
Legenda da composição fotográfica:
Memória / Momentos :“Canção de Coimbra - Anos 80” (1989). Para além de Antigos Estudantes (ver último artigo ), participaram nesta série televisiva quatro “
Grupos de Fado”, cujos elementos eram estudantes na década de 80 do sec. XX e tiveram papel de relevo no “renascimento do fado de Coimbra”, após esse acontecimento decisivo que foi a serenata na Sé Velha, em Maio de 1978…Instantâneos das Gravações dos Programas com esses
Grupos de Fados : (A) “Grupo de Fados e guitarras de Coimbra”, c/João Moura e José M. Santos (inst.) e Tó Nogueira, Vítor Silva e L. Catario (cantores) (em estúdio);
(B) “Grupo Académico de Fados e Canções”, c/ ”Tó Zé” Moreira, H. Ferrão, Luís M. Martins, José C. Ribeiro e Manuel A. P. Fernandes (inst.) e Jorge Cravo (cantor) (Coimbra/Choupal);
(C) “Grupo Praxis Nova” c/ Paulo Soares (“JoJó”), José Rabaça, Luís C. Santos e Carlos A. S. Costa (inst.) e Luís Alcoforado (cantor) ( Coimbra /Santa Clara );
(D) “Grupo Toada Coimbrã” c/António J. Vicente, João P. P. Sousa, João C. Oliveira e Jorge M. M. Marques (inst.) e Rui P. Lucas (cantor) (Coimbra/Páteo das Escolas,U.C.).

José Mesquita*
Referíamo-nos, no último artigo, à variedade de expressão e temática que tem assumido o canto coimbrão e a alguns dos maiores responsáveis por essa riqueza …
A propósito deste tema e dos seus protagonistas, nomeadamente José Afonso e Luiz Goes, comentávamos no Semanário “O Jornal ”(1983) , o seguinte ( 3) : «Há qualquer coisa de comum em toda esta música ( trovas, baladas, canções…) : são frutos diferentes nascidos de enxertos na mesma cepa – «a raiz coimbrã» – difícil de caracterizar mas por isso mesmo, inigualável. É que cantar autenticamente Coimbra é, antes do mais, um certo modo de estar na canção traduzido por uma elevada sensibilidade e uma maneira de entoar e dizer, únicas no panorama da música popular portuguesa. Daí a expressão “sabor Coimbrão”… Sente-se que assim é, não porque essas composições obedeçam a regras precisas de construção musical e como tal reconhecidas, mas antes por um todo indefinível, intuitivo que corporiza aquele tal modo de estar na canção» ( Entrevista de apresentação do Lp “Coimbra dos Poetas”, nosso primeiro contributo para o reportório da Canção de Coimbra…).
Neste contexto, pensamos ser pertinente referir aqui também as opiniões, nesta matéria, de dois cultores bem conhecidos do canto e da guitarra de Coimbra, respectivamente Jorge Cravo2 e Jorge Gomes3 que, anos mais tarde (quase duas décadas depois…) as publicitaram do seguinte modo e, passamos a citar (excertos) : “Penso que é imperativo recriar esta canção… no sentido de se formularem novas pistas de musicalidade, acompanhamentos e mensagens para a divulgarmos … ao lado de produtos musicais agressivos, sem que ela perca a sua autenticidade regional e local, o que implica que daí resultem sempre sonoridades matricialmente identificáveis” ( Jorge Cravo ) (8) ou “A Canção de Coimbra é mais uma maneira própria de cantar, regional, do que um modelo musical”. E mais adiante, o mesmo articulista referindo-se à adaptação de canções populares por E. Bettencourt:…”o que está subjacente no fado de Coimbra é mais a maneira de cantar, de interpretar de dizer as coisas, do que propriamente a musicalidade e a letra da própria peça” (Jorge Gomes) (9).
