sábado, dezembro 08, 2007

Cristina Branco canta Zeca Afonso

Esta não é a primeira vez que a cantora “visita” José Afonso. Mas este trabalho de Cristina Branco, por ser inteiramente dedicado à obra poética e musical do cantor de “Abril” surge com uma integridade e uma beleza raras. A emoção transparece em cada tema e Cristina Branco oferece ao seu público alguns preciosos momentos de pura poesia. Quem for ouvi-la, esta noite, (dia 7, ontem) às 21H30, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, naquele que é o concerto de abertura de uma digressão nacional, poderá contar com uma revisitação de 16 temas que oferecem, de alguma forma, a obra inteira que José Afonso legou a todos.
Diário as Beiras - Ouvindo “Abril”, percebe-se que este é um projecto feito com o coração, com uma vontade de devolver em integridade e beleza a obra poética e musical de José Afonso. Como é que surgiu este trabalho?
Cristina Branco - Espontaneamente porque já não é a primeira vez que gravo temas do José Afonso (“Murmúrios” e “Ulisses”) e impôs-se depois do tributo aos fados de Amália (“Live”). Afinal, José Afonso faz parte do meu ouvido há muito mais tempo que o fado e não ficaria de bem comigo se não me embrenhasse no seu mundo da mesma forma que fiz com os temas de Amália. Com respeito pelas suas melodias e tentando não desvirtuar o universo por ele criado.
DB - “Abril” é um momento assumido de homenagem a um compositor que deixou marcas importantes (também) em si?
CB - Sim, e também o momento de tomar fôlego para o grande mergulho que vem a seguir, ou seja, criei um espaço de aprendizagem com os meus mestres para agora me “envolver” tranquilamente na minha música.
DB - O que é que o país, os seus cantores e os seus poetas devem a Zeca, essa personalidade a muitos títulos ímpar na cultura musical portuguesa do século XX, que ainda não lhe deram?
CB - Acho que quando se d* não se pede nada em troca e o Zeca deu o que tinha. O seu património é as palavras de entreajuda, as melodias “orelhudas”, subtis gritos de alerta para não acordar o monstro. Recebemos agradecidos e tentamos lembrar simplesmente. Não pediu nada em troca... talvez lembrá-lo sempre seja a melhor dádiva de todas!
DB - Pelo que foi possível saber, as apresentações em Lisboa ditaram um encontro “feliz” com quem foi ouvi-la cantar Zeca Afonso. Como foi?
CB - Foi surpreendentemente bonito, gratificante. Vieram os amigos, a família, os políticos, os curiosos, como bom augúrio. E todos traziam “estórias” do Zeca para nos contar, para acrescentar saber à minha aprendizagem.
DB - Para que público pensou e construiu depois este projecto?
CB - A intenção foi simplesmente deixar fluir a simplicidade da música do Zeca, o surrealismo dos seus poemas. A de mais, repare, conotar politicamente seria ridículo, não é esse o meu papel. Uma vez mais, foi a beleza e complexidade do repertório, que me envolveu e me guiou até ao “Abril”.
DB - Inicia hoje, 7 de Dezembro, em Coimbra, uma digressão nacional com este trabalho. Quais são as suas expectativas?
CB - Espero que “venham mais cinco” para lembrar a música e cantar, cantar muito. Sem preconceitos, porque o Zeca é de todos e não teve nunca a cor dum partido. O seu ideal foi o da justiça e a sua arma as palavras e as melodias.
DB - Vem cantar Zeca a Coimbra. A experiência de ruptura com uma tradição a muitos títulos castradora vivida pelo poeta cantor poderá inspirá-la, de algum modo, a fazer uma incursão pela canção de Coimbra?
CB - José Afonso é uma inspiração, mas adianto-lhe que a canção de Coimbra está bem entregue nas mãos de bons cantores e músicos de excelência que estão a recriar e a compor de forma brilhante para o género. Eu nada traria de novo.
DB - A Cristina Branco vem do fado, embora de um “fado novo”, como convencionou dizer-se, mas a sonoridade deste “Abril” é a do jazz e a matriz é a do Zeca. Como é viajar assim entre sonoridades e estilos?
CB - É a minha praia! Não gosto de rótulos e ter a liberdade de me movimentar entre as camadas do convencional, é o que sempre ambicionei, porque se aprende navegando em águas paradas tal como em mares mais agitados.
DB - E a música portuguesa em Portugal? O que é que entende como absolutamente prioritário para que a música chegue ao público para o qual é feita?
CB - Respeitar esse mesmo público, e com isso quero dizer que devemos “ouvir” o fruir da nossa sociedade, do mundo, sendo que temos nas mãos o papel de conduzir lucidamente os gostos e alternativas que se nos apresentam todos os dias.
*
Jornal Diário as Beiras de ontem; entrevista de Lídia Pereira.

