseu, versos de Henrique Martins de Carvalho, 1919;
18 – Marcha do Rancho Flor da Mocidade: música de José das Neves Elyseu, versos de Mário Monteiro, 1902;
19 – Balada de Coimbra (versão instrumental): música de José das Neves Elyseu com adaptação de Artur Paredes.

II.2 - Tipologia das serenatas coimbrãs
O ritual de serenata conheceu em Coimbra diferentes públicos, cultores e apreciadores. A sua prática militante ocorreu no interior da Sociedade Tradicional Futrica e na Sociedade Tradicional Académica. Sem prejuízo de outras classificações, ou mesmo de eventuais correcções, reproduzimos uma grelha tipológica elaborada em 1989 (“Serenatas Coimbrãs”, in Diário de Coimbra, de 18 de Novembro de 1989), cuja estrutura entendemos operacional.

Serenatas Futricas
-Serenatas de cortejamento (ditas de rua): com propósitos amorosos. Ritual masculino, integrando cantores e tocata reduzida, registado documentalmente na Alta pelo menos desde a 2ª metade do século XIX, com ocorrências na Baixa. Prolongou-se até à década de 1940. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, guitarra, rabeca, bandolim, cavaquinho. Vozes masculinas de tenor e de barítono. Vestuário civil em voga na época.
-Serenatas fluviais: com propósitos, lúdicos, festivos e de homenagem (Rainha Santa Isabel, Casa Real, Academia). Ritual misto, tendo por cenário o rio Mondego, integrando cantadeiras, cantores e tocata completa. Ocorreu entre 1892 e meados da década de 1930. Vestuário masculino e feminino civil dito “domingueiro”.

Serenatas Académicas
-Serenatas de Ano Novo: com fins lúdicos, ocorreram entre a 2ª metade do século XVIII e a década de 1850, incluindo cantorias nas ruas e tabernas da Alta após o jantar, cortejo cantante até ao Penendo da Saudade, piquenique e alvorada. Instrumentos em voga como a viola de arame, a guitarra inglesa, o bandodim, o violão de seis ordens, o cavaquinho e flauta travessa. Vozes masculinas. Uso do uniforme académico de época.
-Serenatas Fluviais de Quintanistas: celebrativas da conclusão dos cursos de Medicina, Teologia, Direito e Filosofia. Mencionadas entre 1850 e 1900, embora possam ser anteriores. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, rabeca, rabecão, bandolim, bandola, cavaquinho, pandeiro. Uniforme estudantil de época. Iluminações com archotes, balões e lanternas.
-Serenatas de Homenagem a grandes figuras: ritual pouco frequente, registado em 27 de Abril de 1862 (António Feliciano de Castilho, Coimbra), 8 de Junho de 1880 e 5 de Maio de 1881 (Luís de Camões, Coimbra), 1904 e 19 de Fevereiro de 1940 (actriz Adelina Abranches, Coimbra), 17 de Março de 1962 (Embaixador de Inglaterra, Coimbra), 4 de Junho de 1964 (Augusto Hilário, Coimbra), 6 de Maio de 1964 (Augusto Hilário, Viseu), 1968 (Cirurgião Christian Barnard, Coimbra), 26 de Julho de 1970 (Lucas Junot, Coimbra), 1970 (Papa Paulo VI, Castel Gondolfo), 30 de Junho de 1979 (Augusto Hilário, Viseu), 8 de Maio de 1999 (Edmundo de Bettencourt, Funchal).
-Serenatas Estudantinas: ritual com propósitos amorosos, vozes e tocata de tipo tuna. Também designadas por bandolinatas. Registadas documentalmente para o período balizado entre 1840 e 1890. Encontram-se mais próximas das suas congéneres espanholas, de raízes medievais (rondas), e das serenatas rurais e urbanas portuguesas provinciais.
-Serenatas de Cortejamento: configuram a tipologia mais frequente (serenata de rua), da qual veio a resultar a imagem cristalizada da Canção de Coimbra, sendo manifestas as confusões entre a parte e o todo. Serenata munida de cantores e instrumentistas, usualmente realizada debaixo de uma janela. Na sua fase mais recuada era um desfile (o “passar da serenata”), com lanternas ou archotes, a formação em andamento lento, os tocadores com os instrumentos presos aos ombros por cordéis. Instrumentos: flauta travessa, violão, viola toeira, guitarra, bandolim, rabeca, ferrinhos, cavaquinho. Na sua cristalização derradeira, esta tipologia impôs o violão de acompanhamento e a Guitarra de Coimbra, com a formaçã de capas traçadas.
-Serenatas Monumentais: ritual de tipo festivo, ou espectáculo, vulgarizado a partir de 1945, nas escadarias do pórtico principal da Sé Velha, enquanto momento marcante da abertura da festa da Queima das Fitas. Tem sido aplicado a outros eventos celebrativos e festivos (1º Centenário da AAC, 1987; 7º Centenário da Fundação da Universidade, 1990; Festa das Latas e Imposição de Insígnias, etc..). Prática transladada para a Universidade do Porto na década de 1950, passou a figurar na maioria das festas de ensino superior, um pouco por todo o Portugal continental e insular, a partir da década de meados da 1980.
-Serenatas Satíricas: ritual antigo, caído em desuso por volta de 1900. Alicerçado em descantes satíricos, berros, apupos, assuadas a lentes. Praticado na década de 1850 por João de Deus. Na década de 1860, o Mata Carochas (Antão de Vasconcelos), um açoriano e um Paulo, oriundo da Madeira, o Gusmão (flauta), organizavam as “impagáveis serenatas”. O estudante açoriano imitava um leque assinalável de “vozes de animais”, além dos sons do cavaquinho. O madeirense imitava o trombone. O grupo actuava entre a Alta e o Penedo da Saudade, parando no alto do arruinado castelo para experimentar toda a sorte de ecos, gritos, assobios, inflamadas declamações camonianas e de outros poetas. Na esquina do Colégio de São Bento retomavam-se os ecos e gritos, cantado-se o parodial D. Sancho[6]. Cerca de 1900, D. Tomáz de Noronha (versos), Pad Zé (música) e outros estudantes residentes na Ladeira do Seminário atormentaram o Doutor Mota, lente de Medicina com berreiros e chacotas à pecha historiográfica do docente: “Doutor Mota! Doutor Mota! Quando foi Aljubarrota? E de quem foi a derrota?”[7]

