terça-feira, junho 07, 2005


França, 1989. Antigos Orfeonistas, com José Paulo, Octávio Sérgio e Mário de Castro. Posted by Hello


Cabo Verde, 1985.
António Bernardino, Durval Moreirinhas, Octávio Sérgio e Arménio Santos. Posted by Hello

Homenagem a Fernando Alvim

O TEC e a EPTC, convidam-no para a homenagem a Fernando Alvim. Espaço Memória - TEC, 7 de Junho 18h30.
Concerto de João Alvarez e Durval Moreirinhas. Espaço Memória ? Teatro Experimental de Cascais, Av. Marechal Carmona, 6 B (Junto ao Jumbo) Tel: 21 486 79 33,
e-mail: t.e.c@mail.telepac.pt

Era uma vez... ele há teorias e teorias

I - O mito fundador da Canção de Coimbra, por António M. Nunes

(o esboço original deste texto foi apresentado na galeria de exposições da editora Minerva Coimbra, em 17 de Abril de 2001, nas comemorações do 17 de Abril de 1969; foi ainda apresentado como lição na Universidade da Terceira Idade, intitulada “Canção de Coimbra. Das Origens à actualidade”, na Biblioteca do Museu Machado de Castro, Coimbra, no dia 25 de Fevreiro de 2003. A lição foi ilustrada pela Dra. Ana Sadio (guitarra) e duas cantadeiras do Grupo Folclórico de Coimbra que a meu pedido interpretaram Fado Atroador, Noite Serena, Fado de Coimbra, Ó Querida Gosto de Ti e Filhas do Guadalquivir)

As origens da Canção de Coimbra (CC), vista na qualidade de foro estético nascido em Coimbra após a Revolução Liberal de 1820, são relativamente obscuras. O que temos são arquivos falhos de documentos, cronistas que não se preocuparam em registar os acontecimentos, protagonistas que tardam em desenlaçar-se do anonimato. Os primeiros passos da CC mergulham na sombra, confundindo-se com a Música Tradicional de Coimbra.
De acordo com o relato mítico, a certidão de nascimento da CC começaria com Augusto Hilário da Costa Alves, nascido à Rua Nova, Freguesia da Sé, Viseu, em 7 de Janeiro de 1864, filho de António da Costa Alves e de Ana de Jesus Mouta. Filho de mãe solteira, Hilário foi abandonado na roda pela progenitora, pelas cinco horas da madrugada do mesmo dia 7 de Janeiro de 1864. Só em 8 de Junho de 1883 seria oficialmente perfilhado. Decorre da urdidura do mito que a “bastardia” que afectou o nascimento de Hilário também contaminou as origens da CC. Esta seria uma não filha de Coimbra, localmente perfilhada por Hilário, após a legitimação parental do próprio Hilário.
Além de Hilário, António e Ana tiveram outros dois filhos, António Pais e Carlos Alberto, em data anterior ao casamento. Ana dedicava-se às lides domésticas e auxiliava o marido no botequim anexo à casa de moradia na Rua Nova. Hilário frequentou o Liceu de Viseu e em 12 de Outubro de 1886 matriculou-se como aluno voluntário nos preparatórios médicos da Faculdade de Matemática da UC. Data de 3 de Outubro de 1892 a sua primeira matrícula na Faculdade de Medicina. Durante os dez longos anos de permanência em Coimbra, habitou sucessivamente a Rua da Trindade, Largo da Feira, Rua dos Estudos, Rua Larga, Largo do Observatório e Travessa de São Pedro.
Nos primeiros anos de Coimbra, Hilário acamaradou com o guitarrista-serenateiro Jaime de Abreu. Remontará a este período (1886-1889) a aprendizagem do bandolim de cordas de tripa e a participação nas serenatas estudantinas dirigidas por Jaime de Abreu. Nos tempos livres dedicou-se ao teatro amador, e em Março de 1887 apareceu ligado à Sociedade Serões Dramáticos de Celas. Tendo aderido ao protesto contra o Ultimato Britânico, colheu aplausos na peça O actor e seus vizinhos, comédia filantrópica exibida no sarau literário do Teatro Sousa Bastos em 12 de Março de 1890.
Sem abandonar a “carreira” de actor amador, o percurso de vida de Hilário mudou decisivamente no ano lectivo de 1890/1891. Formado em 1889, Jaime de Abreu saiu de Coimbra em Dezembro de 1890, deixando espaço aberto a Hilário. Ao longo de 1890/1891, Augusto Hilário frequentou os círculos de Manuel Mansilha, guitarrista que ensinou ao jovem viseense os rudimentos de dedilhação do cordofone. Hilário aventurou-se na dedilhação da guitarra e no canto serenil, iniciando o périplo dos teatros, casinos, praças e ruas.
Na Primavera de 1894 conviveu assiduamente com o guitarrista Antero da Veiga e numa noite de serenatas improvisou o Fado Serenata no Largo de São João de Almedina. Beberrão, boémio, galanteador, repentista de redondilhas, frequentador de prostíbulos, Hilário colaborou nas Fogueiras de São João da Alta, sendo muito popular entre as tricanas. Cabral de Almeida, em nota biográfica, divulgada no jornal Nova Geração, de 3 de Abril de 1896, empolava a faceta máscula do guitarrista, sugerindo-o como “enfeitiçador de tricanas”. Imagem que só na aparência revestia novidade, pois Jaime de Abreu já a cultivara na década anterior. Entre 7 e 14 de Julho de 1894 abrilhantou sessões de fonógrafo Edison na Associação Recreativa da Praça do Comércio (Praça Velha) e gravou ao vivo, em cilindros de cera, o Fado Serenata e outras árias. Entre Março e Julho de 1895 compôs os rudimentos do Último Fado.
Individualmente ou integrado no elenco da Tuna Académica (TAUC), Hilário percorreu diversas casas de espectáculos. Nos inícios de Março de 1895 actuou em Lisboa (Cf. Jornal do Comércio, de 8/03/1895). Na noite de 10 de Março de 1895 foi apoteoticamente consagrado no palco do Teatro D. Maria II, por ocasião da homenagem nacional a João de Deus Ramos. Por 2 de Junho de 1895 cantou “fadinhos e canções populares” no Ateneu de Lisboa, data em que lhe foi ofertada a derradeira guitarra. Nos ínícios de Agosto de 1895 actuou no Casino Mondego da Figueira da Foz, acompanhado ao violão pelo viseense Dr. Alberto Ponces de Carvalho (Cf. Correspondência de Coimbra, de 10/08/1895). Nos dias 21 e 22 de Março de 1896 acompanhou a Tuna ao Teatro Nabantino, em Tomar. Tocou e cantou ainda no Porto (Agosto de 1895), Viseu (Carnaval de 1893), Leiria (1/02/1896), e Espinho.
Barítono expressivo e de recorte ultra-romântico, abusando até ao limite dos vocalizos lamentosos e choramingões, Hilário foi basicamente um guitarrista de “sol-e-dó”. O seu desempenho, menos virtuoso do que o do seu homólogo activo no Porto, Reinaldo Varela, andou muito próximo daquilo que nos é dado escutar nos registos fonográficos de Avelino Baptista e António Batoque.
Hilário inseria-se numa tradição local onde os serenateiros eram chamados a desempenhar simultâneamente múltiplas funções:

-tocar de improviso, sentado com o cordofone sobre a perna esquerda, ou em andamento, com o instrumento supenso por um cordel. O esquema de digitação mais empregue nestas situações era o toque ao rasgado, ou o pontiado singelo, assente na alternância da tónia e dominante (vide gravações de Francisco da Silveira Morais e Paulo de Sá, nas vozes de Paradela de Oliveira e Elísio de Matos; idem, de Lucas Junot);
-improvisar quadras alusivas ao momento (céu estrelado, noite luarenta, enamoramento, beleza feminina), com recurso à quadra de sete pés;
-cantar a solo;
-improvisar melodias adequadas aos cenários vividos durante a “velada” nocturna.