A Orquestra Clássica do Centro e o Governo Civil de Coimbra convidam V.Exª a assistir ao Concerto - Conferência a ter lugar no próximo Domingo, dia 9 de Dezembro, às 18:00 horas, no café Santa Cruz (Coimbra), no âmbito da iniciativa “Conc(s)ertos à Indiferença”, que visa assinalar o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos.
“Globalização e Igualdade Social” será o tema da conferência a proferir pelo Dr. Mário Soares, com apresentação do Prof. Doutor Gomes Canotilho. Participação de um Quarteto de Cordas da OCC, de João Torre do Valle (guitarra portuguesa) e de Fernando Alvim (guitarra clássica).
Enviado por Maria Emília Martins

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Sonoridades e magia ...

Por José Henrique Dias*

As minhas idas a Coimbra, semanais, por força do trabalho, confinam-se ao território da Cruz de Celas. É chegar ao Instituto Miguel Torga de manhã, relativamente cedo, pegar no trabalho e ficar quase até o dia acabar. Entre aulas, seminários e despachar requerimentos, apenas o intervalo para um almoço rápido. Perco assim a visão do que vai pela minha cidade, não me lembro já de ter passeado na baixa, se descontar uma ou outra presença nocturna em frente a Santa Cruz, nas festas de Julho, por mor de ligações à música de Coimbra e a gentilezas de companheiros que se esforçam por luzir, por não deixar morrer esse património da academia e da nossa cidade, tão esquecido pelos que têm a responsabilidade de preservar, divulgando, o nosso multiforme património cultural.
Durante anos, o meu amigo e colega Sansão Coelho manteve na rádio o programa Do Choupal até à Lapa, onde passava com timbre e inteligência inconfundíveis os melhores registos discográficos da música de matriz coimbrã. Digo assim, servindo-me do que já é um chavão, porque a nossa música é poliédrica na tessitura melódica como multifacetada na espessura poética, desde que Edmundo Bettencourt, nos idos de vinte do século passado, lhe deu uma volta, na indispensável companhia de Artur Paredes, que afinou e encorpou a guitarra de uma maneira outra, para vibrar nas ruas, até que Luiz Goes a vestiu de roupagens mais universalistas, no timbre singular da sua voz de barítono e pela sensibilidade interpretativa que o coloca entre os maiores vultos, os mais altos símbolos da música popular contemporânea, ao lado de Amália e Carlos Paredes.
Claro que há alguns outros que dos anos cinquenta aos dias de hoje mantiveram a chama e operaram incursões por outras veredas da luxuriante natureza que a referência matricial consente. Como há os pioneiros da divulgação discográfica, além de Bettencourt, caso à parte, os Menano, Junot, Armando Goes, Paradela.
Claro que é incontornável o magistério de António Portugal e António Brojo, como fundamentais as criações de João Bagão sobremaneira nas gravações de Goes. Também Carvalho Homem e José Amaral, nos anos quarenta.
Certo que não se pode omitir a inteligência criativa e a singularidade de Jorge Tuna ou os aprofundamentos técnicos de Paulo Soares, como é imperativo fixar a qualidade de Octávio Sérgio e não esquecer Francisco Martins, Eduardo Melo, João Moura, cujas guitarras sempre nos convocam. Naturalmente salientamos Machado Soares, José Mesquita, António Bernardino, Jorge Cravo, ainda por outra afectividade minha Augusto Camacho, Fernando Rolim, Sutil Roque. Há também Fernando Xavier, guitarrista de pessoalíssima sonoridade e uma notável obra conhecida de poucos. E não queria deixar de fora, porque especialmente importantes, "os violas". Por todos, de todas as gerações, registo Aurélio Reis, António Toscano, Levy Batista, Durval Moreirinhas, Rui Pato e Armando Luis Carvalho Homem.