II.3 – Tipologia de Instrumentais
As peças instrumentais coimbrãs são vulgarmente denominadas por “guitarradas”, termo que não traduz de forma clara e rigorosa a multiplicidade dos desempenhos concretizados pelos instrumentistas activos na cidade de Coimbra entre a 2ª metade do século XVIII e a transição para o século XX. Procurando efectuar breve périplo às situações detectadas ao longo do século XIX, temos:

-instrumentais com tocata tradicional completa: incluíam peças instrumentais propriamente ditas e variações sobre melodias cantáveis, de que são exemplos valsas, polcas, contradanças, mazurcas, marchas, lunduns, Tricana d’Aldeia, Esta Calçadinha, Filha do Guadalquivir. Saliente-se a presença de instrumentos como violas toeiras, guitarras, violões, rabecas, cavaquinhos, flautas, rabecões, ferrinhos, pandeiro, bandolins, em acentuada diversidade de prestações e de timbres. Uma das características destes instrumentais residia na média e longa duração das execuções ao vivo que chegavam a durar 10, 15, 30 ou mais minutos em actuações directas.
-instrumentais de tipo estudantina/tuna: alicerçados sobre peças de tipo valsa, polca, tango, jota, passe-calle, marcha, mazurca, melodias populares, com emprego predominante de bandolins. Também denominados mandolinatas e estudantinas. Tiveram o seu período áureo no século XIX.
-instrumentais em que os elementos predominantes eram as violas toeiras, o violão e a rabeca. Incidiam sobre canções populares, minuetos, lunduns, quadrilhas, valsas, tangos, marchas, polcas, serenatas, fados, trechos de música clássica.
-instrumentais em que os elementos predominantes eram guitarras. Incidiam sobre serenatas, temas populares, fados, baladas, barcarolas, valsas, tangos, jotas, contradanças, marchas, variações sobre determinados tons em maior e menor. De todas as modalidades descritas, esta foi a se tornou mais conhecida (guitarradas) e logrou impôr-se às sensibilidades e outivas. Mas, não obstante o triunfo da guitarrada desde o último quartel do século XIX (com lamentável omissão dos solos na Viola Toeira e até na viola de acompanhamento, sendo que para a última apenas se conhecem incursões de Rui Pato), quando se trata de procurar uma tentativa de caracterização deste género artístico nos dicionários, do que se fala , só e sempre, é de canções musicais estróficas anteriores ao Segundo Modernismo.
NOTAS
[1] Testemunho oral prestado por Maria José Sousa Lopes Morais, filha de José Lopes da Fonseca, em 30 de Junho de 2001.
[2] Siga-se a crónica de Domingos Guimarães, “Festas da Rainha Santa”, in Branco e Negro, nº 15, de 12 de Julho de 1896, pág. 9, com fotografia da imagem. A escultura de Teixeira Lopes foi pintada pelo técnico Arnaldo Barbosa.
[3] Grupo activo em Coimbra na década de 1930, com sede nas traseiras da Tasca do Zé das Salsichas, onde postriormente se edificou a Caixa Geral de Depósitos. Incluía executantes de bandolins, clarinete, banjo e violões (Zé Trego, José Caetano), e actuava em festas populares de Coimbra e concelhos vizinhos. Este elementos foram reconfirmados em Maio de 2003 por José António Caetano, filho do cantor Francisco Caetano, e sobrinho do tocador José Caetano. A referida serenata fluvial do Grupo Salsichon ficou famosa na memória oral dado que no momento do desembarque dos tocadores José Caetano caiu desamparado ao Mondego tendo levantado acima da cabeça o seu famoso violão com 3 bordões extra-caixa de ressonância.
[4] A crítica de 1902 é suave e amena, quando comparada com o violento ataque estampado no artigo “Fogueiras”, do “Diário de Notícias”, de 3 de Julho de 1924. Neste último, o signatário deprecia a transformação das antigas danças de terreiro em ranchos ensaiados à porta fechada que, pelo São João, se exibiam em pavilhões de madeira. A crítica estava longe de constituir novidade, pois remontava à década de 1870 e aos tempos em que Adelino Veiga ensaiara o Rancho do Largo do Romal. Mas o articulista ia mais longe. Apostrofando a actuação de um rancho infantil, activo na Baixa, que nas festas de 1923 se munira com um “piano”, arremetia contra “violinos, flautas, rabecões e outros instrumentos de orquestra”. Este relato foi transladado por José Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”, Volume VIII, Lisboa, INCM, 1982, pág. 383, e aparece retomado por José Alberto Sardinha, “Viola Campaniça. O outro Alentejo”, Vila Verde, Tradisom, 2001, pág. 75. Conforme tive o ensejo de anotar em carta ao Dr. José Alberto Sardinha, o relato de 3/07/1924, na sua ânsia de denunciar os “atropelos” à tradição, omite que os “instrumentos de orquestra” citados já eram recorrentemente utilizados nas serenatas e Fogueiras da segunda medade do século XIX (excepção feita ao piano).
[5] Para uma primeira tentativa de identificação de cultores futricas da Canção de Coimbra cotejem-se os dados presentes no catálogo "Centenário do nascimento do guitarrista Flávio Rodrigues da Silva (1902-2002)", Coimbra, Edição da Câmara Municipal de Coimbra, 2002. O levantamento biográfico e fotográfico em questão fica a dever quase tudo a Carlos Alberto Dias, membro da formação informal Os Salatinas.
[6] Henrique Antão de Vascocelos, "Memórias do Mata Carochas", Porto, Empreza Litteraria e Typographica Editora, s/d., págs. 338-339.
[7] D. Tomáz de Noronha, "De capa e batina. O Pad Zé. Ditos e partidas do grande boémio", Lisboa, J. Rodrigues & Companhia, 1928, págs. 116-117.