O período tradicionalmente considerado a idade da fundação (1890-1896) nunca foi apresentado pelos cronistas da CC como “década de ouro”. Quanto às árias rotuladas de “grandes clássicos”, nenhuma é anterior a Manassés de Lacerda – activo em Coimbra entre 1901-1904 -, sendo todas elas cronologicamente posteriores à morte de Hilário.
A quem serviu a confusão entre a história da CC e a hagiografia romantizada de Augusto Hilário? As narrativas contadas pelos antigos estudantes de Coimbra a propósito da história da CC, no tocante às suas origens e percursos coincidem com o mito hilariano. Isto é, para compreendermos a tessitura do mito hilariano, afigura-se pertinente indagar como foi operada a gestão da imagem de Augusto Hilário após a sua morte. Como facilmente se pode constatar, todos os “contadores da sua estória” iniciam a hagiografia hilariana com o apócrifo “Fado Hylario Moderno”, espécime não anterior a 1904, e convertem invariavelmente a sua voz de barítono em primeiro tenor! Esta gestão tem sido “repartida” entre os cultores da CC e os fadistas activos em Lisboa, tendo os últimos inventado a sua própria versão literária, sendo a mais conhecida da lavra do letrista Gabriel Marujo (letra que tem sido invocada a titulo de fonte documental por estudiosos universitários como Maria Eduarda Cruzeiro, e entre 1976-1979 no contexto de “restauração da praxe”, nomeadamente a copla “Ai, o Hilário disse um dia”).
Hilário inventa um estilo vocal que lhe há-de sobreviver. A estética hilariana resvala para o melodrama xaroposo, uma lamentação incontida, um chorinho patético, uma invenção do cantar triste[1]. O chorinho hilariano parecia aproximar-se da estética usual no Fado de Lisboa, ilusão que ajudou a encurtar no plano simbólico as distâncias entre os dois géneros.
Cabral de Almeida, no Nova Geração, de 3 de Abril de 1896, recordou: “Ouvi o Hilário chorar ao som da sua guitarra, ao mesmo tempo que afirmava, rapazes, para mim a guitarra é a vida”. António Egas Moniz, aluno que foi de Medicina entre Outubro de 1891 e 31 de Julho de 1899, conheceu bem Hilário nas digressões da Tuna e nas serenatas da velha Alta. Os ais neumáticos, prolongados e lamentosos de Hilário faziam “delirar as tricaninhas gentis” e tiravam da cama os estudantes adormecidos[2].
Nem sequer nos é dado saber se Hilário mantinha traços da pronúncia viseense. Admitimos que sim, particularmente na enfatização das sibilantes. A melancolia hilariana era bem filha do seu tempo. Falava dos jovens vencidos pela vida, da morte. Nem só em Coimbra e Lisboa se carpiam fadistas e serenateiros. No longínquo Brasil, surgira pela década de 1880 uma forma vocal e instrumental lamentosa, a que se deu o nome de Chorinho. No México tornara-se moda os serenateiros chorarem as desilusões amororosas através do canto. O sofrimento passara a reclamar-se uma forma de prazer.
Com poucas excepções – Cândido de Viterbo, Francisco Caetano, Edmundo Bettencourt, Tomáz Alcaide, Agostinho Fontes, Manassés de Lacerda –a maioria dos cantores que entram na CC até aos anos de 1920 juram fidelidade inquebrantável à estética vocal hilariana.
Constituirá realmente o fado-serenata, entendido como subgéro da CC, uma radical novidade artística? Nos meios académicos, talvez. O “fado-serenata” hilariano era uma ária destinada a solista masculino, em compasso 2/4 e tom de Fá Maior, silábica, com uma só parte musical. Não só não tinha duas partes musicais, como acontece com o apócrifo “Fado Hylário Moderno” que tantos aplausos colheria no século XX, nem era estrófico (modalidade onde se pretendeu radicar a suposta “essência” da CC). Quer isto significar que eram necessárias pelo menos duas quadras de redondilha maior para se cantar integralmente toda a melodia sem repetições.
Uma das mais importantes novidades musicais desta época, a Balada de Despedida dos Quintanistas, fora estreada no Teatro Sousa Bastos, na noite de 24 de Março de 1892 (música do Padre Dr. João Antunes, letra de Alberto de Oliveira). A popularidade atingida pela balada de 1892 foi tal que rapidamente se tornou conhecida em todo o país, tendo gerado imitações nos liceus nacionais e na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Desta matriz derivam todas as baladas de despedida de quintanistas que ainda hoje se cultivam em Coimbra, sendo de salientar que as referidas baladas eram inicialmente estreadas em casas de espectáculos com solistas, coros e orquestra.
Filho da CC, pois nela se iniciou e dela se aproveitou para chegar aos grandes palcos, Augusto Hilário apresentou-se como fadista e como fadista foi entendido pela sociedade do seu tempo, sobretudo pela comunidade fadística lisboeta que passou a ler os convívios havidos em 1895 como um acto de vassalagem da CC à história do Fado de Lisboa (Assim, Luís de Ataíde, “Hylario”, jornal O Fado, nº 13, Anno 1, 9 de Julho de 1910, pág. 1). As suas quadras repentistas, posicionadas entre o gosto popular e os quadros mentais do Ultra-Romantismo, debitam as belezas da noite, o amor incompreendido, o desespero ante a juventude esvaída, a alucinação delirante dos caixões, vermes, mortalhas e corpos putrefactos.
Mas nem só de quadras se tecia a veia poética de Hilário, tendo este assinado abundantes décimas no mais acalorado estilo lisboeta. A CC começava a ser lentamente penetrada pelos referentes do decadentismo, da morbidez, do pânico da tuberculose. Havia quem morresse jovem, vitimado pela tísica e pela sífilis. Outros havia, que não morrendo jovens, se compraziam patologicamente em imaginar a morte. Um imaginar que era dor-prazer, expressa em caixões, vermes e mortalhas.
Aos 32 anos ainda se era considerado jovem em Portugal? Certamente que não. Tal como o seu amigo Antero da Veiga, Hilário foi considerado um trovador popular. A sua produção poética, simples e ingénua parecia traduzir “a alma do povo”. Em tempos de nacionalismo fervoroso, e no rescaldo do Ultimato Britânico de 1890, cantar redondilhas ao jeito popular parecia lenitivo redencionista.
Ausentes os registos documentais, a história da CC passa a ser confundida com o percurso de vida de um estudante morto aos 32 anos (Viseu, 3/04/1896). A morte de Hilário gerou impressionante histeria nacional, logo vertida em hilariomania. O Tango fez o mesmo com Carlos Gardel e o Fado de Lisboa com Maria Severa. Três géneros musicais que sendo diferentes, sonham com um passado idealizado. Morto jovem, mitificado e eternizado, Hilário constitui a cicatriz miraculosa e redentorista de um mundo perdido. Deificado, o rosto de Hilário paira sobre o devir da CC como mortalha de inexcedíveis virtualidades. Inultrapassável e insuperável, nada restaria aos vindouros que imitar uma estética congelada, uma espécie de eterno retorno que torna a CC refém de qualquer futuro[3].
O mito hilariano resiste ao mais empedernido cartesianismo nivelador da produção cultural, opondo-lhe o primado das emoções e sentimentos. Inumado no cemitério de Viseu (inaugurado em 1856), a campa de Hilário continua a acolher romagens, epitáfios e homenagens. O jazigo individual encena incessantemente a singularidade do morto, periodicamente rememorado e homenageado. Dissimulado o corpo, restam fotografias, uma guitarra, partituras, crónicas jornalísticas, uma biografia mitificada[4].
Após diversas romagens ao jazigo de Hilário (6/05/1964; 30/06/1979; 1/11/1987), a Academia de Coimbra persiste em não levantar o luto que carrega desde 1896, oficiando liturgias onde o morto se converte em invocação paradigmática para o presente.
Incorpora e tonifica o mito hilariano uma guitarrilha de Lisboa, de anatomia arcaica, oferecida pelos herdeiros ao Museu Académico de Coimbra, em 24 de Junho de 1967. De imediato convertida na “guitarra do Hilário”, sabemos de fonte segura que entre 1890 e 10 de Março de 1895 o cantor utilizou outras guitarras, sendo conhecida a fotografia de uma delas que se pode situar claramente no rescaldo da “guitarra inglesa”, com rosácea na boca e voluta em flor. A derradeira guitarra de Hilário foi-lhe ofertada por um grupo de sócios do Ateneu Comercial de Lisboa, em 2 de Junho de 1895, data de uma actuação do cantor naquela instituição. Agradecido, Hilário escreveu no envelope que trazia o cartão de oferta da guitarra a quadra “Já tenho mortalha nova/Para mais vos agradar/Oh vermes da minha cova/Oh virgens do meu altar”[5].
O cordofone, fabricado pelo construtor Augusto Vieira, tem caixa piriforme, tampo de casquinha, seis ordens metálicas, chapa de leque, escala em ressalto com 17 pontos, boca redonda e voluta de caracol. Tem quase dimensões de requinta, apresentando um comprimento total de 74 cms, 36,5 cms de largura de caixa e 5,5 cms de ilharga.
Para os veneradores de Hilário, mais do que o derradeiro cordofone dedilhado pelo cantor-guitarrista, a guitarrilha entrada no Museu Académico de Coimbra em 1967 é uma relíquia sagrada. Passou a ser vista com os mesmos ingredientes utilizados para compôr a imagem da não menos mítica Maria Severa e da sua falsa guitarra. Dito isto, talvez se consiga entender melhor o irresistível fascínio que a derradeira guitarra utilizada por Augusto Hilário tem merecido junto de certas franjas de entusiastas do Fado de Lisboa. Ela seria bem a prova documental irrefutável de que em 1895 Hilário se autoproclamou “fadista” perante os auditórios fadísticos lisboetas, e o elo de ligação da invocada transição do Fado de Lisboa para o chamado “Fado de Coimbra”, conferindo ao primeiro legitimidade para falar em nome da CC e narrar a sua “estória”.
O mito das origens da CC encerra ambivalâncias de difícil descodificação. Autoproposta como linguagem simbólica do Amor, a CC arrisca oficialmente laivos de erotismo claramente másculo. Hilário/Eros, símbolo de uma Sociedade Académica falocrática? À semelhança de Eloin e de tantos outros deuses geradores como Zeus, Hilário foi andrógino, na medida que em não necessitou de parceira para procriar o “filho”. Na teogonia hilariana, o criador é simultaneamente macho e fêmea, o que de acordo com os mitos primitivos não quer significar homossexualidade.
A contradição reside no facto de a prática da CC traduzir simbolicamente fortes laivos culturais femininos/matriarcais ocultados em imagens de virilidade. Afastados da mãe biológica, os estudantes regressavam ao colo de outra mãe: a Universidade, a Alma Mater, em cujas tetas, diziam, bebiam o leite do saber e da fertilidade. Ao longo de todo o século XIX, a entrada nesta segunda mãe espiritual fazia-se através da Porta Férrea e do ritual do canelão, disfarçando mal um incesto ritualizado. Ao longo dos anos de curso, os estudantes cultores da CC reproduziam consciente ou inconscientemente referentes matriarcais: Minerva, Sapiência, Alma Mater, a viola toeira, a guitarra, a Fonte do Castanheiro, a Lua, a Noite, as Estrelas, a Capa. Terminado o curso, os estudantes voltam a nascer, adultos e integralmente nus, rasgando as vestes juvenis. Lidam mal com o afastamento da Mãe e tentam regressar periodicamente em épocas festivas e jantares de curso (Cf. António M. Nunes, “As praxes académicas de Coimbra. Uma interpelação histórico-antropológica”, separata da Cadernos do Noroeste, Vol. 22, Braga, Universidade do Minho, 2004, págs. 113 e ss.).
Não deixa de ser curioso verificar que os cultores da CC irradicaram todos os instrumentos de conotação masculina (o bandolim, o violão de cordas de aço, o rabecão), tendo sublimado apenas elementos femininos (a guitarra, a viola). O discurso erótico subjacente às origens da CC querendo ser poderosamente viril, é em boa verdade masculino/feminino. Os temas cultivados, os poemas cantados, falam-nos do ancestral culto da deusa-mãe, da não aceitação da ausência materna, compondo imagens substitutivas (Maria de Nazaré, Alma Mater, Guitarra, Viola, Lua, Estrelas, Noite, Fonte, Rua, Janela, Morte, Saudade).
Compreender Hilário obriga a operar a recontextualização desta figura no seu tempo. A década de 1890 assistiu à afirmação do “reaportuguesamento” da arte em Portugal (Ramalho Ortigão, Alberto de Oliveira, Afonso Lopes Vieira), e da invenção do processo que conduziria às fictícias “casa portuguesa” e “guitarra portuguesa”. O nacionalismo encontrou forte costela musical nesta década, bem presente na produção coimbrã (ou destinada ao público conimbricense), com Antero da Veiga, António Rodrigues Viana, Condessa de Proença-a-Velha, José Viana da Mota, Alberto de Morais e Alexandre Rey Colaço (este com ligações a Antero da Veiga e ao arquitecto Raul Lino).
Como expressaram estes compositores o seu “amor” pela “nação”, neste caso mediado pela interpelação do regionalismo conimbricense, numa década de acentuados melindres anti-britânicos gerados pelo Ultimatum de 1890? Abandonada a Viola Toeira, cujo timbre e dedilhação poderiam remeter para um cunho estético regionalista, o regional não se poderia exprimir por via da tão celebrada guitarra. Tanto se utilizavam em Coimbra tipologias da chamada “guitarra de fado” (tipo Lisboa), como da Guitarra do Porto, além de variantes como as de duas bocas. Os violeiros e guitarreiros locais estavam mesmo neste período a inventar o primitivo modelo da Guitarra de Coimbra. A afinação natural, nada tinha de coimbrã, sendo utilizada no repertório fadístico convencional, nas serenatas, nos salões, nas romarias e nos bailes aldeãos.
No fundo restava fazer em Coimbra aquilo que o pintor José Malhoa, Silva Porto e o ceramista Jorge Colaço vinham a executar com imenso sucesso, para gáudio das elites citadinas, glosando teimosamente o pincel naturalista, quando o impressionismo e o simbolismo se haviam tornado moda: o regional poderia ser atingido pelo tema (título da peça), ou pela convocação de elementos musicais regionais (folclore: viras, marchinhas, chulas, fandangos, polcas), da feitura de quadras em redondilha maior, ou mesmo da “bricolage” de rapsódias como pretendeu anos mais tarde o ultranacionalista e colaborador do Estado Novo, Armando Leça.
Que repertório interpretava mais comummente Hilário? Todas as peças vocais do repertório hilariano foram transladadas em solfa no Cancioneiro de Muzicas Populares, dirigido por César das Neves e Gualdino de Campos (Porto, Tomo I, 1893; Tomo II, 1895; Tomo III, 1898), havendo notícia de “Às Estrelas”, “Filha do Guadalquivir”, “Fado Serenata do Hylario”, “O Ultimo Fado (do Hylario)”, “Fado Pósthumo do Hylario” (vulgo “Fado do 28”) e “Fado da Figueira da Foz”, podendo acrescentar-se sem grande margem de erro o grosso dos temas de serenata então em voga na cidade, também eles presentes no citado cancioneiro, a par de outros “recolhidos” pelo Dr. Manuel Maria Corte-Real (“Os Teus Olhos”, “Pudor e Compaixão”, “Canção das Morenas”).
E não andaremos longe da verdade se acrescentarmos que Hilário terá entoado a saga portuense da “Rosa Tyrana”, uma canastreira do antigo mercado do Bolhão, cega por enciumados amores do conversado. O repertório hilariano apresenta acentuado hibridismo em termos de assuntos literários, de compassos e de tonalidades. Algumas peças são autênticos fados corridos (“Às Estrelas”, “Fado da Figueira da Foz”), com a estranha particularidade de “Às Estrelas” ter duas partes musicais (a 1ª, da década de 1840, ainda com movimento coreográfico, e a 2ª um acrescento hilariano que contém a estrutura básica do “Fado Antigo” gravado por Paradela). Há igualmente canções fadográficas, como o “Fado Serenata”, o “Último Fado” e “Canção das Morenas”. Depois, insinuam-se temas oriundos de salões e teatros como “Os Teus Olhos” (letra de Garrett) e autênticas serenatas (“Filha do Guadalquivir”, de Adelino Veiga).
Afinal, se o repertório hilariano é conhecido e passível de reconstituição, porque razão nenhum grupo activo a partir de 1978 se lançou na sua reconstituição? Que utilização prática se fez da palestra realizada por Divaldo Gaspar de Freitas no Arquivo da UC em Julho de 1988 (Cf. “Origens do Fado de Coimbra dividem os investigadores”, Comércio do Porto, 2/08/1988; “Afinal de quem é o Fado Hilário?”, Jornal de Coimbra, 20/07/1988). Quem beneficiou da leitura pedagógica proposta por José Anjos de Carvalho e Fernando Murta Rebelo, “Evocação de Hylario na Coimbra do seu tempo. Origem e evolução do chamado Fado Hilário”, Lisboa, Edição da SHIP, 1998 (palestra ralizada em 13/12/1996)?
Chegados a este ponto, uma questão premente se nos impõe: teria a CC sobrevivido sem Augusto Hilário? A resposta só pode ser positiva. A CC teria continuado a sua afirmação/construção, porventura menos colada ao imaginário tomado ao vocabulário, gestos e ícones do Fado de Lisboa. O histérico triunfo da hilariomania afigurou-se demasiado fugaz. O seu estilo de digitação de guitarra em afinação natural, destituído de harmonização, ficou irremiavelmente condenado a partir de Artur Paredes. As suas lamentosas modulações vocais encontraram em António Menano, Lucas Junot e Paredela de Oliveira os derradeiros grandes sacerdotes.
Ironia do destino, aquilo que se canta em louvor de Hilário como sendo o “Fado Hilário” é em bom rigor um apócrifo não anterior a 1904! O mito hilariano vive muito da alimentação artificial de pretensas evidências que não são mais do que construções esteriotipadas que se nutrem de um aflitivo desinteresse pela verdade e pelos contributos da investigação. Podemos falar mesmo de uma obstinada recusa da verdade, reclamada em nome da manutenção de uma pseudo autenticidade.