Outros dedos e outras vozes podiam ser chamados à galeria, não há aqui um módico de hierarquização, de escolha por virtuosismos ou critérios que não sejam os dos solavancos da memória. Cada um de nós tem os seus eleitos, dispenso-me de outras enumerações porque muitos se contam entre os meus amigos, comigo repartem as angústias desta era do esquecimento, do silêncio, do vazio, se Lipovetsky não se importa.
E é inevitável, por ligações fundadoras e logo pela revolução operada, que evoquemos Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira e se interpele o que de fundamental aconteceu quando se passou a cantar Manuel Alegre e José Niza. Mas são já outras músicas, para outras auspiciosas respirações.
Por sagração dos deuses, a música coimbrã tem proporcionado o aparecimento de grandes intérpretes da guitarra e o despontar de alguns cantores de apreciável qualidade, como tem proporcionado o emergir de algum esforço renovador.
Não chegariam as colunas deste jornal se tivéssemos cabedal de sabedoria para os tratar a todos, e melhor se arrumariam naturalmente alguns inevitáveis equívocos. Não é porém tudo isso que nos mobiliza. De resto, nem era do que pensava falar quando iniciei a crónica. Acabei empurrado pelas circunstâncias, pelo desgaste que o défice de divulgação da nossa música acaba por impor numa espécie de registo de revolta.
Que diabo acontece para que não se ouça a nossa gente na galáxia radiofónica e não apareça nos alinhamentos televisivos? Instalaram-se o gosto duvidoso de importação e o desfile dessorante da mediocridade nacional. Instalaram-se para ficar.
Calaram Sansão Coelho no grelhado das arrumações do serviço público que pagamos com os nossos impostos, abriram alçapões para ocultarem o que há de mais nosso no opiário dos ecrãs televisivos.
Por outro lado, ninguém, que eu saiba, parece estar capacitado ou inclinado para estudo que valha como organizador da memória. Sobra-nos o trabalho empenhado de Anjos de Carvalho para sabermos os caminhos que as palavras e as melodias foram trilhando desde que há registos fonográficos e se editaram partituras. Se precisamos de rigor, batemos-lhe à porta. Grande o mérito, parca a recompensa.
Não sei, que se me perdoe a ignorância, que em Coimbra se percorra caminho paralelo ou articulado com o deste nosso amigo, a Coimbra ligado por vínculos majorados de afectos, mas que nela nunca viveu, ao que julgo saber.
Estranhamente, a cidade do conhecimento parece não querer conhecer, no lugar e com relevo devidos, um objecto de criação artística no qual a palavra Coimbra mais fundamente se inscreve e onde avulta a condição de estudante.
Que, como o tempo tem provado, não prescreve, ainda que lhe arremessem traulitadas de silêncio, mesmo que à boca pequena haja quem proclame que é coisa menor para respirar em corredores da investigação académica. Tenho fundadas esperanças em Jorge Cravo, pelo talento e pelo ofício de historiador.
Pode o tempo apagar todos os vestígios de uma certa vivência coimbrã. Podem mudar os gostos e esgotar-se o tempo da memória do que fomos. Podem dobrar os sinos de todos os arrepios. Arrisco dizer que recolho uma certeza: onde houver um pingo de sensibilidade, ninguém ficará indiferente à sonoridade única das nossas guitarras ou ao envolvimento que nos percorre a alma em qualquer interpretação de Luiz Goes.
Música lareira lhe chamei um dia. Porque aconchega e nos reconcilia. Porque nos viaja o sangue e acende o tal luar que deixa sombras sobre coisas impossíveis, costumo dizer. Pela sua respiração nocturna. Pela sua evocação intemporal.
Ou, como diria Bettencourt, porque espelha a magia de Coimbra.
*Professor Universitário
Saída no jornal O Despertar de 16 de Novembro, nas crónicas sob a epígrafe A outra face do espelho.





