Manual de Viola da Terra
Frontispício da obra do formador Ricardo MELO, "Manual de Apoio ao Estudo da Viola da Terra Micaelense", Ponta Delgada, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 2005. Estamos em presença de um importante manual de iniciação ao conhecimento e toque tradicional da Viola da Terra usado na Ilha de São Miguel, Açores, com 44 páginas e um cd com 20 faixas sonoras, oficialmente apresentado na cidade de Ponta Delgada a 18 de Fevereiro de 2006.
Ricardo Melo, formador de Viola da Terra no Conservatório de Ponta Delgada, disciplina onde sucedeu condignamente ao Mestre Miguel Pimentel, brinda-nos com um método onde se espraia sobre o historial da viola de arame regional, respectivo sistema de encordoamento e afinação, técnicas de mão direita e de mão esquerda, escalas, acordes maiores e menores (tablaturas e fotografias) e diversas transcrições musicais de modas tradicionais.
O cd tem o mérito de apresentar aos alunos 20 trechos de modas (canções) e "bailhos" (=danças) em 1ª e 2ª violas interpretadas separadamente. Não deixo de exprimir algum contentamento ao (re)escutar estas modas que bailei e trauteei na minha juventude, quando entre 1983-1985 integrei o Grupo Folclórico Ilha Verde da Escola Secundária Domingos Rebelo onde reinava o Sr. Quental como tocador de Viola da Terra.
Bem se pode dizer destas modas que alguns incautos reputariam de muito "antigas", os fados coreográficos (Fado da Povoação, nº 1; Fado Furado, nº 2; Pézinho Velho, nº 13), o rema (=Bailho de Santa Maria), as valsas (pelo menos Chamarrita e Sapateia) e os minuetos (Raminho de Salsa=Flor da Murta) pouco recuam para trás de 1800. Os fados e as valsos não serão anteriores a 1820 no arquipélago. Surprendentemente, ou talvez não, nas Variações Sobre a Saudade (nº 20), Ricardo Melo remata a composição com um fado em modo menor. Esta versão só pode ser um acrescento posterior ao original, pois a Saudade enquadra-se no universo luso-brasileiro e açórico das modinhas da 2ª metade de setecentos. O mesmo diremos de modas polqueadas e contradanças (Casaca ou Abana) que encontramos noutras ilhas.
Ricardo Melo não é um ensinante amador. Possui ilustração musical e mostra dominar com grande à vontade a arte da viola de arame, individualizando-se do seu "mestre" Miguel Pimentel, por via de uma execução mais dura, em todo o caso com momentos de notáveis arrebatamentos virtuosísticos em Mangericão (nº 10), na Saudade e nos sempre belos quanto difíceis introdução+acompanhamento de Pézinho da Vila (nº 14).
Ricardo Melo executa as danças em ritmo comedido, posicionando-se assim num registo mais próximo das marcações originais dos bailes, cujas coreografias e respectivos ritmos puxavam ao arrastado, incluindo as tão convencionais vénias/mesuras/arquinhos de braços/mãos dadas, que nos remetem para as danças fidalgas de salão, não olvidando que no núcleo dos "bailhos velhos" de cada ilha ia um tocador de viola incorporado na roda. Ora, o levar um tocador na roda, implicava: a) que este direccionasse o braço da viola para a parte exterior da roda por forma a não chocar nos restantes pares de baile; b) não cingisse o seu par com mãos e braços, excutando a mulher toda a coreografia sem agarrar o tocador; c) o braço da viola fosse projectado de través e ao alto para para evitar embaraçosos choques; d) que o tocador menos habilidoso se socorresse do toque ao rasgado, modus faciendi que veio a predominar nas ilhas do Pico e Faial; e) que as coreografias fossem bem mais lentas do que as que vieram a ser inventadas por ensaiadores activos em Ponta Delgada nas décadas de 1940-1950.