Digressão ao Japão, no último mês de Novembro. Notícia do Diário de Coimbra de hoje. Posted by Picasa

Comentário de ALCH

Algumas notas sobre o «Post» de João Caramalho e a resposta de António M. Nunes:
1) Escreveu António Nunes: «As comunidades de cultores e de consumidores da Canção de Coimbra das duas cidades (Coimbra e Porto) não se pautam propriamente por amistoso convívio», abonando-se no período subsequente em textos que fui deixando neste blog. Ora a verdade é que eu escrevi sobre os anos 40 e subsequentes (antes e depois das interrupções post-1969 em Coimbra e post-1971 no Porto). É um facto que muitos cantores e executantes que também passaram pelo Porto propendem a omiti-lo das ss. biografias... Dúvidas ? Consulte-se o vol. II de "Um século de Fado. Fado de Coimbra" de José Niza, Alfragide, ediclube, 1999 (e António Nunes também refere alguns nomes que exemplificam o que deixo escrito). Quer-me parecer que na década de 20 as coisas, propendendo já para isso, não estariam ainda na 'crispação' que depois tendeu a instalar-se. Mas é assunto que requer indagação, ainda que não venha por certo a ser fácil o encontro de dados com abundância.
2) Amândio Marques: conheci-o pessoalmente, como advogado, presidente da Casa da Beira Alta (por longos anos) e guitarrista (em finais dos anos 70, quando o também advogado e outrossim guitarrista Eduardo Teixeira Portela o convenceu a relembrar peças que criara e tocara). Conheço também gravações suas em 78 RPM (particularmente interessantes umas "Variações em ré m"). Nada sei sobre eventuais estudos na 1.ª Fac. Letras/UP. Em Coimbra ter-se-á licenciado porventura um pouco depois da data apontada (1928). Porque opino assim ? É que recordo uma conversa havida por volta de 1977, em que Amândio Marques evocou um episódio ocorrido no ano lectivo de 1927/28, sendo ele aluno de Salazar e sendo ministro da Justiça (desde o 28 de Maio) o também lente de Direito da UC Manuel Rodrigues. Como é sabido, em Abr.28, com a constituição do Executivo Vicente de Freitas, vai Salazar para as Finanças e sai Manuel Rodrigues da Justiça (a que regressará, já com Salazar na Presidência do Ministério, depois Presidência do Conselho de Ministros, no período 1932-1940). Ora Salazar regia "Economia Política" (2.º ano) e "Finanças" (3.º); a menos que se desse alguma situação de 'repetência' - que não me parece provável - Amândio Marques não seria portanto um finalista em 1928. Mas a consulta dos "Anuários" da UC poderá esclarecer a questão.
3) António Nunes refere «o guitarrista Paupério». Tratar-se-á de Lauro de Oliveira (m. 1970), estudante do então Instituto Industrial do Porto, depois casado com uma Senhora (algo matriarcal...) de apelido Paupério e pai do ainda meu contemporâneo no OUP Lauro Mário Paupério de Oliveira (1946-1986; mais conhecido como "Paupério" do que como "Oliveira") ? Lauro de Oliveira tocou (e gravou) com o já aqui mencionado Alexandre Brandão (1909-2004), e manteve em sua casa uma tertúlia até muito pouco tempo antes de nos deixar. Legou-nos temas vocais originais (com interesse) e um arranjo (que não desmerece) para «Estrelinha do Norte».
4) João Caramalho refere a «mobilidade dos estudantes nos inícios do século XX». É bem verdade. Por alguma razão o lente de Medicina Legal (e Reitor da UC em 1926-1927) Fernando Duarte Silva de Almeida Ribeiro (1881-1956) pôde referir «A frequência da vinda de Lisboa e do Porto para Coimbra ou a Coimbra, de estudantes peripatéticos, a que chamam 'paraquedistas' em linguagem académica...», e mais adiante: «Esses estudantes, que procuram, com as suas deslocações, os pontos de menor pressão, além da dita utilidade têm a de fornecer uma demonstração nova do cabimento daquele prolóquio velho: "As viagens 'formam' a juventude"» (Fernando de Almeida RIBEIRO, «Doutoramentos em Coimbra: impugnação de cinco teses», Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1951, p. 30).
Com um grande abraço
Armando Luís de Carvalho Homem

A Canção de Coimbra no século XIX (1840-1900)
(A memória e os sons)
Por António M. Nunes
I. Serenatas
O objectivo que orientou a elaboração da segunda parte deste trabalho teve como escopo proceder ao levantamento de informações alusivas à realização de rituais de serenata e, mais latamente, daquilo que designamos por Canção de Coimbra, com a correlativa individualização de protagonistas, emprego diversificado de instrumetos musicais, gostos de época e repertórios mais praticados. Serviram tal desiderato os livros de memórias assinados por antigos académicos, relatos jornalísticos, roteiros de viajantes, cancioneiros impressos, solfas avulsas manuscritas e, a partir da década de 1840, a imprensa regional periódica centrada em "O Conimbricense", "O Tribuno Popular" e o "Correspondência de Coimbra".

As recensões ao vocábulo serenata nos dicionários e enciclopédias portuguesas são manifestamente pobres e insatisfatórias, sobretudo quando se cura de historiar diacronicamente o fenómeno português.
O “New Grove Dictionary of Music & Musicians”, reeditado em 1980, faculta-nos a possibilidade de mergulhar aprofundadamente nos percursos dos rituais de serenata[1] na Europa.
A palavra latina “serenus” divulgou-se nos países europeus a partir do século XVI: serenata em italiano e português, “sérénade” em francês, “serenade” ou “standchen” em alemão, “serenado” em castelhano. Em certos contextos provinciais portugueses detectamos ainda vocábulos como “ronda” (Lisboa e Estremadura), “serenata dos noivos” (várias províncias), “velada” (serenata fluvial em Coimbra), "violadas"(Beira Baixa), e "fadadas" (região do Marão).
A representação mental da serenata em Portugal foi reduzida à serenata estudantil coimbrã de cortejamento no período do Estado Novo. Para a cristalização deste poderoso "cliché" contribuíram nas décadas de 1940-1950 as transmissões radiofónicas operadas pela Emissora Nacional e, no período 1959-1974, as “serenatas” de figurino conimbricense académico divulgadas pela RTP. Não menos importante, o modelo de serenata habitualmente “autorizado” pelo SNI de António Ferro, incluso nos roteiros turísticos bilingues e trilingues, bem como nos serões culturais de trabalhadores da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho) era apenas o conimbricense de “capa e guitarra”.
Estamos confrontados com uma tirânica e desfiguradora imagem daquilo que foi a diversidade provincial das serenatas urbanas e rurais realizadas em Portugal até finais da década de 1950. O ritual da serenata é anterior ao século XVI. O livro de Gerard Leeu, intitulado “L’Histoire du tresvaillandt chevalier Paris et de la belle Vienne”, datado de 1487, inclui em iluminura uma serenade, onde dois homens tangem instrumentos debaixo de uma janela aonde assoma um rosto feminino[2]. O poeta Sebastian Brant, na obra satírica “A Nave dos Loucos” ("Das Narrenschiff"), datada de 1494, também dedicou alguns versos à descrição de uma serenata. A pormenorização autoriada por Brant aproxima-se de outra elaborada pelo dramaturgo Shakespeare no seu “Two Gentlemen of Verona”, a propósito da deixa de Proteus:

“Visit by night your lady’s chamber window/With some sweet concert: to their instruments/Tune a deploring dump”.