Ontem à noite, o Café Santa Cruz não chegava para tanta gente em Coimbra, estava "Lotação Esgotada" no lançamento do CD do Grupo Toada Coimbrã quase a completar 21 anos de existência e composto pelos seguintes elementos:
António José Vicente (Guitarra),
João Paulo Sousa (Guitarra)
João Carlos Oliveira (Viola)
Jorge Mira Marques (Viola)
Alcides Sá Esteves (Voz)
Rui Lucas (Voz)

A cerimónia de lançamento começou com as palavras de António José Vicente que falou um pouco do grupo. Depois, seguiu-se a actuação da Estudantina Universitária de Coimbra, de que António José Vicente e João Carlos Oliveira foram impulsionadores e fizeram muitas das letras.
Por fim, foi a actuação dos "Toada Coimbrã", propriamente dita.
O progama está no site dos Toada Coimbrã em: http://toadacoimbra.blogspot.com/

Rui Lopes

Duas notas finais:
A primeira, para dizer que lamento não ter podido assistir ao lançamento.
A segunda, para pedir desculpa a Rui Lopes por só incluir 4 das 10 fotos que me enviou, mas a qualidade não deu para as colocar todas no Blog. Mesmo as que coloquei estão longe do bom. De qualquer modo, obrigado pelo esforço.

quinta-feira, dezembro 06, 2007


Lançamento do último CD de Canção de Coimbra do grupo "Toada Coimbrã", no Café Santa Cruz. Site do grupo e Diário de Coimbra de 28-11-2007.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Joaquim Isabelinha

Hoje, dia 5 de Dezembro, completa 99 anos o Dr. Joaquim Gonçalves Isabelinha, ilustre oftalmologista de Santarém.
O Dr. Isabelinha, com quem troco correspondência, nasceu em Almeirim, fez o Liceu em Santarém e em 1930 rumou a Coimbra para cursar Medicina, tendo terminado o Curso em 1936. Jogou na Briosa e por um pouco falhou a 1 ª taça de Portugal de 1939, ganha pela Briosa.
Exerceu sempre medicna em Santarém, na casa onde actualmente habita, no Largo Sá da Bandeira, junto da Sé Catedral de Santarém. Como médico, celebrizou-se não só pela sua eficácia como oftalmologista, mas também, como "médico dos pobres", pois deu milhares de consultas grátis, tal como milhares de cirurgias. Aposentou-se há 2 anos, portanto, aos 97, porque, segundo me disse numa visita que lhe fiz, o filho estava sempre a dizer que ele precisava de descansar.
Memória viva de Coimbra da década de 1930, parabéns ao Dr. Isabelinha que, actualmente, é o jogador da Briosa com mais idade vivo.