[1] Augusto Morna, cantor de serenatas activo entre 1909-1913 recordava em 1955: “Era moda ter mágoas, e ser triste era um dos primeiros predicados para ser poeta...”. Cf. Augusto Morna, “Naquele tempo... que não foi o nosso!”, em Bodas de Diamante do Orfeon Académico. 1880. Coimbra. 1955, Coimbra, 1955, pág. 56.
[2] Egas Moniz, A nossa casa, 2ª edição, Estarreja, Câmara Municipal de Estarreja, 1987, págs. 290, 324, 327. (1ª edição de 1950).
[3] Dos muitos que escreveram sobre Hilário, convoco apenas Teixeira de Pascoais, memorialista que em rememoração de 1928 não deixava de comentar o seu próprio texto com um lúcido “que absurdo!”: Era o Hilário. Vi-o, pela última vez, à lus da Lua, naquela noite mitológica. Mas guardo, na lembrança, intacto, o belo painel nocturno. O luar não tem uma nódoa, nem o perfil do Hilário tem uma linha apagada. E a voz extraordinária, ouço-a ainda nas alturas daquela noite mitológica; uma dessas noites que não passam e pertencem (que absurdo!) ao dia de hoje. Teixeira de Pascoais, Livro de memórias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pág. 117.
[4] Em Arouca foi detectada na década de 1950 uma cantiga popular, “Ó Hilário, Pum!”, cuja letra satiriza o mito: Hilário, quando morreu/Disse à mãe, do coração/Que lhe botasse a guitarra/Ao cantinho do caixão. Vide Vergílio Pereira, Cancioneiro de Arouca, Porto, Edição da Junta de Província do Douro Litoral, 1959, pág. 725, com solfa e letra.
[5] Numa das suas actuações em Lisboa, Hilário deu a conhecer uma outra quadra mórbida, depois incorporada por Manassés de Lacerda no Fado Hilário Moderno: Ela há-de contar aos vermes/Já que eu não posso falar/Segredos luarizados/Da minh’alma a dormitar. Cf. D. João da Câmara, “O Hylario”, in Branco e Negro. Semanario Illustrado, Anno I, nº 1, 5 de Abril de 1896, págs. 12-13, com uma fotografia de Hilário.