Podemos intentar definir a serenata como um ritual masculino nocturno, lúdico e de cortejamento amoroso, urbano e rural, registado na Europa e em alguns países da América Latina como o México e o Brasil. Os praticantes recorriam a instrumentos variados, com predomínio de cordofones. O reportório era diversificado e eclético. Múltiplas intenções se divisavam, percorrendo os campos do cortejar, da homenagem a noivos, do simples divertimento, até às actividades festivas. Nem sempre ocorria a palavra serenata, podendo os actores exprimir-se através de designações caídas em desuso, que podiam ser rondas, serenins, tocatas, bandolinatas, estudantinas, veladas, nocturnos, violadas e fadadas (Marão).
A serenata era tanto um ritual ou divertimento nocturno, realizada na rua ou debaixo de uma janela, por elementos masculinos apostados em cortejar donzelas, quanto uma forma musical destinada ao canto ou a execução meramente instrumental. O duplo sentido do vocábulo (fazer uma serenata; interpretar um trecho musical afim do ritual da serenata) já nos aparece plenamente definido em 1723, data em que Walther publicou a obra “Musicalisches Lexicon”.
Relativamente ao caso italiano, a serenata nocturna fluvial acha-se documentada para os finais do século XVI e inícios do século XVII, a propósito das cantorias que os gondoleiros venezianos entoavam no percurso dos canais, sendo igualmente comuns em Génova e Roma. Por seu turno, Praetorius, num passo intitulado “Von den Gesangen Welche in Grassaten und Mummerien gebraucht werden: als Giustiniani, Serenata und Balletti” (“Syntagma Musicum”, 1618), informa-nos que as serenatas eram cultivadas pelos estudantes universitários que, circulando pelas ruas à noite, entoavam peças musicais constituídas por três ou mais partes, para deleite das donzelas.
Na prática quotidiana, muitas canções populares ou popularizadas eram adoptadas pelos cultores de serenatas, a exemplo dos “Canti Carnascialeschi” (canções carnavalescas), usadas na Florença do século XVI. O pendor satírico de certas canções utilizadas para realizar serenatas em Itália talvez possa servir de instrumento comparativo para o caso português, tomando como exemplo as peças “Já não podeis ser contentes”, de manifesta crítica à conduta do Cardeal D. Henrique, e a “Flor da Murta”, na qual se aludia aos amores adúlteros de D. João V. E se o “Já não podeis ser contentes” não passa de mera conjectura quanto à probabilidade de ter sido interpretado pelos estudantes de Coimbra, tal se não dirá de “Flor da Murta”, melodia setecentista presente no cancioneiro da cidade mondeguina.
Não dispomos de sólida informação sobre a forma musical dos espécimes a que na segunda metade do século XVI os enamorados italianos chamavam serenatas. O termo seria aplicável a diversas composições polifónicas, particularmente o Madrigal, a Villanella e a satírica Villotta. O italiano Alessandro Stiggio, num livro publicado em 1560 com o título “L’aria s’oscura e di minute stelle”, associa a serenata ao madrigal. Mais ou menos pela mesma época (1575), o músico Antonio Pace incluiu nos seus madrigais uma serenata instrumental (“Hor che le negre piume”), cujas palavras iniciais lembram o soneto de Petrarca “Hor che’l ciel e la terra e’l vento tace”.
Nos séculos XVII e XVIII os espécimes italianos de serenata conheceram a forma de cantatas, prolixamente usadas pela fidalguia frequentadora das cortes, ocasiões festivas, reconciliação de chefes de Estado, entradas solenes e festas de homenagem a embaixadores. Não raro aparecem designadas por “componimento musicale”, “favoletta drammatica”, “aplauso genetliaco”, “festeggio armonico”, etc.. A serenata de corte, à italiana, visando celebrar eventos festivos ou homenagear grandes figuras, foi cultivada na corte portuguesa de D. João V e em Espanha. Este assunto ainda não mereceu uma pesquisa aturada, mas não será inócuo salientar o papel desempenhado por certas famílias aristocratas ibéricas nos contactos estabelecidos com os diplomatas radicados em Roma.
A serenata suscitou o interesse dos compositores eruditos da época barroca, em Itália, Áustria e Alemanha. Tomando como ponto de referência a obra de Mozart, uma serenata durava aproximadamente nove minutos, enquanto peças similares designadas nocturnos podiam atingir cerca de onze minutos de duração. Mozart cultivou árias serenis em “Die Entfuhrung aus dem Serail” e em “Don Gionvani”, tal como Rossini (“O Barbeiro de Sevilha”), Donizetti (“Don Pasquale”), Albert (“Tiefland”), Scarlatti (cerca de 25 serenatas, entre elas “Erminia”, “Polidoro”, “Tancredi” e “Pastore”). A serenata conhecia assim os seus dias de glória no período áureo dos compositores clássicos, integrada em óperas e peças destinadas a orquestra de câmara, a exemplo de Aspelmayr, Boccherini, Dittersdorf, Haydn, Pichl, Punto e Toeschi.
As serenatas mozartianas tornaram-se modelares com a sua estrutura de sonata-allegro, dois momentos lentos alternando com dois a três minuetos, e fechando com um “presto” ou um “allegro molto”. Tanto Mozart como Haydn apostaram na construção de serenatas com inclusão de dois momentos de concerto, um de execução rápida, outro de andamento lento, conferindo proeminência aos trechos instrumentais solados antes da passagem ao minueto seguinte. Na transição para o século XIX, os grandes compositores não olvidaram a serenata. Ela emitiu sinais de vida nas obras de Beethoven (serenata para flauta, violino e viola), Hummel, Kreutzer, Shubert, Brahms’s, Dvorák, Sibelius, entre outros, embora diluída na sinfonia.