Algumas referências em:

http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/12/heris-da-bola-iv-joaquim-duarte.html

http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/07/jos-joaquim-isabelinha-marques-incio.html

http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/02/isabelinha-uma-lenda-viva.html

http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/02/as-glrias-da-briosa-isabelinha.html
Rui Lopes

terça-feira, dezembro 04, 2007

"Maior que o pensamento"

É vulgar, quando alguém com notoriedade desaparece, como cogumelos nascerem amigos e companheiros, que sempre têm uma história para contar, como se fora sua mas normalmente com outros acontecidas. Do Zeca e com o Zeca, não faltam narrativas. Nem sempre edificantes. Gente que pode ter sido sua contemporânea em Coimbra mas que não foi de sua privança, barafusta com uma ou outra historieta que, algumas vezes, de forma acintosa, tem por objectivo pôr em causa aspectos da sua personalidade, quando não da sua vida privada, pelo incómodo da grandeza e refinamento ideológico.
Tem-me acontecido virem contar-me pequenos episódios de vivência coimbrã passados comigo, que eventualmente relatei, que dada a volta costumeira e por desfibrilhação entrópica, regressa a mim na euforia de alguém que conta como se passados consigo.
O Zeca paga esse preço, exactamente pelo que sempre foi mas sobretudo pelo mito que se tornou, pelo que vão transitando em julgado algumas calúnias e desmandos em que se tornou fértil ou sempre o foi a Coimbra provinciana e invejosa, mais apta a notabilizar boémios que os que cometiam o pecado capital de pensar, pensar livremente, agir no espaço subjectivo da liberdade consentida, no exercício de um estilo de vida que é essência da criação poética.
Assim o Zeca, livre pensador que adornava uma rara alma de artista e uma assumida consciência cívica, interventora e comprometida ideologicamente, que veio a traduzir-se no plano da criação artística numa obra que o coloca entre os principais músicos do sec. XX, naquilo a que depois se chamou cantautores.
O Zeca mais próximo do que pretexta esta sessão de homenagem é o intérprete de música de matriz coimbrã, maxime aquilo a que se convencionou com maior ou menor rigor chamar de fado de Coimbra.
O Zeca Afonso andava pelos bancos do liceu D. João III em Coimbra e já participava em serenatas e também em espectáculos populares, pela mão de Flávio Rodrigues e Fernando Rodrigues, os irmãos barbeiros a quem a música coimbrã tanto deve, mas que vão andando esquecidos ou aqui e ali relembrados, porque uma forma bacoca de elitismo sempre ali morou, instado no código genético universitário.
A um tempo, jogava futebol nos júniores da Académica, imagine-se, a extremo direito, e garanto-vos que tinha um jeitão.
Entrado na universidade, para frequentar Histórico-Filosóficas, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos integra o Orfeon e torna-se solista de segundos tenores. Tem uma voz suave, pessoal e em quitação de pieguismos, como poucos faz ouvir palavras inteiras, divide com rigor a sintaxe musical, articula com sentimentalidade premunida o a dizer, desvenda semiogonias que tantas vezes o verbo esconde.
Mas o Zeca não era muito de estar arrumadinho em naipes, de se perfilar em corais. Foi estando como pretexto para outras digressões, deu uma mãozinha quando foi criado o coral das Letras, primeiro coro misto da nossa academia.
Aconteceu casar muito cedo e nascerem-lhe dois filhos. Foi do amor uma decisão contrariada que lhe acumulou dificuldades. Passou a morar com a Amalita, como lhe chamava ternamente, numa cave da Rua de S. Salvador, em frente da casa da mãe do Jorge Godinho, senhora que foi formando os filhos a dar cama, mesa e roupa lavada a estudantes.