Neste momento e antes do mais, gostaríamos de reafirmar que apoiamos entusiasticamente, em teoria e na prática, o “movimento de renovação” do repertório do “Fado de Coimbra”, nele incluindo recriação, inovação, pesquisa de «novas pistas de musicalidade» (8) etc, etc.
Contudo, estamos convictos de que estas iniciativas, a todos os títulos louváveis, não beneficiam muito a “Canção de Coimbra “, bem pelo contrário, quando são objecto de excessiva ”eruditização”, seja na expressão vocal, seja na composição… É óbvio que o saber nunca fez mal a ninguém e isso é verdade para toda e qualquer área do conhecimento, ciências musicais incluídas. As técnicas de canto e/ou execução instrumental aprendem-se e aí reside a importância e o papel das Escolas. Só por mera ignorância ou mesmo estupidez se pode negar tal evidência…
Contudo, a “Canção de Coimbra” é um canto com fortes raízes tradicionais e/ou populares, singelo por natureza e, muitas vezes, expressão de um “romantismo” muito peculiar e intemporal. Assim sendo, em nossa opinião, um tipo de canção com estas características não beneficia com a aplicação rígida das normas exigidas no canto lírico ou mesmo no canto coral e não «casa», de todo, com dissonâncias musicais inesperadas, ou composições e harmonias complexas, tão caras, procuradas e, por vezes apreciadas, na música erudita!... Que nos perdoem os músicos, por cuja profissão e saber temos o maior respeito, mas é esta a nossa convicção… depois de tudo o que nos foi dado ver e ouvir ao longo de “50 anos de fado”...
Saliente-se que nada disto é contraditório do eventual recurso ao fado/canção/guitarra de Coimbra como fonte de inspiração para arranjos ou composições, corais ou instrumentais, de música erudita, como vem acontecendo ultimamente, com assinalável êxito. Consideramos esta prática perfeitamente legítima, “arejada” e muito meritória, na senda, aliás, dos grandes Compositores que, como se pode constatar na História da Música, escreveram obras relevantes e de impacto mundial inspirando-se em temas tradicionais.
Pensamos, porém, que, quando tal acontece, a música tradicional, e no caso vertente a Canção de Coimbra (por vezes “irreconhecível” ! …), passa a outra categoria musical (erudita) que, não sendo melhor nem pior, é necessariamente diferente… e, como tal, deve ser apreciada. Com este “tratamento”, a música, sem dúvida, ganha em erudição, mas a Canção de Coimbra «sensu strictus» , enquanto tal, perde certamente emoção e identidade… Tudo estará bem se, como diz o Povo, estiver “cada coisa no seu lugar”… Por outras palavras : quando o objectivo fôr ouvir e apreciar “fado/Canção de Coimbra”, no seu “sabor genuíno”, pensamos que, em momento ou circunstância alguma, a “versão erudita” poderá ou deverá substituir a “versão natural”, na sua singeleza e autenticidade… Em jeito de “testemunhos “não formais que, em nossa opinião, abonam esta tese, transcrevemos, com a devida vénia, excertos de alguns textos vindos a público recentemente nesta matéria. Passamos a citar :…”O fado de Coimbra é uma forma de canto de características populares, de uma população citadina, seja ela académica ou não. Daí que os chamados técnicos de música coral, ao darem formação clássica a um cantor de música popular, saem aquelas asneiras que nós vemos. Deixa de ser um canto popular para ser um canto a puxar para o clássico e fica ridículo e desenquadrado da realidade”… ( Jorge Gomes ) ( 9 ) .…”A composição musical ( do fado de Coimbra ), tem quase sempre a doce simplicidade decorrente dos seus Autores-tantas vezes ignotos- não saberem música . Os talentos musicais, sem muletas, figuram, não raro, entre os mais criativos e originais “… ( Almeida Santos ) ( 10 ) .…”Faço música como quem faz um par de sapatos, isto é, tento alinhar sons e torná-los coerentes entre si, como quem faz um utensílio”… ( José Afonso ) ( 11 ) .