A ocorrência do ritual de serenata em Espanha não tem merecido o interesse dos investigadores. A Enciclopedia Universal Ilustrada, Tomo 55, Madrid/Barcelona, Espasa/Calpe, 1927, páginas 479-480, limita-se a invocar a origem italiana do ritual, frisando, no entanto, a disseminação das serenatas por toda a Europa, e o predomínio do emprego de cordofones. O articulista não exemplifica o caso espanhol. No artigo em apreço, procede-se a uma tentativa de tipificação das serenatas, respectivamente Serenata de Rua, Serenata de Salão, Serenata Vocal e Serenata Instrumental.
Não deixa de causar estranheza a pobreza da recensão enciclopédica espanhola de 1927, se tomarmos em linha de conta a multissecular prática de serenatas estudantinas associadas às tunas académicas. De acordo com o investigador de costumes académicos salmantinos, Roberto Martínez del Rio, a serenata amorosa tuna, ou ronda, remonta à Idade Média[3]. Miguel de Cervantes, na obra “La Tía Fingida” (in “Novelas Ejemplares”, II, Madrid, 1975, pág. 299), frisa que a serenata amorosa era uma das primeiras provas de fogo exigidas aos estudantes pobres, pois se achavam impossibilitados de presentear mulheres com objectos caros.
As serenatas estudantinas não tinham unicamente fins de sedução amorosa, servindo frequentemente para homenagear individualidades e instituições. Suprimido o foro privativo salmantino e a obrigatoriedade do antigo uniforme em 1834, a ancestral tradição tunesca desagregou-se. Pela década de 1850, os estudantes de Salamanca procederam à recuperação das tunas (estudantinas de carnaval), e com elas regressaram a animação musical de rua, os bailes, as deambulações e as serenatas. De formação espontânea e destituídas de carácter duradouro, as multitudinárias estudantinas que pulularam em Salamanca ao longo do século XIX apresentam traços comuns com agrupamentos detectados em Coimbra entre o século XVIII e 1890 bem como na Universidade de Santiago de Compostela.
A imprensa periódica coimbrã não recenseia notícias relativas as serenatas realizadas em Espanha. Apenas alude a uma serenata académica dada em homenagem ao reitor da Universidade de Madrid, em Abril de 1865, na sequência da demissão do mesmo reitor.
O ritual de serenata persistiu no México até ao século XX, país onde se manteve a tradição de contratar instrumentistas e cantores profissionais. “Ya me voy para el Laredo” é uma das canções de serenata mexicanas mais conhecidas internacionalmente. Mais a sul, no Brasil, ficou registada a prática de serenatas populares. Os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo (fundada em 1827) também foram cultores de serenatas[4], tendo como menu modinhas e lunduns.
Relativamente a Portugal, os estudos sobre os rituais de serenata realizados até finais do século XX eram raros e muito parcelares. Frederico de Freitas, em "Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura", Tomo 16, Lisboa, Verbo, 1994, páginas 1803-1805, pouco ou nada esclarece em termos de leitura diacrónica, ocorrências regionais, instrumentos musiciais e repertórios. Segundo Frederico de Freitas, a nobreza lisboeta do século XVIII incluia nas suas diversões serenatas (serenins). O autor invoca, com propósitos ilustrativos, uma memória do Marquês de Resende (“Descrição do Palácio de Queluz”), onde se fala de serenatas e da existência de uma pintura alusiva a serenatas no tecto do Palácio de Queluz.
A serenata integrava os divertimentos barrocos da alta sociedade setecentista portuguesa, enriquecendo programas onde constavam iluminação, fogo de artifício, repiques de sinos, touradas, outeiros, teatro e salvas de artilharia. Ao longo da primeira metade do século XVIII, coincidindo com o reinado de D. João V, o chamado “Diário do Conde de Ericeira” e a “Gazeta de Lisboa” mencionam festejos na capital e em espaços provinciais onde constam reiteradamente serenatas: nos divertimentos de alguns colégios lisboetas[5], em festejos aristocráticos havidos nos alvores de Julho de 1731, numa visita efectuada pelo arcebispo de Braga a Amarante e a Vila Real no mês de Setembro de 1748[6], nas festas organizadas pelo governador de Bragança em regojizo pelo nascimento do príncipe em 1735[7].
Procurando caracterizar as novas práticas sociabilitárias e os divertimentos lisboetas, pelos finais do século XVIII, a historiadora Maria Antónia Lopes assinala:

“Entre a nobreza havia, por vezes, passeios de barco. Já na segunda década do século a Gazeta de Lisboa informava com frequência que a rainha passeava de barco no Tejo com as suas damas, acompanhada de músicos. Em 1799 Costigan é convidado para uma função na Quinta de um marquês. Às 11 horas da manhã todos os convidados entraram para cerca de doze grandes barcos que o marquês preparara: remadores vestindo uniformes e em cada embarcação um grupo de remadores”[8].

Segundo Maria Antónia Lopes, durante a ocupação de Lisboa pelas tropas napoleónicas comandadas por Junot, o marquês de Fronteira recordava as idas às pescarias, os passeios a cavalo, os banhos na praia da Junqueira e as “serenatas”[9].
O viajante alemão Link, ao percorrer Portugal entre 1797 e 1799, desdenhou da música praticada pelos camponeses (“Voyage en Portugal de 1797 à 1799”, págs. 44-45), anotando a dado passo:

“Acrescentai a isto uma guitarra tão má, que apenas se ouve o ruído da madeira, e podeis formar uma ideia das serenatas que os namorados dão, à noite, às suas belas (...).”