Nessa casa, num quarto das traseiras, voltado para a rua do Loureiro, arrumava os códigos e rubricava a viola o Levy Batista, e por lá andava eu, entre o tertuliar conspirativo e uns garganteios, consolidados depois na Tuna e segredados nas mesas do Café Montanha, em partilha fraternal.
Connosco também o Zeca, inevitavelmente, a rilhar maus momentos, com subtis apoios de alguns de nós e a solidariedade de poucos.
Tempos difíceis, porque chamado para a tropa vai a Mafra para o curso de oficiais milicianos, regressando a Coimbra com a galonite de alferes atravessada nos ombros.
Era insuperável nas caricaturas que fazia de toda a militança, acidulado para a hirerarquia das continências, incontinente de fina ironia quando de pistola à cinta saía para a ronda de polícia militar, prática corrente da sociedade castrense.
A guerra colonial suspirante a menos de uma década, já respirava entre aqueles de nós que éramos menos dos copos e mais das leituras e do compromisso cívico, e até se dera o caso de Agostinho Neto ser hóspede da tal casa, como de resto o era também Carlos Mac Mahon.
Íamos falando em surdina a pensar se as paredes tinham ouvidos, entre uns fados tradicionais e umas cançonetas napolitanas, que a viola do Levy magistralmente sublinhava e a guitarra do guitarrinhas, o Jorge Godinho, amparava como podia, até ascenderem ambos ao estrelato daquilo a que se chamou Quinteto de Coimbra, ou mais afiambrado, Coimbra quintet, coisa que nunca existiu.
Eram tempos da fraternidade a pairar no para sempre do tempo, que se instaurou para que mais bem se compreenda o Zeca que volta a Coimbra na crise académica de 62 a partilhar com os jovens de então a dimensão das revoltas, Abril antes de Abril tão mal recebido por tantos dos que agora blasonam de terem sido seus companheiros.
Por isso me importa aqui, sem um módico de esquecimento do excelente intérprete da música de Coimbra, a que de resto regressou com o disco de homenagem a Edmundo Bettencourt, colega que fora de seu pai, me importa, dizia, celebrar o cantor de intervenção política projectado sobremaneira nas memórias porque uma sua canção foi senha da madrugada de Abril da liberdade sonhada, cantor de protesto que vale por uma obra poética e musical que está muito para além das circunstanciais fronteiras, que seria certamente celebrado em todo o mundo se em língua mais universal tivesse cantado.
Músico inspiradíssimo e poeta de rara sensibilidade, mas acima de tudo muito consciente dos mecanismos da criação, estranhamente ou talvez não a sua obra poética não consta das recolhas e referências da poesia portuguesa contemporânea, não se elenca nos cânones historiográficos da nossa literatura e, não obstante, acentua-se, marca como poucos a contemporaneidade.
Não sei de manual escolar onde apareça um poema seu, e como seria importante, ainda que não se atrevessem à dimensão mais notadamente política, como seria importante dar a ler a sua obra eminentemente lírica, na qual a limpidez de um olhar inteligente sobre a vida, sobre as pessoas e sobre os sentimentos ressoa como das mais conseguidas da segunda metade do século vinte.
Mas a literatura ausentou-se do ensino da Língua, pensar realmente dá trabalho, instalou-se a ideia peregrina de que a escola é espaço lúdico. Sabemos o preço, na charneca intelectual em que o país estiola.
Celebrem-se por oposição os estudos de Elfriede Engelmayer e os esforços de Viale Moutinho, persistentes em trabalhos adultos sobre o nosso poeta e compositor, registos se não exaustivos garantem porém uma visão clarividente do Homem e da Obra, grafados com maiúsculas, porque de coisa grande se trata.
Entre muitas dezenas, proponho este poema escrito em Coimbra, em 1955:
*
A minha voz não ouve a voz do vento
A minha mão não sente a mão que sinto