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Estamos chegados ao ponto fulcral de todas estas reflexões :
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Independentemente da “velha e massacrada” polémica das origens do “Fado/Canção de Coimbra”!....Independentemente de caracterizações técnicas, mais ou menos complicadas !..., perguntará o cidadão comum ( autóctone ou estrangeiro) ?!
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Como caracterizar e/ou identificar este género musical que é a Canção de Coimbra?!
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Tal como há vinte anos atrás ( 3 ), estamos cada vez mais convictos de que “cantar Coimbra” é tão somente um “modo de estar na canção”, um “modo de cantar e dizer”, único e inconfundível, que constitui a matriz, a “raiz coimbrã”… A “História do Fado de Coimbra” (e estamos a falar da ”História completa”, sem omissões, sejam elas involuntárias ou intencionais…) mostra, à saciedade, que nesta raiz pode ser enxertada uma diversidade de formas, tanto na vertente musical (fados tradicionais, trovas, baladas, canções…), como na vertente poético-literária (quadras, quintilhas, sextilhas, sonetos, etc.).
A dificuldade está na identificação desta raiz, desta matriz. Muito se fala dela mas ninguém a definiu ou caracterizou objectivamente … e ainda bem!!... E dizemos ainda bem, pois, como acima referimos, essa matriz constitui um todo indefinível, com muito de intuitivo, no qual as várias vertentes de uma canção (sejam elas, a vertente melódica, poética ou interpretativa), se conjugam para dar um produto final que, podendo ser muito diferente, acabará por exibir, invariavelmente, o tal “sabor coimbrão” …E continuando nesta linguagem metafórica de cariz “gastronómico”, a “Canção de Coimbra” é, por assim dizer, um manjar tipicamente coimbrão, mas sem uma receita rígida ou predefinida…
A arte, o segredo do “cozinheiro” (neste caso, do cantor ou compositor) está em saber “temperar”, isto é, misturar sabiamente os “ingredientes” de modo a não adulterar o “sabor” genuíno , autêntico ! Mas, um pouco ao invés dos livros de culinária, nesta matéria não nos parece útil ou sequer saudável, bem pelo contrário, aplaudir ou incentivar o eventual aparecimento de “códigos de conduta” (passe a expressão),”manuais de instruções” ou quaisquer outros normativos tendentes a cercear, orientar ou modelar a criatividade… A ortodoxia, como se sabe, é o maior inimigo de toda e qualquer criação artística…
Isto, obviamente, não significa que nos abstenhamos de referir alguns dos “ingredientes” que, em nossa opinião, enformam o que consideramos ser a “matriz coimbrã “…
Mas disso nos ocuparemos no próximo e último texto…
* Cultor da Canção de Coimbra ( cantor e compositor ).
[2] Cantor/compositor fortemente personalizado (pesem embora as notórias influências de Luiz Goes…) e de citação obrigatória quando se fala de renovação de repertório na “ Canção de Coimbra” ( Anos 80 ).
[3] Companheiro de “lides fadísticas” na década de 70 e hoje figura incontornável na pedagogia da guitarra de Coimbra.
Bibliografia
(1) «In”História do Fado de Coimbra” ( DVD ) estem LOSANGO 2004.
(2) « Diário de Coimbra, 7/6/1999
(3) « Semanário “O Jornal “ ( Supl. Educação ), 12/1983
(4) « Semanário “O Jornal”,8/3/1985(5) « Expresso ( Única ),nº 1703, 18/6/2005
(6) « Separ./Comissão Municipal de Turismo ( 1981)
(7) «”Diário As Beiras”( 21/9/05 )
(8) «”Diário As Beiras” ( 17/04/2001 )
(9) «”Jornal de Coimbra” ( 21/05/1997
(10) «”O Fado do Público,nº7,Fados e Baladas de Coimbra”, Edições de Arte, S.A.
(11) «”Cadernos de Reportagem nº 2, Edições Relógio d’Água