Na cidade do Porto foi hábito frequente realizar serenatas ao longo da segunda metade do século XIX. Guitarristas, cantores, grupos amadores, animavam as ruas do burgo na época estival, com incursões às praias de Espinho, Granja, Leça da Palmeira, Apúlia, e termas das Caldas de Vizela e Pedras Salgadas. Quando em 7 de Dezembro de 1888 a Estudantina de Coimbra (Tuna) se deslocou ao Palácio de Cristal, uma banda de amadores locais brindou os tunos com uma serenata junto ao Hotel Universal.
O guitarrista, cantor e compositor Reinaldo Varela, nascido em Ponte de Lima no ano de 1867, domiciliou-se na cidade do Porto por volta de 1883, na qualidade de professor de instrumentos de corda, guitarrista e cantor. Aí viveu até cerca de 1900, altura em que passou a residir em Lisboa. Bem relacionado, presença assídua nas praias, termas, teatros e salões, Varela recordava ao periódico “A Canção de Portugal. O Fado”, nº 12, de 18 de Junho de 1916, que nas décadas de 1880 e 1890 se realizavam no Porto “serenatas afamadas”.
César das Neves, professor de música no Liceu da Ordem do Carmo, autor de um método de guitarra e recolector do “Cancioneiro de Músicas Populares” (1893-1895-1898), publicou em 1902 um “Compendio de Musica, solfejo e canto coral para alunos de ambos os sexos” (Porto, Livraria Portuense de Lopes & Companhia, 1902), onde transcreve canções da sua própria autoria destinadas a serenatas (Canção Fluvial, Pôr do Sol, Crepúsculo).
Entre finais do século XIX (década de 1890) e a década de 1920, a casa portuense "Eduardo da Fonseca. Armazem de musica, pianos e outros instrumentos", sita na Praça de Carlos Alberto, nº 8, lançou no mercados profusas edições de partituras em folheto volante e em brochuras de 12 peças impressas. Estas edições podiam ser compradas localmente ou encomendadas através de cobrança postal, servindo clientelas do Porto, Coimbra, Lisboa, tunas rurais e urbanas, serenateiros, professores de música, orquestras ligeiras activa em casinos, ensaiadores provinciais de teatro amador e ambulante, filarmónicas e serões familiares ao piano.
Na 1ª série destaquemos a versão primitiva do "Fado Serenata do Hylario" (Ouvi dizer ao luar). Na 2ª série encontramos o "Fado das Três Horas" (Murmura, rio, murmura), e o "Fado Boémio" (Guitarra, minha guitarra) de Varela. A 3ª série integrava "Canção d'Amor" (Já cantam os trovadores), "Fado Monte Estoril" , "Fado Apuliense", "Fado Novo de Coimbra", "Pallidas Madrugadas", e "Fado de Braga".
Este tipo de brochuras estava no auge da moda, oferecendo à clientela um repertório eclético constituído por fados tipo Lisboa, temas no estilo da CC e raríssimas canções populares. Na verdade, o título, em letras garrafais, apostava na publicidade enganosa ao anunciar "12 cantos populares". As melodias vendidas por Eduardo da Fonseca não eram recolhas folclóricas, mas sim repertório eclético urbano de autor, expressamente produzido para consumo urbano, formatado e tornado acessível através da harmonização para piano. E se alguns autores tinham ficado anónimos, outros eram bem conhecidos do grande público como um Augusto Hilário, um Reynaldo Varela ou um Manassés de Lacerda.
A prática da guitarra e dos temas de serenata conheceu nova voga com a fundação da Universidade do Porto. Pela década de 1920 mantinham-se activos diversos nomes, entre eles Luís Eloy da Silva e a formação do cantor Carlos Leal (com discos gravados). Por 1936/1937 actuava regularmente no Porto um grupo musical (Os Samedo), de cujo repertório faziam parte “Rendilheiras de Vila do Conde” e “À Meia Noite ao Luar”. O último espécime foi trazido para Coimbra por estudantes portuenses, por volta de 1937, e ali aclimatado localmente pelo cantor Manuel Simões Julião.
Aquando da primeira edição da "História de Portugal", Joaquim Pedro de Oliveira Martins mencionava “As toadas plangentes, que, ao som da guitarra, se ouvem por toda a costa do ocidente (...), desferidas à noite sobre o Mondego, sobre o Tejo e sobre o Sado”. O livro foi publicado em Outubro de 1879[10]. Na década de 1880 realizavam-se serenatas na cidade de Ponta Delgada, com viola da terra, violão e rabeca, e peças do estilo “Serenata Açoriana”, “Tanchão” (O cantar da meia noite) e “Despedida das Furnas” (Nesta Sintra micaelense). Descrevendo o processo genesíaco de “Serenata Açoriana” (Caíu do céu uma estrela), composta na Primavera de 1887, Antero de Quental elucidava Wilhem Stork em carta datada de 29 de Março de 1891:

“Tendo sido composta há quatro anos, na Ilha de São Miguel, a pedido de um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios musicais, em belas noites de verão”[11].