Os meus olhos não vêem o que eu vejo
Desisto e invejo o que me dá alento
*
Seduzo-me a tentar mas não me tento
Pretendo-me sem dar-me o pretendido
Se busco perco-me onde não há p’rigo
Nutro de olvido com que me sustento
*
Se por aqui não venho ali não sigo
O que me traz por cá foi-me esquecendo
Desfaço o feito e faço o presumido
Nada consigo e nisto vou cedendo
*
Nisto prossigo e nisto me entendendo
(A voz de bronze que me traz consigo)
Ó minha amada vê como estou vendo
Ceia também comigo ó meu amigo
*
Atendamos uma outra maneira de exteriorizar o sentido, ante a morte de um ente querido, escrito nos anos cinquenta, quando dele se sabe que cantava em serenatas e brincava com as palavras, nas conversas à mesa do café. É um extraordinário poema sobre a morte, a morte petrificada em incomunicação:
*
Pela quietude das tuas mãos unidas.
Desce o eterno e a paz.
Nada perturba o silêncio posto nas tuas pálpebras.
É a morte o templo, a plenitude infinda.
Abatem-se os contornos, teu vulto esfuma a rigidez das coisas,
a exactidão concreta.
Nenhuma dor descerrará nossas bocas profanas
para pronunciar o césamo que te abrirá os céus,
pobre silhueta humana, já pertença neutral,
informe barroInalterável mistério, subsistência.
Entre o vivo e o morto o abismo sa incomunicação,
A distância absurda da intemporalidade.
O entrar na origem, menos existência
Que companhia apenas de todas as coisas que ali estão
Em frente além.
Só contemplar-te para penetrar teu mistério
E apressar a corrida para a petrificação.
Depois sim: vossa presença pura
Entre Impronunciáveis e Inconcebíveis-Nada..
*
Que coisa o amor! Pobre balbucie
Gérmen do primeiro estrebuchar da primeira forma.
Embrião latejando o que quer persistir e continuar-se-Assim
*
E se ainda não perceberam até ao fim estes grande poeta e homem de acção cívica, fiquemos com esta carta escrita à filha Joana, na prisão de Caxias, em Maio de 1973:
*
Prosema III
*
Querida Joana:
Como sabes eu estou preso mas também não sou um homem mau. Viste como foi. Não sejas rabugenta e ajuda o Pedro. Se ele estiver birrento lembra-te que ainda é um bebé e tu mais crescida que ele. O que eu não gosto é que sejas egoísta porque é muito feio. Se alguma das tuas amigas querem tudo para elas deixa lá. Elas fazem mal mas tu não. Explica-lhes que não devem ser egoístas. Tem cuidado com os sugos e outras porcarias iguais porque podes ficar sem dentes. Depois, mesmo que os queiras ter já ninguém te os pode pôr. Ficas como os velhinhos. Alguns deles tinham a mania de comer guloseimas, gelados e caramelos. E também chocolates.Eu lembro-me muito de ti e do Pedro. O Zé ainda não cortou as barbas? Diz à Lena que eu não gosto que ela seja desarrumada.
Todos têm que ajudar a mãe e a Dina.
Muitos beijos do
Zeca Pai
Caxias, 13-5-1973
*
Todos sabemos que a maior parte da sua obra poética não foi musicada. Também sabemos que musicou outros poetas, Camões, Pessoa, Sena, António Quadros pintor, Ary, António Barahona, Ferreira Guedes Luís Andrade, Paulo Armando e António Aleixo. Estas cantigas, como toda a sua obra, mais lírica ou mais interventora, com ressonâncias épicas, são notavelmente alguns dos grandes momentos da nossa música dita popular, pela forma rigorosa como articula os sons com a respiração poética, como nos alerta e nos convoca.
Pouco se repara na construção da canção dos Vampiros, na simplicidade inultrapassável das palavras para o objecto que se propõe, na tessitura epopaica em que a metáfora se desfaz e se refaz, para se metonimizar em denúncia do poder arbitrário e do capital sôfrego, como escapa a muitos a densa ternura do Menino do Bairro Negro, a quem se devolve a esperança do sol nascente, a luz da redenção, o novo dia de todas as auroras, como se um embalo, onde comovida a ternura se expande e purifica.