Maio de 1987. Na Associação Académica, num convívio, actuam Luís Miguel à viola, António José Moreira à guitarra e a cantar, Jorge Cravo. Posted by Hello


Brasil, Paraná, 1986. Armando Marta e Octávio Sérgio. Posted by Hello


Brasil, Porto Alegre, 1986. Octávio Sérgio, António Bernardino e Durval Moreirinhas. Posted by Hello


Orfeon Académico nos Estados Unidos, em 1965. À esquerda e de pé, está Custódio Moreirinhas, logo seguido de José Miguel Baptista. Em baixo Octávio Sérgio é o segundo Posted by Hello

segunda-feira, junho 06, 2005


República Baco, ca. 1945. Convívio entre repúblicos da casa e dos Kágados. Identificáveis: Armando de Carvalho Homem (1º à direita e de pé); Manuel Sobral Torres (ao centro com uma viola; veja-se a foto de Sobral Torres no "Post" do dia 10 de Maio); e Fernando de Aguiar-Branco (semi-finalista de Direito, advogado no Porto e Presidente da Fundação Eng. António de Almeida (1973 ss.); está na última fila, na linha vertical que prolonga o fio e a lâmpada do tecto.
Foto e texto enviados por Armando Luís de Carvalho Homem. Posted by Hello


Partitura de "Variações em Mi menor" (1) de Armando de Carvalho Homem. Posted by Hello

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Partitura de "Variações em Mi menor" (2) de Armando de Carvalho Homem. Posted by Hello

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Partitura de "Variações em Mi menor" (3) de Armando de Carvalho Homem. Posted by Hello

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Partitura de "Variações em Mi m" (4) de Armando de Carvalho Homem. Peça de uma beleza ímpar, com um trabalho invulgar do segundo guitarra; foi já executada muitas vezes por mim e Manuel Mora, integrados no Grupo de Fados dos Antigos Orfeonistas. Obtivemos sempre um assinalável êxito com ela em todos os espectáculos.
Na partitura está escrita a parte do segundo guitarra, nos trechos em que esta é relevante. Como em qualquer partitura, embora as notas sejam as reais, o ritmo é sempre aproximado. Há que saber interpretá-la: isso será o mais difícil!
Para quem estiver interessado, faço saber que lhes porei à disposição um original interpretado pelo autor, por Mário Freitas a segundo guitarra e Armando Luís de Carvalho Homem à viola. É uma gravação caseira, mas muitíssimo bem interpretada pelos três executantes. Pena é não ser uma gravação em estúdio, com a qualidade que mereceria. Posted by Hello

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Quadro de Mário Silva: Sarajevo - 1993 Posted by Hello


Quadro de Mário Silva: Plexus - 1993 Posted by Hello

domingo, junho 05, 2005


"AEMINIUM, Grupo de Fados de Coimbra, abrilhantou o desfile". É este o texto escrito por baixo desta foto, saída hoje no Diário de Coimbra. Foi um desfile para mostrar roupa da Santix. Posted by Hello


Partitura de "Canção da Primavera" (1) de Francisco Filipe Martins, com transcrição de Paulo Soares. Posted by Hello

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Partitura de "Canção da Primavera" (2) de Francisco Filipe Martins, com transcrição de Paulo Soares. Peça com uma melodia divinal, foi excelentemente executada e gravada pelo seu autor no disco já referido neste Blog, no dia 2 de Abril.
É a música de abertura do "Grupo de Fados" dos Antigos Orfeonistas, com execução primorosa a cargo de Manuel Mora, tio de Francisco Martins. Posted by Hello

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sábado, junho 04, 2005


Virgílio Caseiro com o tenor Mikail Gubsky a dirigir a Orquestra Clássica do Centro. Actuaram ainda os "Antigos Orfeonistas" e Paulo Soares na Guitarra. Espectáculo realizado no Páteo das Escolas, na quinta-feira passada.
Foto do Diário de Coimbra de hoje. Posted by Hello


Ricardo Rocha acaba de ver reconhecido o seu valor, ao lhe ser atribuído o Prémio Revelação do ano de 2004, na área da música. Os três "Posts" que se seguem estão relacionados com este prémio. Vejam-se também os "Posts" do dia 29 de Maio, sobre o duplo CD "Voluptuária".
Parabéns, Ricardo; estamos contigo. Posted by Hello

Prémios Almada e Revelação Ribeiro da Fonte 2004

teatro dança música

João Brites e Igor Gandra no Teatro, Danças na Cidade e Vitalina Sousa na Dança e Filipe Pires e Ricardo Rocha na área da Música, foram os artistas e estruturas galardoados, respectivamente, com os Prémios Almada e Revelação Ribeiro da Fonte de 2004. Os prémios serão entregues em cerimónias públicas em datas e locais a confirmar.
O júri na área da Dança foi integrado por Cláudia Galhós, Cristina Peres, Luísa Taveira e Vasco Macide. Na área do Teatro, o júri foi constituído por Fernando Matos de Oliveira, Isabel Alves Costa, Mário Carneiro, Paulo Eduardo Carvalho e Rui Cintra. Na Música, o júri integrou Alexandre Delgado, Filipe Mesquita de Oliveira, Jorge Lima Alves, José Duarte e José Luís Borges Coelho. Todas as decisões foram tomadas por unanimidade.
Os Prémios Almada e Revelação Ribeiro da Fonte foram instituídos em 1998 com o objectivo de destacar anualmente os artistas, criadores ou intérpretes, estruturas de produção, difusão ou formação que se tenham distinguido no panorama artístico nacional nas artes do espectáculo.O valor dos prémios é de 25.000 €, para o Prémio Almada, e de 5.000 € para o Prémio Revelação Ribeiro da Fonte.