Creio que neste particular, porquanto ligado a ranchos folclóricos locais, Ricardo Melo sabe distinguir entre tradições musicais da Ilha de São Miguel e "folclore formatado por ensaiadores de grupos folclóricos". Não quero com isto ofender a memória de homens como um Tenente Francisco José Dias (1907-1980), mas também não posso olvidar que se encontra entre os inventores da estranha, estrelada e saltitante coreografia do Fado da Povoação. Como também não esquecerei a fundadora do Grupo Ilha Verde, Ortrud Sachaale, cujo trabalho foi muito aplaudido nas décadas de 1960/1970. Mas cabe perguntar, Sachaale não reinventou largamente modas micaelenses, formatando-as aos gostos e ritmos turísticos e abafando quase criminosamente a Viola na Terra com a estridência da Guitarra de Fado (Mário Rangel, Francisco Sabino) nas proliferantes gravações de "eps" para a editora RAPSÓDIA?
Certa vez em Tebosa, Braga (década de 1960), Ernesto Veiga de Oliveira pretendia gravar uns tocadores de Viola Braguesa. Dispôs o gravador, solicitando ao rancho que começasse a avançar e a tocar, como que a ilustrar uma arruada ou um desfile de romeiros. Os instrumentistas alinharam ombros com ombros e começaram a tocar, de tal forma que os tambores presentes abafavam braguesas, cavaquinhos e tudo o mais que ali houvesse. Veiga de Oliveira, sem ofender ninguém, reorganizou o grupo, colocando na linha da frente os instrumentos de cordas menos potentes e atrás os tonitruantes tambores e concertinas.
A Viola da Terra, contrariamente ao que se possa pensar, presta-se à execução de repertório muito variado que vai do folclore ao Fado, passando por baladas e serenatas ao estilo de Coimbra, música "ligeira" e peças clássicas. Por saber das potencialidades deste cordofone e do tipo de repertório diversificado que abordou ao longo dos tempos, dei-me ao trabalho vão de escrever um artigo para o "Correio de Açores", à roda de 1990, onde a propósito da moda da realização de serenatas ao estilo de Coimbra pela Associação de Estudantes da Universidade dos Açores, sugeria a formação de grupos com Viola da Terra/rabeca/violão e amostragens da música local. Segundo vim a saber, o artigo caiu muito mal junto dos dirigentes associativos e promotores da Semana Académica que na altura contratavam grupos de Coimbra para realizaram serenatas na fachada da Igreja do Colégio de Jesus, mesmo atrás do "meu" Liceu. Não me dei ao cuidado de guardar o texto desse artigo, mas 15 anos passados não lhe alteraria os parágrafos, para mais sabendo que as minhas ideias vieram a ser corroboradas nas recolhas de José Alberto Sardinha.
A Viola da Terra não é um instrumento insularmente confinado. Os emigrantes levaram este cordofone nas suas bagagens para o Brasil, EUA e Canadá. Assim a pintou Domingos Rebelo à espera de embarque, no cais velho de Ponta Delgada. No plano das emoções e afectos, foi alvo das mais patológicas ciumeiras. Entendamo-nos: solteiros namoradores e e sisudos casados tratavam a sua viola com mais carinhos do que os prodigalizados às respectivas mulheres. Além de não ser "chata", a viola podia ser encordoada, afinada, limpa, puxada, ponteada, passeada às costas nos bailes, folias e romarias, deitada na cama de casal com as cordas para baixo (à falta de estojo). As incontáveis quadras feitas à viola de arame exprimem um amor constante, fiel e incorruptível, com o qual nenhuma mulher poderia concorrer. Deitar a viola na cama era supina afronta aos olhos de muitas casadas. Ali estava a rival que a qualquer momento poderia suscitar um convite para o tocador se deslocar a mais um baile onde também estariam bonitas mulheres. Da boca de uma, residente numa aldeola da Ilha do Pico, já entrada na casa dos 70, ouvi esta iracunda deixa em 2003: "Espere um boadinho que o Manuel foi cortar o cabelo. Ele tem a viola na cama. Quando morrer há-de levá-la com ele no caixão!"
Pena é que se tenham tirado apenas 150 exemplares de uma obra que pode ser tomada como exemplo de trabalho de iniciação de alunos noutras escolas, e da qual deveriam ficar depositadas amostras em conservatórios, escolas superiores de educação e espaços culturais ligados à emigração americana.
Uma palavra de felicitação ao autor pela sua aposta na salvaguarda e divulgação deste cordofone tradicional português.
AMNunes