Pela década de 1890 há notícias de serenatas na doca da Horta (Ilha do Faial)[12] e rondas musicais feitas por tocadores amadores ligados a filarmónicas e actividades teatrais. Nos passeios estivais realizados em barco à vela no canal entre o Faial e Pico, nos primeiros anos do século XX, seguiam grupos de cantores e músicos, interpretando “Noite Serena”, “Barquinha Feiticeira”, “Terra Amada” (Sole mio), “Leva Arriba Nossa Gente”, “Céu Azul” e outras[13]. Boa cópia destes espécimes era de feitura exógena (Califórnia, Portugal Continental), entrando nas ilhas por via de seminaristas, emigrantes, vendedores ambulantes, militares, comércio de partituras impressas e, mais tarde, em discos trazidos por emigrantes “brasileiros” e “calafonas” (caso de Terra Amada). Outras eram compostas por regentes de filarmónicas, tunas, ou ensaidores de teatros. Recordem-se as excursões marítimas da Filarmónica Praiense entre a doca da Horta e o porto da Vila da Madalena (Ilha do Pico), o trabalho de recolha, composição e arranjo concretizado pelo regente Constantino Magno do Amaral Júnior (activo na Praia do Almoxarife), os corais e instrumentais aplaudidos no palco do Teatro Faialense, o papel de recepção e divulgação levado a cabo entre os anos de 1912-1915 pela Tuna Luís Proença.
A análise da música tradicional açoriana conduziu o etnomusicólogo José Alberto Sardinha a individualizar no seu corpus documental “um género lírico ou sentimental muito próprio, que de início terá tido apenas como função a serenata, o canto de amor ou de saudade e que posteriormente terá sido adaptada aos bailhos populares” (livreto “Portugal. Raízes musicais, nº 6, Algarve Ilhas”, Porto, Jornal de Notícias, 1997, pág. 70).
Exemplificariam o segmento escalpelizado por José Alberto Sardinha, “Serenata Açoriana”, “Tanchão” (O cantar da meia noite), “Saudade” (A saudade é um luto), “Meu Bem” (Ó Meu Bem se tu te fores), “Céu Azul” (Céu azul muito te amo), “Terra Amada” (=Sole Mio: A minha terra, terra abençoada), Leva Arriba Nossa Gente, Fado dos Estudantes Açorianos (O amor do estudante), Olhos Negros da Guiné (José Dória?), e Lília ou Lira (Feliciano de Castilho/Domingos Schiopetta, circa 1834-1836), “Lágrimas e Risos (A vida é toda feita assim), “Visão Formosa” (Oh! Visão formosa), “Ecos da Serra” (Ó ribeirinho da serra), “As andorinhas” (Já vai chegando o Outono), “Noivado do Sepulcro” (Vai alta a lua na mansão da noite), “Ao luar (Quero cantar ao luar), “Saudades d’Aldeia (Que saudades desta terra), “A Partida” (Ai adeus acabaram-se os dias), “Canção da Noite” (Alta vai nos céus a lua), “As Praias” (Adeus praias tão lindas, tão belas), e os “Os olhos Castanhos” (Teus olhos, contas escuras, de Augusto Gil).
A audição da mostragem referida facilmente nos conduz para o terreno das importações continentais localmente aclimatadas e para composições de tipo tuna e acto de variedades de teatro popular amador, concebidas por regentes de filarmónicas, professores liceais, seminaristas nas suas andanças entre a terra natal e o Seminário de Angra do Heroísmo, e ensaiadores de coros paroquiais.
As recolhas levadas a cabo nos territórios regionais da música tradicional portuguesa indiciam a prática de serenatas a noivos nos meios populares. Michel Giacometti deu notícia de um espécime deste género no seu “Cancioneiro Popular Português”, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981. Na antologia sonora “Songs and Dances of Portugal” (CD Portugalsom, 870028/PS, 1991), Giacometti apresenta a faixa nº 15, como sendo uma serenata de noivos, recolhida no Concelho de Castelo Branco. Anota o recolector que esta serenata soía cantar-se em momentos celebrativos de namoro, noivado e casamento. Nos povoados dos arrabaldes de Coimbra, Fadinho das Bodas (=Fado Campestre) cumpria funções similares.
Na década de 1950 faziam-se serenatas com Guitarra de Coimbra de fabrico rústico, Viola Amarantina e violão às raparigas casadoiras de Ovelha do Marão (José Ribeiro de Morais, “Cancioneiro a Ovelha do Marão”, Porto, 1998, pág. 254. Mais desenvolvimentos em José Alberto Sardinha, “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005). José Leite de Vasconcelos anotou o costume de “violadas” junto à porta da noiva em Medelim (Idanha-a-Nova), “descantes” com guitarra e harmónio à porta dos noivos em Tolosa (Niza), a interpretação da “Malaguenha” em Barrancos, Santo Aleixo e Amareleja (José Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”, Volume X, Lisboa, INCM, 1988, págs. 247-250).
Segundo testemunho prestado pelo Eng. Luís Correia de Oliveira, existiu na Carapinheira (Montemor-o-Velho) uma tuna popular, activa desde o reinado de D. Maria II, que dava serenatas rurais[14]. Esta tuna ficou célebre aquando da passagem da Rainha D. Maria II pelas imediações, tendo homenageado a soberana com uma serenata.
Em Leiria fundou-se na década de 1890 a tuna Serenata Coliponense, animada por Inácio Veríssimo de Azevedo[15], a que se seguiu a tuna liceal. Quando o Dr. Afonso de Sousa ingressou no Liceu Rodrigues Lobo, de Leiria, permanecia vicejante a tradição das serenatas populares e estudantis do tipo tuna. Do rol dos animadores das serenatas leirienses, entre finais do século XIX e inícios do século XX constaram João Agostinho (violino), Hipólito Gaspar de Campos, João da Fonseca, Januário de Carvalho, Guilhermino Lopes Gomes, Gonzaga, Álvaro de Brito (cantor, violão), José Agostinho, Mário Batalha (guitarrista), Afonso de Sousa (violão, guitarra, concertina, flauta), Adalberto Santélices de Lima (cantor), José Birne (pandeireta), Armando do Carmo Goes (cantor), Victor Hugo Wellencamp (violão), José da Silveira Zúquete (cantor), João Lopes Gomes (violão), António Rodrigues de Oliveira, José Sanches de Sousa, António dos Santos e Silva, Giesteira (guitarra), Santos (flauta). As serenatas leirienses extinguiram-se em 23 de Maio de 1958, nelas tendo participado Artur Paredes, Mário Batalha (violão), António Pires de Andrade, Afonso de Sousa (guitarra), João Agostinho Nogueira (violino), Rui da Luz e Virgílio de Sousa[16].
No primeiro quartel do século XX, as serenatas coimbrãs fluviais das Tricanas e dos Futricas (populares) serviam de arquétipo a actividades lúdicas desenvolvidas um pouco por todo o país. No Vouga (Aveiro) e no Leça, tricanas e lavadeiras imitavam as serenatas fluviais futricas em honra da Rainha Santa[17]. Em certos Liceus, os alunos finalistas procuravam reproduzir as Récitas de Despedida do 5º Ano, com saraus, bailes, cortejos alegóricos de enterro do ano escolar, baladas de despedida e serenatas. Guitarras e serenatas marcaram presença no quotidiano estudantil liceal até à década de 1950, se tivermos em conta os testemunhos dispersos, atinentes aos liceus de Ponta Delgada, Braga, Funchal, Santarém, Viseu, Leiria, Guarda, Évora.
Em Lisboa, os fadistas realizavam serenatas no Cais das Colunas, Costa do Castelo e Tejo, até à proibição oficial destes rituais na década de 1920 (rondas). As serenatas na praia de Cascais, frequentada pela corte, nobreza e burguesia elegante, foram prática recorrente nos anos de 1870-1880. Ilustra bem os gostos da época o “Fado de Cascais”, da autoria do guitarrista Ambrósio Fernandes da Maia. O mesmo acontecia relativamente ao Estoril, Ericeira, Figueira da Foz e Buarcos, Espinho, Granja e Apúlia. Mudavam os actores, os repertórios e os instrumentos, permanecia o culto da noite, das estrelas e da Lua.
Na linguagem vulgar, o termo ronda parece-se sobrepor-se a serenata em alguns contextos locais, pese embora com idêntico significado e intenção. Comum a Portugal e Espanha, a ronda ou serenata foi um ritual de cortejamento masculino, com funda implantação rural e urbana. José Alberto Sardinha assinalou rondas de rapazes, entre Maio e Outubro, na Ericeira, Lisboa, e Reguengo Grande[18]. Em 1937, Victor Machado, na obra “Ídolos do Fado. Biografias, comentários, antologia”, Lisboa, Tipografia Gonçalves, refere testemunhos de fadistas mais idosos que evocavam nostalgicamente as proibidas “serenatas” ou rondas da sua juventude.
Variando de localidade para localidade, a formação mais comum era do tipo tuna ou estudantina, apostando nas violas de arame, guitarras, bandolins, rabecas, violões, flautas e cavaquinhos. Os repertórios incidiam sobre descantes, fandangos, valsas, mazurcas, polcas, marchas, serenatas estróficas, fados em ré menor, barcarolas, romanzas e baladas. A massificação indiferenciada da cultura, de par com o esvaimento das práticas rurais e locais, auxiliaram o triunfo da serenata conimbricense estudantil de “capa e guitarra”. Mas, até no caso de Coimbra este cliché se afigura demasiado redutor e tardio na sua construção massificada, tal foi a diversidade dos rituais serenis experimentados na cidade.
NOTAS
[1] "The New Grove Dicionary of music & musicians", Volume 17, Edited by Stanley Sadie, na Grove de New York e na MacMillan Publishers Limited de Londres, 1980, pág. 159 e seguintes. A primeira edição veio a lume em quatro volumes, nos anos de 1878, 1880, 1883 e 1890. A reedição de 1980 corresponde à sexta versão actualizada em vinte volumes.
[2] "The Encyclopedia Americana", Volume 24, New York/Chicago, Americana Corporation, pág. 591, vai mais longe, sugerindo a presença do ritual da serenata nas civilizações grega e romana. Esta recensão sublinha a presença de archotes, “tradição” registada em Coimbra nos meios estudantis e populares até aos alvores do século XX. Por exemplo na serenata fluvial da Queima das Fitas, realizada pelas 22:00 horas de 4 de Junho de 1905, houve um final com “marcha aux flambeau”.
[3] Roberto Martínez del Rio, “Estudiantes, estudiantinas y tunas, SS. XIX y XX”, in "Estudiantes de Salamanca", Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 2001, pp. 64 e ss.
[4] “As serenatas tiveram a sua época de fastígio em São Paulo; em vez do Fado de Coimbra (...), as modinhas brasileiras e lunduns, com versos impregnados de romantismo, da autoria dos próprios estudantes da Academia (...)”. Cf. Divaldo Freitas, “Tradições da Academia de São Paulo”, Rua Larga. Revista dos Antigos Estudantes de Coimbra, nº 15, Coimbra, 15 de Julho de 1958, pág. 460.
[5] José Oliveira Barata, "António José da Silva, Criação e realidade". Volume I, Coimbra, Edição do Serviço de Documentação e Publicações da Universidade de Coimbra, 1985, pág. 289.
[6] "Gazeta de Lisboa", de 26 de Novembro de 1748.
[7] "Gazeta de Lisboa", de 24 de Fevereiro de 1735.
[8] Maria Antónia Lopes, "Mulheres, espaço e sociabilidade", Lisboa, Livros Horizonte, 1989, pág. 159.
[9] Cf. Maria Antónia Lopes, op. cit., pág. 159.
[10] Guilherme d’Oliveira Martins, "Oliveira Martins. Uma biografia", Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, págs. 232-233.
[11] Transcrição de Ana Maria Almeida Martins, "Antero de Quental. Fotobiografia", Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986, pág. 294, com reprodução da partitura e do manuscrito do poema.
[12] "O Telegrapho", edição de 20 de Maio de 1898. Transcrição em António Manuel Nunes, "No rasto de Edmundo de Bettencourt", Funchal, DRAC, 1999, pág. 24.
[13] Cotejem-se as respectivas partituras em Júlio Andrade, "Bailhos, rodas e cantorias. Subsídios para o registo do folclore das ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo", Horta, Edição do Autor, 1960, da página 307 em diante. O autor informa que recolheu estes espécimes entre 1912-1915. No mesmo sentido, Tenente Francisco José Dias, "Cantigas do Povo dos Açores", Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1981. Outras composições citadas neste trabalho resultam das recolhas sonoras de Emiliano Toste (Ilhas de São Jorge e Terceira), e de um caderno manuscrito/com cassete particular cedido em 2005 por Cecília Ferreira Viana relativo à aldeia de São João, Concelho das Lajes do Pico, para os anos de 1919-1923. Cito ainda a gentil oferta da Dra. Maria Antónia Esteves, em cujo CD "Maria Antónia Esteves. Com o rosto a este vento", Ponta Delgada, 2004, constam versões de "Tanchão", "Leva Arriba Nossa Gente" e "Barquinha Feiticeira". O meu feliz e muito especial obrigado a esta velha Amiga.
[14] Depoimento prestado em 20/10/2001.
[15] Afonso de Sousa, "Ronda pelo passado", Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 61.
[16] Afonso de Sousa, op. cit., págs. 61-82.
[17] Conforme a comunicação apresentada pelo Doutor Nelson Borges em 17 de Abril de 2001, em colóquio organizado pela Livraria Minerva Coimbra.
[18] José Alberto Sardinha, "Tradições Musicais da Estremadura", Vila Verde, TRADISOM, 2000, págs. 356-357.