A guitarra é simplesmente um instrumento que não me agrada

Entrevista ao guitarrista Ricardo Rocha sobre o lançamento de “Voluptuária”. CD síntese e inovador sobre a guitarra portuguesa

Nem sempre as entrevistas servirão para promover um artista, como pretendem, na maioria das vezes, os seus produtores e agentes. Por vezes, fica-se apenas a conhecê-lo melhor, confundindo a personalidade do artista, músico no caso, com a sua arte. Ricardo Rocha reconhece que não tem a atitude ideal perante os media. Não lê entrevistas, notícias, críticas, etc. e por isso passa-lhe ao lado, por exemplo, o peso que significa ser chamado "sucessor de Carlos Paredes". O guitarrista, que aprendeu a mexer na guitarra portuguesa aos três anos, sente-se incomodado com o instrumento que toca, preferiria o piano, mas resignou-se. O que em termos de eventuais consumidores não será a atitude mais atraente. Nesta entrevista, realizada no dia seguinte a um esgotante concerto na Casa da Música, Ricardo Rocha revela-se, mesmo que seja escondendo-se atrás de sucessivas negas perante algumas perguntas e considerações sobre o óbvio de outras. No disco, "Voluptuária", passa-se o mesmo, provando que não é preciso gostar-se de tocar determinado instrumento para dele se tirar dele momentos gloriosos.
O seu trabalho tem vindo a ser elogiado por todo o tipo de pessoas, das mais variadas áreas, não é um peso muito grande? Não sente que lhe estão a exigir que assuma uma responsabilidade exagerada?
Não, porque estou totalmente ausente daquilo que se diz. Primeiro, não leio jornais, depois não leio entrevistas, não leio críticas. Não estou a par de absolutamente nada, não me interessa também, sinceramente, e, portanto, não sinto peso nenhum, não sinto exigência nenhuma, não sinto pressão. Não sinto nada. Não é só por isso – estar ausente – é também pela forma como encaro isto tudo, o disco... Encaro isto como um documento, nada mais do que isso.
É natural que lhe chegue aos ouvidos as reacções das pessoas perante o seu disco ou as pessoas que assistem aos seus concertos. Isso não lhe provoca nada?
Não, não. Não me constrange nem me descentra de nada.
Pode dizer-se que o Ricardo vem numa evolução de guitarristas portugueses. O que o aproxima e o que o separa de nomes como Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral...?
Não conheci o Carlos Paredes. Do ponto de vista musical nunca segui nenhuma trajectória dessas, nem num caso, nem noutro. São mundos completamente distintos: o Carlos Paredes não tem nada a ver com o Pedro Caldeira Cabral e vice-versa; eu não tenho nada a ver com nenhum. O facto de tocar também piano, e de gostar imenso de um instrumento – de ser o meu favorito – como esse dá uma certa influência que é totalmente diferente e muito mais vasta do ponto de vista musical. Por isso, as minhas peças não têm nada a ver com as de Carlos Paredes ou com as do Pedro Caldeira Cabral. São mundos completamente distintos e diferentes.
A única relação é, então, ser português e tocar guitarra?
A nacionalidade e a postura perante o instrumento, a postura solística.
Acompanha o trabalho deles? Gosta?
Conheço. Conheço bastante bem o trabalho do Carlos Paredes, conheço relativamente bem o trabalho do Pedro Caldeira Cabral. Envolve várias áreas, sendo que a música antiga, à qual se dedica e onde se sente bem, é interessante.
Podemos então falar de algumas influências que o Ricardo tenha. Apercebi-me no CD que algumas peças pareciam contemporâneas, outras pareciam uns rocócós abrasileirados, nomeadamente dos trabalhos que ficaram conhecidos com o "Bach in Brazil"? Pode-se falar destas influências?
Não, pelo menos não desse exemplo "Bach in Brazil", embora o conheça. Este é um trabalho em que o tipo de peças, além de não ser muito acessível, não é muito usual na guitarra portuguesa. Há um confronto, declarado e evidente, nada mais do que isso, à parte da complexidade das peças. Mas quase 90 por cento do disco é música contemporânea, há peças seriais, quatro, é música contemporânea, moderna...
A sua formação...
Não tenho, porque na guitarra nunca existiu, não existe e não existirá do ponto de vista académico, escolas de guitarra portuguesa. Não existe uma aprendizagem, não existe método, não existem professores, não existem escolas, não há em lado nenhum, portanto, é um instrumento invisível. Tive a sorte de contactar com pessoas importantes, na área da música, e tive a sorte de, aos 16 anos, dedicar-me ao piano. Não sou pianista, como é óbvio, mas como é um instrumento pelo qual tenho um interesse enorme, que admiro enormemente o repertório existente, automaticamente isso direcciona e dá uma perspectiva muito mais ampla. Conseguindo abranger determinados tipos de música e permitindo um conhecimento que uma pessoa que toque só guitarra não consegue. Portanto, é diferente. O piano é um instrumento auto-suficiente como também orquestral, que é outro mundo.
A maior parte dos temas são tocados sem acompanhamento nenhum, foi uma opção baseada em quê?
Não é uma questão de opção, é a tal influência que se fica, consciente ou inconscientemente, de um instrumento que é auto-suficiente como é o piano. Tudo soa bem ali, um instrumento cujo habitat natural é tocar a solo e, inevitavelmente, quando faço as experiências faço-as, automaticamente, logo à partida, a solo, nada mais do que isso. No disco aparecem também peças com violino, por junções tímbricas, e outro tipo de peças a solo, por serem altamente complexas. É uma experiência diferente. O acompanhamento não me agrada muito, sinceramente prefiro fazer sozinho.
Mas é um risco, pois a guitarra tem um som muito próprio e conhece-se quase sempre com acompanhamento, nem que seja com a viola. Teve a noção disso?
A questão não foi ter noção, as peças foram feitas de origem a solo e só soam bem assim, a solo. E o tipo de música em si é solística para guitarra, não tem nada a ver com outro tipo de formações, portanto, uma formação com mais instrumentos não faz sentido neste contexto, fará noutros. Pensou que estaria a evoluir para outro patamar do que se entende pela música da guitarra portuguesa, que apesar de tudo é ainda muito associada ao fado? Acha que o seu disco pode ser isso? Um enobrecimento talvez?
É... Depois cada pode integrá-lo à sua maneira, é uma música que não tem nada a ver com a música à qual a guitarra portuguesa está associada desde o início do século passado. Isso é elementar, óbvio, para qualquer pessoa, agora se é um degrau que sobe ou que desce... não sei, sei que é um postura, uma abordagem e uma atitude diferente, que nada tem a ver com a atitude e a abordagem habitual, e que assim tem sido ao longo da história e ao longo da tradição na guitarra portuguesa.
O facto de a gravação ter sido feita num convento teve alguma simbologia ou foi só a sonoridade?
Se se pode dizer que existiu alguma simbologia será pelo meu gosto pelos sítios eclesiásticos (capelas, igrejas, conventos...) e de o ambiente natural dos instrumentos acústicos ser esse. São locais com uma sonoridade, uma acústica que me leva a dizer que os instrumentos pertencem a esse espaço. O convento agradou-me imenso, tem uma série de salas boas, nas quais se fizeram testes para perceber qual a mais adequada.
Como explica a sua relação de quase amor-ódio com a guitarra?
Não existe, isso são termos aplicados pelos jornalistas – além de que detesto essas duas palavras. Não tenho com a guitarra nenhum relação desse tipo, é simplesmente um instrumento que não me agrada. Não sou paranóico nem neurótico pela guitarra, é simplesmente um instrumento que não me diverte minimamente porque só existe divertimento e prazer para quem está de fora, para quem está a ouvir. Nesse sentido, posso dizer que me agrada imenso se estiver a ouvir. No acto de estar a executar, a tocar as peças, não me agrada.
Como se consegue relacionar então com este instrumento tão especial?
É de facto um instrumento especial, mas as razões que originam uma espécie de insatisfação permanente são razões de ordem técnica. É um instrumento rijo, duro, todas as cordas são de aço a uma altíssima tensão e que, basicamente, exige uma relação totalmente para fazer soar alguma coisa do instrumento, para ter som. E toda a tensão, toda a intensidade com que pode tocar só pode ser uma, caso contrário – como uma atitude mole e sem energia – o instrumento não soa rigorosamente a nada. Exige, portanto, uma relação bastante física e é evidente que isso é exaustivo e cansativo, provoca imensos problemas físicos, desde a posição do corpo até à tensões musculares. É uma espécie de desporto de alta competição.
Toca desde muito novo, desde os três ou quatro anos, mas prossegue com essa difícil relação. Há alguma hipótese de se retirar ou dedicar-se a outro instrumento? O piano, por exemplo, que adora?
Não há hipótese, porque um instrumento deve começar a ser estudado entre os três e os sete/ oito anos. Há vontade de desistir, mas o tempo é irreversível e como assim é, não há forma nenhuma de começar a tocar outro instrumento ou outros instrumentos. Isso teve um tempo e como ele é impiedoso e imperdoável...
Sei que não se preocupa muito com o resultado dos concertos, com a reacção das pessoas, por isso pergunto-lhe quais serão os próximos desafios?
Sim, não me entusiasmam muito, mas também não tenho nenhum expectativa. Este disco é a junção de músicas de um trajecto já com muito tempo, há peças no CD de desde há dez anos – é o reunir de uma existência que vem desde os 18 anos até agora. Simplesmente, é uma coisa quase definitiva.
Continua a compor? Fá-lo periodicamente?
Não. Fiz uma peça para o disco de homenagem a Carlos Paredes, ao contrário do que esperava. Os meus trabalhos de composição são muito espaçados, é um processo lento e difícil.
Filinto Melo