Escolhi estes porque são as suas primícias, mas validamos por igual o baú de todos os seus tesouros.
Não me chegava toda esta noite, não chegavam muitas noites e toda a vossa paciente benevolência para percorrer a obra poética do Zeca onde se reconhecem cerca de duzentos poemas, que entrelaçam a fina ironia com as transparências líricas do amor e da morte, mas sempre a claridade solidária e a notação de um futuro a haver, com a chama empunhada para luminoso caminho dos humildes e a palavra apontada a todas as iniquidades. Cantou a esperança, como cantou a raiva e a revolta.
Cantou as lonjuras da planície heróica e olhou como irmão as suas gentes, musicou peças de teatro com canções marcantes, notificou-nos para a nossa responsabilidade cívica com cantigas de todos os Maios, no abraço a quantos amigos maiores que o pensamento, vieram nas estradas, convocou-nos para as fileiras clamando pela amizade solidária, trouxe a estrela d’alva ao sonho dos meninos, soltou pombas brancas e chamou-as ao nosso desassossego, alertou os submissos e apelou a mudar de rumo as formigas no carreiro, balada de Outono de águas de um rio da esperança que volte a cantar, com ceifeiras a olharem a morte saída à rua na paleta do pintor, linóleo de Dias Coelho atravessado pelo tiro da raiva traiçoeira numa rua de Alcântara, com Catarina no tempo, porque se um homem se põe a cantar, vejam bem, amigos, que não há só gaivotas em terra, e é preciso ensinar o sonho, maduro Maio para os índios da meia praia saberem como encontrar o lugar, para que todos os homens, seus irmãos, ergam punhos bem apertados ao internacionalismo das mais ridentes utopias, de pé, pois
*
Não basta pregar um prego
Para ter um bairro novo
Só unidos venceremos
Reza um ditado do povo.
*
Para sempre o Zeca se ficou nas suas tamanquinhas porque plantou a semente das palavras e elas aí estão, aí ficaram, com elas vamos, e ainda aqueles que ficarem, os que se afastaram no caminho, os que perderam élan e agora partilham da taça do vinho novo, encontrarão sempre, se souberem ouvir, se ler souberem, se pensarem até doer, que em Coimbra tudo começou no tempo em que em flor se abriu a sombra da sua capa, para nos contar baixinho contos de amor velhinhos em qualquer noite fria e triste, porque ao lembrá-lo, aqui reunidos numa celebração eucarística, amigos, companheiros, senhoras e senhores, para todo o sempre, a cabra da velha torre, de todos os amores, chora por ele, chora por nós se não soubermos honrar a sua memória.
Disse
*
José Henrique Dias

O grupo Toada Coimbrã vai apresentar o seu último trabalho discográfico no Café Santa Cruz, em Coimbra, no próximo dia 6. Diário de Coimbra de hoje, com texto de Joana Martins.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

" Universidade de Coimbra a Património Mundial", artigo de João Paulo Craveiro no Diário de Coimbra de hoje.
Para ler, depois de a abrir com um click na imagem, terá que a aumentar com a lente(+) ou rodar o botão do rato.

António Arnaut e a Briosa Academia de Coimbra. Diário as Beiras de hoje.

domingo, dezembro 02, 2007



Ontem, no Porto, a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto comemorou 14 anos de existência, no Espaço Serv'Artes, na rua da Constituição. O grupo de Canto de Coimbra "Coimbra Eterna", na falta de um elemento por doença, Arménio Assis, convidou-me para colaborar com eles. Esta foto é de um ensaio prévio, no referido espaço.
Na primeira foto, da esquerda para a direita vemos: Octávio Sérgio (g), Aureliano Veloso (v), Manuel Campos Costa (v), José Archer de Carvalho (c), Napoleão Ferreira Amorim (c) e António Moniz Palme (g). Cantaram ainda Henrique Tomás Veiga e José Maria Lacerda e Megre, que não estão na foto.

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