sexta-feira, dezembro 23, 2005


Capa do CD "Canções d'Inquietude", com Jorge Cravo a cantar e acompanhado pelo Grupo "Presença de Coimbra", constituído por Manuel Borralho e José Ferraz de Oliveira nas guitarras e Manuel Gouveia Ferreira na viola. Um disco com todas as peças inéditas, como já vai sendo hábito das produções de Jorge Cravo. Os acompanhamentos são de bom nível com excelente qualidade de som; Jorge Cravo canta com muita expressão, como sempre nos habituou, sendo a qualidade das peças, tanto as cantadas como as instrumentais, acima da média, o que vem enriquecer o espólio coimbrão. Há que dar os parabéns ao grupo, por nos oferecer mais estes momentos de puro deleite. O mais que haverá a dizer, encontram-no nos escritos que estão mais à frente publicados, da autoria de Armando Luís de Carvalho Homem e José Manuel Beato. Posted by Picasa


Contracapa do CD "Canções d'Inquietude", com Jorge Cravo a cantar e acompanhado pelo Grupo "Presença de Coimbra". Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Fotos. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Foto do Grupo "Presença Coimbrã. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Fotos. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Foto de Jorge Cravo. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Foto de Manuel Borralho. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Foto de José Ferraz de Oliveira. Posted by Picasa


CD "Canções d'Inquietude". Foto de Manuel Gouveia Ferreira. Posted by Picasa


Letras do disco "Canções d'Inquietude", de Jorge Cravo(1) Posted by Picasa


Letras do disco "Canções d'Inquietude, de Jorge Cravo(2) Posted by Picasa

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