Ricardo Rocha Dedicado a uma guitarra sem futuro
Artigo saído na revista “Pública””

Odeia tocar em público – “fico doente” – e confessa estar arrependido de se ter dedicado à guitarra portuguesa. “É um instrumento que não vai ter futuro, vai estar permanentemente ligado ao que sempre esteve (o fado) e nunca será incluído noutra área musical”, diz.
Ricardo Rocha, 30 anos, diz que Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral foram os únicos que “puseram a guitarra portuguesa noutro sítio”. O que é “notável” para quem “observa e contempla”, mas nada do que fizeram criou “uma legião de instrumentistas”, que seria “talvez” a única forma da guitarra saltar para outro nível”. E sublinha: “ Tudo o que se faça de inovador na guitarra portuguesa é totalmente em vão ou inglório”.
Não é pessimismo, é realismo, diz. Até porque, “por um lado”, a guitarra “está bem” no lugar onde está e onde sempre esteve – é nesse meio que se move com naturalidade.
Ricardo Rocha reconhecido como um dos mais talentosos guitarristas da sua geração, pegou pela primeira vez numa guitarra quando tinha “três, quatro anos”: “Ainda tenho a fotografia, dá vontade de rir”, lembra. Aos oito começou a aprender, aos 12 “já tocava umas coisitas” mas tocar a sério só por volta dos “17, 18 anos”. A dependência da guitarra apareceu três anos depois de começar a aprender: senti que não conseguia largar o instrumento, não sei se por razões físicas se musicais”.
Cresceu com “uma vergonha inacreditável” de dizer que instrumento tocava: “Na altura, anos 80, havia uma troça enorme em relação a este mundo”, lembra. Não foi por ser artista que Ricardo Rocha nunca socializou muito. “Isso” – o artista isolado na sua torre de marfim – “é uma coisa deprimente, uma coisa lamechas”. Foi porque ele é assim, ponto: “Nunca tive muito jeito para construir amizades. Na escola era uma desgraça, na tropa foi uma coisa inacreditável. Ainda hoje tenho três, quatro pessoas que posso dizer que são amigas”.
Foi o avô, o guitarrista Fontes Rocha, quem lhe deu a formação musical até aos “15, 16 anos”.Ainda chegou a ir para o Conservatório mas só durante um mês. Aos 16 decidiu aprender piano. “Deu-me uma abertura radical em relação à abordagem à guitarra portuguesa. “São dois instrumentos completamente diferentes e as imensas possibilidades do piano – “uma máquina de fazer sons” – tornam inevitável a mudança “da concepção musical que se tem na cabeça”. Foi depois deste contacto com o piano – que diz ter “imensa pena” de “não saber tocar” – que compôs a primeira peça. Diz que é fundamental aprender a técnica da guitarra de Lisboa, de Coimbra, de Pedro Caldeira Cabral e de Carlos Paredes. “O meu avô sempre foi um admirador incondicional de Carlos Paredes e tentava que eu tocasse. Quando o ouvi pela primeira vez tocar senti o que sinto hoje: é demolidor e inspirador ao mesmo tempo”.
Nem o pai, filho de Fontes Rocha, nem o seu irmão mais novo tocam qualquer instrumento. Os pais adoram música – “a minha mãe adorava um compositor que ainda hoje detesto, Verdi, mas também adorava um compositor que adoro, Debussy” – e Ricardo Rocha trás o assunto à conversa para dizer que “detesta ser obrigado a reconhecer” que o “facto de haver alguém na fanmília que se interesse por música talvez desperte o desejo de ter um contacto próximo” com algum instrumento.
Quando lhe perguntamos como é que continua a tocar não acreditando no futuro do instrumento a que se dedica, Ricardo Rocha começa por dizer que não vislumbra nada, que não sabe sequer se vai continuar, que isso não é uma trajédia – tendo a guitarra em casa pode tocar sempre que lhe apetecer. Depois acrescenta: “A única coisa que vejo, e que é o mais saudável – a única forma de eliminar a decadência, que abomino – é não haver objectivos. As coisas devem ser vistas do ponto de vista histórico e documental”.
É este o olhar do guitarrista, que já tocou com vários músicos (Carlos do Carmo, Maria Ana Bonone, Maria João e Mário Laginha, Pedro Caldeira Cabral, ...), sobre o seu primeiro e único álbum a solo (duplo), “Voluptuária”: o disco é apenas um documento. “Pus a guitarra num campo solista, para tocar a solo é preciso que existam peças e alguém que as faça”. Das 23 do disco, só em apenas cinco é que Rocha é acompanhado por outros músicos e todas foram compostas por si, excepto oito (quatro de Carlos Paredes e quatro de Pedro Caldeira Cabral).
Mostra-se espantado com a atribuição do prémio e com o interesse pela guitarra portuguesa mas tem uma explicação: “Portugal está um bocado deprimido, temos que nos afirmar na União Europeia, tem que se ir buscar alguma coisa para funcionar como um bálsamo para a nossa auto-estima, nem que seja a alheira de Mirandela. Foi buscar-se a guitarra portuguesa”.
Joana Gorjão Henriques


Programa da "Serenata Popular", ontem, nas Escadas da Igreja de Santiago, organizada pelo Grupo Folclórico de Coimbra. Cantaram-se e tocaram-se 17 peças dos mais variados autores populares, com datas que vão desde 1840 a 1919. Sobressai aqui a música de José Eliseu, o autor da música da "Balada de Coimbra", com oito peças no programa. Destaco neste espectáculo, a "Morena" e "Sonhos Dourados", duas peças que Artur Paredes imortalizou, chamando à segunda, "Balada do Mondego" e "Não me ames", posta em guitarra por Flávio Rodrigues com o nome de "Valsa em Fá".
Vou transcrever o que está escrito no programa:
"Com a Serenata de 2005 pretende o Grupo Folclórico de Coimbra documentar toda a riqueza musical criada pelos conimbricenses de finais de Oitocentos e começos do século XX, justamente a época áurea destas manifestações. Para tal, reuniu um conjunto de peças que encantam pela sua beleza e surpreendem pela sua homogeneidade. São, na sua maioria, canções que a cidade de há muito deixou de ouvir e tem agora oportunidade de recordar, de compositores populares como Augusto Pinto, Saldanha Júnior, Francisco Menano, José Eliseu, Ricardo de Campos, Lamartine Tito e outros". Posted by Hello

sexta-feira, junho 03, 2005


Serenata Popular nas Escadas de S. Tiago. Notícia do Diário de Coimbra. Posted by Hello

Breve perfil do Arquitecto Florêncio Neto de Carvalho (1924-1981)

Filho único de abastados proprietários ribatejanos, Florêncio Neto de Carvalho nasceu em 14 de Janeiro de 1924 na freguesia e Concelho de Alpiarça, distrito de Santarém. Era filho de Florêncio Carvalho, republicano e anticlerical (“Padres, de ganadaria nenhuma!”), vizinho de José Relvas, e de Francisca Parreira Neto, de ocupação doméstica. O pai era rendeiro do Eng. Álvaro Simões, ministro de Estado na Primeira República, que apadrinhou o bebé Florêncio na pia baptismal.
Efectuou a instrução primária em Alpiarça, tendo frequentado entre 1935 e 1942 o Liceu Sá da Bandeira, em Santarém. Neste último estabelecimento de ensino concluiu o 7º Ano de Ciências com a média final de 14 valores. Boémio, “bon vivant”, apaixonado pela lezíria, cavalos e touradas, Florêncio foi um assanhado coleccionador de revistas equestres e tauromáquicas, enquanto fazia uma perninha nos garbosos forcados amadores da terra. Em termos políticos e religiosos, Florêncio herdou uma formação familiar vicinal marcadamente republicana e anticlerical. E porque no Liceu de Santarém se reproduzia um certo culto em torno da cultura académica coimbrã, que ia desde a prática das serenatas ao uso da capa e batina, o jovem Florêncio deu consigo metido em serenatas. Remonta a esta sua fase iniciática a improvisação melódica do famigerado tema “Lá longe ao cair da Tarde”, inspirado nos dotes de uma farmacêutica de cabelos alourados (“vejo nuvens d’oiro que são os teus cabelos”), estabelecida em Alpiarça.
A partir de 1942, em pleno cenário de guerra, Florêncio frequentou o curso de Preparatórios de Engenharia, primeiro em Lisboa, depois em Coimbra. Breve foi a sua primeira passagem pela UC na primeira metade dos anos quarenta, pois em 1948 pediu transferência para o Instituto Superior Técnico (Lisboa). Nesse mesmo ano interrompeu os estudos, por doença, e longe dos bancos académicos se manteve até 1951.
No início do ano escolar de 1951 voltou a matricular-se na UC, no curso de Ciências Geofísicas, da Faculdade de Ciências. O regresso a Coimbra permitiu-lhe retomar o convívio com os amigos ligados à prática das serenatas e cantorias. Participou activamente em diversas récitas, ao lado de instrumentistas e cantores como Manuel Branquinho, Pinho Brojo, Luiz Goes, Fernando Rolim. Esboçou caricaturas para livros de curso, participou activamente nas garraiadas da Queima das Fitas e desenhou cenários para o TEUC. Neste período frequentou assiduamente a República Palácio da Loucura, na Rua Antero de Quental, e não havia centenário ou festança em que não cantasse de parceria com Fernando Rolim e Camacho Vieira. Os amigos admiravam-lhe o rosto bonacheirão, o caminhar à Charlot de tempos a tempos carregado pela obesidade, as noites brancas de conversas infinitas.
Desempenhou importante papel na consolidação da Tertúlia do Calhabé (1951-1954), o afamado grupo de António Pinho de Brojo, como ensaiador de cantores, exigente nos acompanhamentos, selectivo ao nível das temáticas, exigindo a compreensão e declamação dos textos, enquadrando os jovens cantores em estilos prévios. O papel atribuído a Florêncio, no sentido de conduzir a CC para caminhos de maior exigência e qualidade, nunca foi devidamente estudado. Está sobejamente provado que não possuía formação musical, o que por si só não constitui factor determinante para a exclusão de uma postura de maior investimento qualitativo. O Engenheiro Mário Henriques de Castro, executante de violão aço no grupo de António Brojo, recorda em traços sucintos a figura e o papel então desempenhado por Florêncio: “não era um grande cantor, sendo dotado de voz roufenha, afectada pela rouquidão”. “Era extraordinário como compositor, sendo disso exemplo o “Lá longe ao cair da tarde”, cuja letra deu brado em Coimbra, tal a excelência do conteúdo do poema. O Florêncio aparecia nos ensaios do nosso grupo com frequência, e o seu grande protagonismo consistiu em ensinar boas técnicas de entoação e modulação vocal aos outros cantores. A ele se deve, em grande parte, fruto de particular intuição, a transmissão das técnicas de respiração, os pianíssimos, os fortes, os crescendos, a transição de frases. De todos os instrumentistas do nosso grupo só o Aurélio Reis sabia música e solfejo, pois tocara clarinete na Filarmónica da Pampilhosa”.
De qualquer das formas, não subsistem dúvidas quanto à qualidade do desempenho do grupo liderado por António Brojo entre 1951 e 1954, presente nas “serenatas” do Emissor Regional e no lote de discos 78 r.p.m. gravados em 1952.
São desta segunda fase coimbrã de Florêncio, as melodias “Vento não batas à porta” e “Esmeralda Verde”.
Florêncio não gravou quaisquer discos, mediante os quais seja possível aquilatar da sua voz. Sabe-se, no entanto, que era um cantor dotado de timbre e volume muito similares aos exibidos pelo guitarrista-cantor António de Almeida Santos. Isto é, uma voz próxima de segundo tenor, frágil, pouco extensa, sem grande expressividade interpretativa, minada por ciclos de rouquidão. Os achaques decorrentes da doença também não lhe permitiam forçar as cordas vocais, impondo limitações que o cantor procurava superar com recurso a expedientes como o sentido do ritmo, a afinação, a entoação sentimental, truques muito do agrado dos corações femininos (declarações da esposa).
No período referido, o cantor-compositor voltou a interromper os estudos e aplicou os seus dotes artísticos na idealização dos cenários do TEUC, grupo dramático em maré alta, devido ao investimento e engenho do Doutor Paulo Quintela. Em 1952 conheceu a “actriz” do TEUC e estudante de Letras Maria Lucília Abreu, oriunda de Seia e ainda aparentada com a família de António Almeida Santos. Iniciado o namoro, Lucília e Florêncio celebram casamento no Porto. Do enlace nasceu uma filha, e o jovem casal decidiu estabelecer-se na casa de família em Alpiarça. Apesar de ter concluído a licenciatura, Lucília não trabalhou nos primeiros anos de casamento, para se dedicar em exclusivo à família e à filha. Sem emprego e com o curso por concluir, Florêncio viveu dos rendimentos familiares.
Em meados da década de cinquenta, o casal fixou residência em Lisboa. Foi durante os primeiros anos de casamento que a personalidade de Florêncio começou a sofrer importantes transformações ideológicas, no sentido de uma consciencialização que o fez aproximar do ideário de esquerda. O jovem estouvado, entre humanista, idealista e artista, falho de sentido material, ganhava sentido prático da vida. Durante os longos períodos de doença lera sofregamente autores e obras que o atraíam cada vez mais para o mundo das artes e humanidades. O convívio com o sogro, Rudolfo Almeida Abreu, homem culto e feroz opositor ao regime de Salazar, tornou-se um elemento decisivo no processo de viragem. No fundo, foi graças às longas conversas travadas com o sogro que Florêncio descobriu a sua verdadeira interioridade e a sua vocação profissional, após anos de inscrições, interrupções e transferências de cursos. O professor primário Rudolfo Almeida Abreu chegou a ser preso pela PIDE na década de 1950 e foi defendido no Plenário do Porto pelo advogado republicano Dr. António Macedo. Absolvido, recebeu uma indemnização de 70.000$00, num processo que fez aproximar Florêncio dos círculos da família da esposa.
Em Outubro de 1957, aos trinta e três anos, inscreveu-se na Escola de Belas Artes do Porto. Seis anos volvidos, em 1963, terminou o curso de Arquitectura, com média de 14 valores. Aluno distinto e premiado em 1962 (Prémio Mota Coelho), Florêncio iniciou em Outubro de 1963 o seu estágio de arquitectura, por um período de sete meses, no atellier do distinto arquitecto Carlos Loureiro.
Concluído o estágio profissional, em meados de 1964, começou a trabalhar como técnico de condicionamento de ar na Sociedade de Equipamentos Industriais, Lda., graças aos seus conhecimentos de Matemática e Termodinâmica. Entretanto, desde um de Abril de 1967 iniciou serviço, na qualidade de arquitecto contratado, na Repartição de Construção de Casas da Câmara Municipal do Porto. Em Junho de 1968 apresentou-se à prova final do curso de Arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto, com um relatório de estágio orientado pelo arquitecto Fernando Távora sobre o Estudo de Renovação do Barredo, tendo obtido a classificação de 16 valores.
Até à data do seu falecimento na cidade do Porto, em 26 de Janeiro de 1981, Florêncio de Carvalho, desenvolveu a sua actividade profissional na Câmara Municipal do Porto. Nas horas de lazer dedicou-se à pintura, caricatura, colecção de recortes de jornais alusivos à Revolução de 1974, desenho de moradias particulares, poesia, montagem de exposições, colaboração com o Grupo de Teatro Experimental do Porto, e direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense.
Entre 1972 e 1975 foi assistente da Escola de Belas Artes do Porto, e de 1973 a 1975 docente do Instituto de Arte, Decoração e Design. Assinou diversos artigos sobre problemas de habitação, publicados na “Revista do Norte” e em “O Primeiro de Janeiro”. No final da década de 1970 participou activamente nos Seminários do Fado de Coimbra (1978 a 1980), tendo cantado na serenata do primeiro certame.
Num dia frio de Janeiro de 1981 rumou ao cemitério de Nevogilde, no Porto, este ribatejano que tendo sido marido, pai, professor, ficou sempre interiormente vagabundo de si mesmo e do seu lápis de artista.

I-Principais trabalhos de arquitectura e artes
-levantamento do alçado da escarpa da Sé do Porto, com vista ao Estudo de Renovação Urbana do Barredo;
-moradia do Dr. Daniel Avelino, em Alpiarça;
-moradia de D. Clarisse Guimarães, no Oásis do Mindelo;
-moradia de Francisco Martins, na Rua da Bélgica, Vila Nova de Gaia;
-moradia de Odete Santos, na praia de Vila do Conde;
-moradia do Engenheiro Vieira Alberto, em Coimbra;
-moradia do Engenheiro Luís Durães, em Caminha;
-casa própria, no Porto;
-casa própria, na praia do Mindelo;
-moradias geminadas para Monteiro da Costa, na Rua Rei Ramiro, Gaia;
-bloco de habitações, na Rua Capitão Pombeiro, Porto;
-bloco de habitações, na Rua Francos, Porto;
-pavilhão polivalente para a Associação dos Construtores Civis;
-capela do Padrão, Matosinhos;
-urbanização LECANORTE, em Verdinho, Gaia;
-cenógrafo, luminotécnico e caracterizador do TEUC em diversos espectaculos realizados em Portugal, Alemanha, Itália e Espanha, durante a 2ª Delfíada de Teatro de 1952;
cenógrafo e caracterizador do Grupo Experimental de Teatro de Lisboa (direcção de António Pedro), e Teatro Estúdio do Salitre (direcção de Gino Saviotti);
-encenação e montagem no Grupo Experimental do Porto (direcção de António Pedro e Correia Alves);
-direcção do Grupo de Teatro do Sporting Clube Candalense (premiado em 1961 com a peça Camões no Rossio);
-participação em todas as Exposições Magnas da ESBAP, realizadas entre 1958 e 1963;
-participação na Exposição Arquitectos e Artistas, realizada na ESBAP em 1972;
exposição individual de desenhos e pintura, na Associação Portugal Europa (Porto), em 1979;
-colaboração na montagem da Exposição do Ano Internacional da Conservação do Património Europeu, ocorrida no Museu Soares dos Reis;
-montagem da Exposição das Cidades Geminadas com Liège em 1978, e Exposição do Ano Internacional da Criança (1979, Turim), promovidas pela Câmara do Porto;
-participação no colóquio A Cidade e a Criança, realizada em Turim e Milão em Abril de 1979;
-montagem da Exposição Nacional de Desenhos Infantis, no Clube dos Fenianos, em 1979;
-participação nos Seminários do Fado de Coimbra, realizados em 1978 e 1979;
-autor das medalhas, “Comemoração do 25º aniversário do Clube Invicta de Pesca Desportiva”, e “Prof. Doutor Paulo Quintela”;
-autor do logotipo do Rotary Club Porto/Douro

II-Temas de Coimbra
No curriculum vitae, assinado e datado de “Porto, 7 de Maio de 1980”, página três, o Arquitecto Florêncio de Carvalho reclama-se “autor das músicas e textos de vários fados de Coimbra, editados em disco (...)”, embora não especifique quais sejam esses temas. Gravados em disco apenas se conhecem três temas da autoria de Florêncio, respectivamente Lá Longe ao Cair da Tarde (vulgo Balada de Florêncio), Vento não batas à Porta e Esmeralda Verde.
Vejamos os respectivos títulos e textos em fixação definitiva:

LÁ LONGE AO CAIR DA TARDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1942

Lá longe, ao cair da tarde
Vejo nuvens d’oiro
Que são os teus cabelos
Fico mudo ao vê-los
São o meu tesoiro
Lá longe ao cair da tarde.

Lá longe, ao cair da tarde
Quando a saudade
Se esvai ao sol poente
Como canção dolente
De uma mocidade
Lá longe, ao cair da tarde.

Quanto à melodia, a viúva, Dra. Lucília Abreu, informa ter ouvido ao marido que esta balada fora composta nos tempos em que estudou no Liceu Sá da Bandeira de Santarém (1935-1942). O título deve corresponder ao incipit (1º verso da 1ª estrofe, tal qual era habitualmente designado pelo autor). Tema arqui-regravado e de tal maneira banalizado que apenas aconselhamos os registos de António de Almeida Santos (1961) e Joaquim Matos (1981).


VENTO NÃO BATAS À PORTA
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: 1ª quadra de Júlio Brandão, adaptada por Florêncio; 2ª quadra de Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1951

Vento não batas à porta
Que ela julga que sou eu!
Saudades da mocidade
(Ai) De um amor que já morreu.

Não vás contar tuas mágoas
Às pedrinhas do ribeiro;
Chorando ao pé de quem chora
(Ai) Chora a gente o dia inteiro.

Ária estrófica de tipo classizante, estruturada em introdução, 1ª quadra, separador, 2ª quadra e conclusão. A melodia corresponde à segunda estadia do cantor em Coimbra, iniciada em 1951. Foi composta entre 1951. A versão mais conhecida corresponde ao registo efectuado em 1952 por Fernando Rolim.

ESMERALDA VERDE
Música: Florêncio Neto de Carvalho
Letra: Florêncio Neto de Carvalho
Data: 1952

Conheço a “esmeralda verde”
Verde de água marinha;
Nenhum verde é como o verde
Dos teus olhos Joaninha.

Conheço a “esmeralda verde”
Verde da água marinha.

(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim;
Saudades da mocidade
Que eu trago dentro de mim.

(Ai) Eu vou rezar à saudade
Este meu amor sem fim.

Espécime singelo, concebido propositadamente para imitar as composições populares (quantos falsos populares não tem a CC?), pretendeu ser uma evocação de Joaninha, a famosa protagonista de “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett. A gravação que mais respeita a versão original é a efectuada por Fernando Rolim em 1960.

III- Documentos e fontes
Testemunho oral, prestado pela Dra. Lucília Abreu a António M. Nunes, em Fevereiro de 2000 e 5 de Julho de 2000.
Processo Curricular (do Arquitecto Florêncio de Carvalho), Porto, 7 de Maio de 1980.
Teatro degli Studenti dell’Università di Coimbra, Setembre 1952 (programa).
Theatergruppe der Coimbraer Studenten, 1952 (programa).
Teatro de los estudiantes da la Universidad de Coimbra, 1952 (programa).
“Visitas guiadas e projecção de filmes na Exposição do Património Arquitectónico Europeu”, in O Primeiro de Janeiro, de 16 de Março de 1977.
“I participanti al convegno dei sindaci delle grandi città del mondo”, in Torino Notize, nº 5, de Maio e Junho de 1979.
“Serenata na Sé Velha. Ponto alto do Seminário sobre o Fado de Coimbra”, in Jornal de Notícias, de 21 de Maio de 1978.
“O fado de Coimbra ou a propósito do semi-silêncio dos rouxinóis do Mondego”, in Expresso, de 11 de Fevereiro de 1978.
III Seminário do Fado de Coimbra, 24 e 25 de Maio de 1980 (programa).
Diversas fotografias cedidas pela Dra. Lucília Abreu.
Testemunho oral prestado pelo Eng. Mário Castro, em 31 de Maio de 2000
Testemunho do Dr. Fernando Rolim, em Setembro de 2004.
Entrevista prestada pelo Prof. Doutor António Brojo a António Nunes em Junho de 1992.
CORREIA, João de Araújo – “Florêncio Neto de Carvalho. Evocação”, Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto, Nº 10, Outubro de 1997.
Ficheiros e documentos do Coronel José Anjos de Carvalho

IV – Agradecimentos
Dra. Lucília Abreu, Coronel José Anjos de Carvalho, Dr. Augusto Camacho Vieira, Doutor António Pinho de Brojo, Dr. Fernando Rolim.

António Manuel Nunes (texto de 2000, actualizado em Maio de 2005)

quinta-feira, junho 02, 2005


Amanhã, "Gala da Académica / OAF", no Casino da Figueira da Foz. Posted by Hello


Uma Noite Dedicada a Coimbra. Notícia do Diário de Coimbra, por Rute Melo. Posted by Hello

quarta-feira, junho 01, 2005


"Coimbra à Noite". Quadro que Mário Silva pintou, hoje, na Livraria Bertrand, no Dolce Vita. Posted by Hello


Último dia da exposição de Pintura de Humberto Matias na Casa Museu Fernando Namora, em Condeixa. Isabel Azevedo observa quatro dos magníficos quadros expostos. Posted by Hello


Mário Silva acaba de pintar este magnífico quadro, "Coimbra à Noite", na Livraria Bertrand, no Dolce Vita. Foi acompanhado à viola por Manuel Malaguerra. Posted by Hello

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